domingo, 27 de junho de 2021

Neblinas Júnicas

 Junho 2021

Dobrado o Solstício, a tardes vinham já quentes e as manhã mornas. À serra, imensamente verde, parecem ter voltado as borboletas e as abelhas, os pássaros e as lagartixas como já não via há uns anos.

De uma dia para o outro, de Sábado para Domingo, a temperatura caiu dos 20 e tal para os 11 graus C e, sem grande surpresa, das cumeadas até à floresta a meia encosta, a serra cobriu-se de neblina. Com o dia a temperatura aumentaria e, pela tarde, as brumas levantariam. Mas, pela manhã, a serra estava envolta em neblina. Neblina densa. Neblinas de Verão. A neblina que enche a paisagem de silêncio e mistério. Sobretudo estando lá, quero dizer, no meio da neblina, no meio da serra.

Na EN236 a visibilidade aos mil metros era cerca de meia dúzia de palmos à frente da roda da frente da bike.  A caruma fininha dos abetos marcava a berma num traço paralelo ao verde dos fetos, com pinceladas roxas aqui e ali das dedaleiras.




Ao fundo, na curva da estrada, do lado de lá da luz, da luz neblínica que não deixa ver, caso estivesse Sol aberto abrir-se-ia o vale sobre o Candal, um desnível de 700 m, parte da Beira-litoral e, em frente, o Trevim mais acima, o cume da serra. Na neblina, a curva da estrada leva a outra curva e pedala-se por ali a apreciar a paisagem em dois planos; na memória vê-se a paisagem invisível para os olhos e os olhos vêem vultos, sombras e luz na neblina translúcida à volta.
O vento forte sacudia as árvores que molhadas faziam chover. Chuva vinda das árvores.



Na meia-encosta, na floresta, a temperatura mais amena levantava a neblina a meio da manhã.









Era a hora de seres improváveis por ali deambularem sem serem avistados. Vultos brancos de olhos azuis, outros com hastes magníficas ... e outros sobre duas rodas.



Um ruído, um sobressalto, um vulto que passa rápido ... olha-se e, um segundo depois, ... tudo calmo.


E entra o Milton (dito assim, com a confiança de quem um dia com ele teve um bate-papo ... é isso aí cara).




 

quinta-feira, 17 de junho de 2021

De volta ao Adamastor do Açor

 Maio 2021

Tendo iniciado mais uma volta ao Sol - e já lá vão umas dúzias - o ciclista extraordinário foi dobrar o cabo das tormentas do Açor. Previa-se céu limpo e vento fraco. O dia amanheceu com céu azul e um ventinho quente. Depois de uma caneca de café e umas fatias de pão com queijo e doce de abóbora, o ciclista fez-se às ondas quer dizer, ao caminho. Os cantis seriam cheios na fonte junto à barragem. O espelho de água que se estende até ao infinito (mais ou menos, pelo menos até ao planalto da Estrela) é uma surpresa antecipada quando se chega pelo lado dos penedos da barragem, pelo lado da aldeia do Vale Grande.



Logo na curva dos penedos, a barragem! Ao centro na linha do horizonte o maciço central da Estrela e, à esquerda, formando um cone perfeito, o Adamastor do Açor; o picoto da Cebola (local de onde se avista cerca de um terço do território continental).


Enchidos os cantis, iniciou-se a subida. Daí a 700 m mais próximo do Sol e a 1400 do nível do mar estaria lá; no pico mais alto do Açor que visto daqui parece inatingível. 
A temperatura chegou aos 30, depois 31 graus C. Porra, de onde vem este calor - pensou o ciclista extraordinário em voz alta. Felizmente o ciclista extraordinário não sofre de alergias a pólen pois o odor intenso das flores amarelas de malmequeres, giestas e carqueja fluíam nariz adentro, provocando um fogo de artifício nos neurónios olfactivos.
Pedaladas acima e o ciclista metia-se Açor adentro, percorrendo a encosta Sul do vale do rio Ceira, o vale que rasga o Açor. Ao contrário de outras serranias, o Açor é cortado por múltiplos vales, ora paralelos ora perpendiculares entre si.
Mil pedaladas depois e lá estava Fajão, ao centro, e, à esquerda, as serranias que se estendem para Este até à Serra da Lousã. À direita, espreitando na linha do horizonte, por detrás da encosta Norte da vale do rio Ceira, a serra do Caramulo (entre estas duas serras estende-se grande parte da Beira Litoral e da Beira Alta).


Para o outro lado, para o lado para onde me levavam os ventos e a vontade, o Adamastor, o cone quase-perfeito do picoto da Cebola. À esquerda, do outro lado do vale, os outros dois gigantes do Açor, o São pedro do Açor e o Gondufo. Unindo os três gigantes, por detrás, a azul mais claro na linha do horizonte e coroado com nuvens, o maciço central da serra da Estrela. 


Subir ao Cebola tem que ser uma tirada sem paragens. Depois da breve paragem, do olhar para o Cebola, de tornar a olhar o cone quase perfeito, de se libertar de excesso de peso (no caso peso no estado líquido), o ciclista extraordinário arrancou. Não se pode conceder 1 minuto sequer ao desânimo. Pára-se e respira-se quando se chega. E assim foi. Nem sequer se afastam as nuvens de mosquitos que andam por ali na sombra das pedras e que, à medida que se pedala Adamastor acima, nos detectam (pudera, o suor a correr pela pele deve impregnar o ambiente com aroma irresistível) e se instalam à volta da nossa cabeça como uma nuvem. E esta é uma das leis universais do BTT: se, num dia quente, pedalas a uma velocidade menor que 6 km/h, isto é, a uma velocidade inferior aquela a que as moscas voam, estás quilhado pá.




No Cebola a paisagem vê-se invertida; o céu domina, as árvores, o rio, as pedras nos vales são apenas manchas de cor, as aves de rapina que por ali planam vêem-se pelo dorso, não pelo ventre, os aerogeradores estão lá em baixo e não lá em cima. O maciço central da Estrela a Este é o único pedaço de terra que se vê quando se olha em frente,



desde que não estejamos por detrás do marco geodésico, obviamente.



Para o outro lado, a barragem de Sta. Luzia, mal se vê lá ao fundo. De lá, vê-se aqui o Adamastor imponente na paisagem, daqui vê-se barragem quase insignificante. Isto põe as coisas em contexto.



Foi para lá, para a barragem, que seguiu o ciclista extraordinário. É preciso meter na cabeça: embora pá que se faz tarde! Otherwise fica-se por ali sem se perceber como passa 1 hora. Enchidos os pulmões até aos ossos do ar fino que por ali sopra uma última vez e mil pedaladas depois, o ciclista extraordinário estava ainda muito longe da barragem, estava apenas a meio da descida, e tirou a única fotografia do regresso.


Não teria sido possível durante a subida. Arrancar na bike com a inclinação tão acentuada requer um esforço grande. Esta é a encosta do Adamastor, o caminho está à direita e é isto que se vê quando se olha em frente; a encosta íngreme, sobre o vale fundo do rio Ceira à esquerda e o planalto central da Estrela a espreitar ao centro no horizonte.

O ciclista extraordinário há-de voltar ao Adamastor antes que as folhas percam o viço e se outonem, que é como quem diz: c'est la vie



(Greg Lake)