domingo, 27 de maio de 2018

A floresta aos 800 m pôs-se neblínica

Serra da Lousã
Maio 2018


Maio outonal. Quando atravessei a floresta aos 800 m de altitude, a grande floresta de coníferas, a temperatura rondava os 10-12°C e não via para além de meia dúzia de árvores à frente do nariz. A neblina, a luz coada, o silêncio cortado por cantos de aves, por bater de asas e, de vez em quando, por cascos que batiam no chão. O sentido principal para perceber o que se passava à minha volta não era a visão, mas a audição e o olfacto. Por vezes sentia o cheiro orgânico dos animais que por ali andavam mas que não via. Ouvia. Uns galhos quebrados, uns sons cavos sem eco.

Um dia branco. Na subida percebi que a neblina pousava sobre as copas logo aos 500 m de altitude, recortando os perfis das árvores magníficas contra o céu branco.



Mais um pouco e cheguei lá. Cheguei húmido, ofegante. A neblina condensava na roupa e na cara. Suado. As pedaladas têm que ser dadas com convicção, em bom ritmo. Ir por ali acima como quem vai numa corrida nem pensar, mas feito um ponhónhó também não. Depois, parei e, como já tinha experimentado outras vezes, é-se esmagado pelo silêncio, pela sensação de irrealidade.




Os caminhos ainda com as poças de águas das tempestades dos últimos dias. Belíssimos.


Mil fotografias não contariam a beleza da floresta neblínica.






E eu, furtivo, por ali fora a pedalar como quem veleja no mar alto, sinto-me em casa.




Subi mais um pouco. Aos mil metros, meti-me por um carreiro que serpenteia por uma mata de pinheiros alpinos.
O chão pejado das pinhas pequenas (pouco maiores que nozes) e intensamente perfumadas.



De vez em quando, sob os pinheiros, há uns carvalhos.


E ... blue is the warmest color.


Naquele lusco-fusco azul, de meus anos colhendo doce fruito num engano de alma ledo e cego, lembrei-me que a cadela estava em casa sozinha à minha espera. Cheguei num instante; foi só o tempo de pôr um lenço na cabeça por baixo do capacete, olhar à vota, respirar fundo, apanhar duas pinhas, espreitar para longe na expectativa de ver algum veado que por ali andasse, ajeitar os óculos, sacudir as gotas de água que caídas das árvores cobriam a roupa, encaixar os sapatos nos pedais e voar serra abaixo durante 20 km.

terça-feira, 8 de maio de 2018

O ciclista extraordinário foi ver o mar

Maio 2018


O ciclista extraordinário acordou pela manhãzinha com vontade de ver o mar. O ciclista extraordinário, por regra, acorda pela manhã e pedala serra acima, até às cumeadas onde a vista se perde nas lonjuras (no mar também mas não é a mesma coisa).

Ir ver o mar implicava pedalar por estradas asfaltadas durante muitos quilómetros. O ciclista extraordinário fez umas contas de cabeça para tentar encontrar umas estradas secundárias e meteu-se ao caminho. Ah1 o ciclista extraordinário levou a bike de BTT, não de estrada, porque sempre que pudesse meter-se-ia por caminhos de terra. Um dos caminhos de terra que levava na cabeça eram os campos de arroz do baixo Mondego e do rio Pranto.

A saída foi em fúria, tentando não perder muito tempo. Pedaladas enérgicas. Havia muitas horas pela frente. Não muito tempo depois, o ciclista extraordinário parou e olhou para trás. Afastara-se já da serra. As sensação foi de traição às montanhas azuis no horizonte que, caso o ciclista extraordinário não tivesse acordado pela manhãzinha com ganas de ir ver o mar, estaria a subir. Olhou para o Cabeço da Ortiga, o Trevim logo à direita e todos os outros picos que bem conhece para, relutantemente, pedalar pela estrada nacional em direcção oposta.



Uma e outra e mais outra pedalada e mais meia hora e mais outra e mais um cruzamento e uma rotunda e uns sofás a meter nojo à beira da estrada junto a pinhais onde, provavelmente, há encontros de olhares murchos e almas penadas.

Uma paragem técnica e, afinal, o ambiente parecia familiar ao ciclista extraordinário. Não fora um rugido constante logo ali e o ciclista extraordinário poderia estar num prado de altitude na serra.



 Mas o ruído? logo ali, do lado de lá das árvores. O vento não era certamente e a chuva não batia assim, era talvez ... a autoestrada.



Já que ando nisto - pensou o ciclista extraordinário - na próxima Vila vou parar para um pastel de nata e um café.
Pedalou Vila dentro, procurou, procurou e viu um largo com um monumento aos heróis da I Grande Guerra (com aquelas estátuas de soldados achatadas), cafés à volta, muita gente e - pensou - é aqui mesmo.
"Deixe aqui a bicicleta e vá lá dentro homem que aqui ninguém rouba nada, os ladrões estão no governo". Foi com este convite que o ciclista extraordinário foi recebido por 4 marmanjos sentados na única mesa fora do café. "Pronto, vejam-me lá então do veículo". E lá entrei. Foram atrás de mim. Eu ao balcão e eles ali. Queriam conversa (e um copinho de branco). Mas então e a bike? Não se preocupe! Porra - pensou o ciclista - tenho que ir lá fora. Levou o café e o pastel para a mesa que entretanto os marmanjos tinham deixado e ... lá vieram eles atrás, com um copinho de vinho banco na mão. Então o amigo vai p´ra onde? Olhe, não tem nada que enganar. Segue, passa a linha e na rotunda corta à direita, passa outra vez a linha e quando encontrar não sei o quê corta para não sei onde, mas cuidado que antes há uma cortada que não sei que mais, e depois é sempre em frente, não corta para lado nenhum. Depois repetiram isto 6 vezes enquanto o ciclista extarodinário saboreava a nata e o café.


À saída da Vila, junto ao rio, anunciava-se uma cascata. Não uma mera cascata como as que o ciclista extraordinário conhece na serra, que furiosamente se precipitam por pedras e vales. Não, esta era uma "Cascata Municipal". O ciclista espreitou na direcção da seta mas viu apenas uns pequenos poços com água parada. Às tantas a cascata municipal não estava ligada! 


O Sol aquecia, o tempo passava. Estradas estreitas sem bermas, povoações com casas dispersas, contrastes de casas antigas com maisons de mau gosto. Estradas a serpentear pelo campo ao sabor das curvas de nível, a contornarem obstáculos ... Paisagens e estradas que activaram memórias na cabeça do ciclista extraordinário de tempos de antes das As, IPs, ICs e afins.






O ciclista extraordinário, já esquecido da serra, ia a a gostar de pedalar por aquelas estradas que lhe lembravam as que se percorriam na era pré-intinerários principais. E havia pequenas vinhas muito bonitas com os corredores de cepas separados por carreiros de flores


ou os corredores de flores separados por cepas



E, além das vinhas,  havia campos de oliveiras. Uns apenas com oliveiras e outros decorados com cartazes.



O texto, para ser lido com vagar, por quem passa perto a pé ou de bike


  O ladrão
   continua
  arroubr
 oliveiras.
   Por fabor
não roubar mais
oliveiras

ainda que com uma carga lírica notável, não tem a espessura literária do Corno dos Eucaliptos.

No seu todo a instalação é bem conseguida: um cavalete quadrangular com cinco pilares o que, ao adicionar dimensões múltiplas ao quadrado, o ciclista extraordinário diria que sugere influências de Escher. As sete tábuas paralelas de suporte ao texto seguem a mesma linha multidimensional ao apresentarem-se fora de plano e desalinhadas, estratégia que permitiu a dinâmica do espaçamento entre as letras no conjunto da palavra como entidade comunicacional.

Mas o ciclista extraordinário estava com pressa e após breve contemplação da instalação teve que se fazer ao caminho. E o caminho levou-o até ao extremo Sul dos arrozais do rio Pranto.


O ciclista extraordinário espanta-se com frequência porque olha à volta e vê muitas coisas espantosas. À beira da estrada, no meio das ervas, uma placa; não havia que enganar, estava na rua principal.


Os arrozais eram para ser pedalados por aí fora. Desceu e subiu até à povoação à beira dos arrozais, passando na rua Casal Dentro, junto uma bela casa em ruínas


e junto a outras casas de uma beleza mais ... complexa.




Pelos arrozais fora havia já uma claridade de mar e o ciclista extraordinário pedalava de nariz no ar, apanhando o vento e observando as gaivotas que já por ali se mostravam.


(para guardar arroz?)



Não se via vivalma. O ciclista levava um GPS mas, intencionalmente, deixou-se perder ali pelos campos. Inadvertidamente, o ciclista deu com uma piscina, ali no meio dos campos de arroz.


Como é que o ciclista extraordinário soube que era uma piscina? Não porque estivesse pejada de pessoas que ali, no meio dos campos de arroz, gozavam a frescura da água num dia quente. Não. O ciclista soube porque na árvore ali ao lado, um letreiro, afixado com uso a uma tecnologia já com alguns anos mas muito eficaz, a fita cola, anunciava claramente do que se tratava.


O ciclista extraordinário achou extraordinário o cuidado em manter o aviso live, nomeadamente a renovação das várias camadas de fita cola à medida que esta se ia degradando (ou a árvore ia crescendo). Neste contexto, os 10 litros de lixívia é um pormenor desinteressante (bem pensada a utilização da piscina dá para tomar banho e lavar a roupa em simultâneo).

O ciclista não se podia distrair, estava a muitos Km de casa e ainda não tinha chegado ao mar. E, embora os físicos debatam ainda a reversibilidade do tempo, o ciclista estava mais ou menos seguro que as horas iam passando sempre na mesma direcção (para o futuro) e que se tudo corresse normalmente o Sol iria pôr-se e anoiteceria, eventually. Por isso, pôs-se a pedalar as últimas estradas que faltavam com o fito de rapidamente chegar ao mar.


Debalde. Ali, num ambiente extraordinariamente bucólico o ciclista extraordinário parou porque não queria acreditar nos seus ouvidos. O ciclista ouviu, claramente ouvido por sobre o vento uma música dos Alphaville, uma banda dos anos 80 que, embora não seja a onda do ciclista extraordinário, lembra-se bem deles, sobretudo do Forever Young.
O ciclista fez um vídeo curtíssimo (para mais tarde verificar que tinha, de facto, ouvido, não fosse  o Sol de tantas horas na bike estar a interferir com a realidade na cabeça do ciclista) que deve ser ouvido com o som no máximo ... forever young, lá, lá lá, láááááá...





Ao longe a Figueira da Foz. Mais campo de arroz, menos campo de arroz e o ciclista extraordinário chegaria ao mar.


Não antes sem pousar o olhar em duas personagens do mural "A monda do arroz" numa parede de uma das povoações que ainda atravessou



Na monda havia um problema de género. Das sete figuras apenas uma é masculina, a do lado esquerdo na extremidade. Esta (o gajo) parece assobiar (bast ampliar para se ver a música a sair dos lábios), e apenas uma das outras lhe responde, provavelmente cantando. O ciclista extraordinário que não é de intrigas nem de teorias da conspiração já estava a imaginar que o gajo se meteu na monda apenas para fazer olhinhos a uma da meninas mas, provavelmente, não foi esta  mensagem etnográfica que o artista quis passar. Em todo o caso, a teoria do ciclista extraordinário tem o seu quê de verosímil.

E por falar em teorias e etnografia o ciclista documentou fotograficamente o quintal de uma vivenda que encontrou pelo caminho na expectativa de mais tarde observar todos os detalhes, algo que ali daria muito nas vistas (e também não sabia se a casa tinha um cão feroz).


Olha! o ciclista extraordinário !



Olha! o mar!



a praia para Sul


E, para Norte, a Figueira da Foz


O ciclista extraordinário ficou a olhar o mar e gostou de ter ido ver o mar.
O mar a que o ciclista está a costumado é um mar feroz como, por exemplo, as falésias neblínicas do Alentejo. Mas, não o tendo ao olhar, este mar soube bem.


sexta-feira, 4 de maio de 2018

As árvores morrem de pé? Os duendes das fontes usam calções?

Serra da Lousã
(Abril 2018)

Que morrem, é certo. De pé, talvez. Sentadas ou deitadas não dava jeito nenhum. Pelo menos aguentam-se de pé, moribundas, alimentando outras vidas (insectos ...), até que caem. Algumas.



Outras não. Outras mantêm-se de pé, morrendo devagarinho, nunca caindo.
Em qualquer dos casos, as árvores, tal como nós, são ecosistemas complexos em que habitam sinergisticamente múltiplas formas de vida. No nosso caso, só no intestino colaboramos com bactérias que, em número, batem aos pontos o número de todas as células do nosso organismo propriamente dito (rins, fígado, pele, cérebro, ossos, músculos ... tudo). E a interacção com elas é essencial à nossa saúde. Doenças como, por exemplo, o autismo e a Parkinson, para não falar das cardiovasculares (em que experimentalmente ja se fazem transplante fecais - estamos a falar das bactérias, não das fezes), parecem estar relacionadas com alteração do microbiota intestinal. Há quem se refira ao intestino com o "second brain", tal a relação íntima entre as bactérias do intestino e o cérebro. Pois, custa a crer mas há evidências cientificas para tal.

Estava a falar das árvores.
As grandes coníferas da floresta caem porque têm pés de galinha. Tal com as grandes Sequóias que vi nos EUA, as raízes destas árvores grandes, não penetram fundo no solo, antes se espalham à superfície em pé de galinha, radicalmente a partir do tronco. As raízes são superficiais, como é claro aqui:



Ia por ali fora, pelo estradão que cruza a floresta e:



O tronco com as marcas da morte, habitado por múltiplos outros seres vivos


Bike às costas, transpus a magnífica árvore e segui na expectativa de, na curva do caminho, parar na fonte fria. Que local este, ali no meio da floresta, na berma do estradão que a atravessa. As pedras cobertas de musgo e flores, o espelho da água, o som envolvente da água que corre, as sombras e os ramos dos castanheiros e carvalhos que tecem uma paisagem fractal ...

A Fonte Fria põe-me à nora, a ver o mundo up side down




Tentando encontrar o Norte na minha cabeça,
Primeiro, num relance, percebi uma sombra, um sobressalto, depois, nitidamente, uma mão, um vulto chifrudo ... era o duende da fonte fria. De novo.




Já antes tinha tido um encontro imediato do terceiro grau com o Duende da fonte fria. Percebi a sombra, uma mão grande apoiada em sítio nenhum, um vulto que se mostra num segundo, deixando a dúvida se, de facto, vimos alguma coisa. Bem, mas isto é próprio dos duendes.
Mas ... mas ... calções? O Duende usa calções?



E calções de licra? O Duende usa calções de licra?