quarta-feira, 30 de setembro de 2020

As primeiras chuvas e a brama

 Setembro 2020

Setembro, mais para finais de Setembro, é a altura da brama dos veados. Ao amanhecer e ao anoitecer os veados bramam, chamando pela fêmeas. Lutam para a constituição do harém. A luz do Sol governa os ciclos circadianos e os relógios moleculares no nosso organismo. O deles também e é pela manhã e ao fim do dia que os sons cavos ecoam pelos desfiladeiros e vales fechados da serra. As manhãs neblínicas e os anoiteceres dourados têm um efeito potenciador na brama. Ouvir no silêncio imposto pela neblina o eco da brama é uma experiência que arrepia a pele.

Foi no dia em que a chuva chegou à serra, depois da temporada quente e seca, que os ouvi. A expectativa dos aromas da terra e da urze molhadas, do brilho húmido das folhas das árvores ... impelem-me a pedalar serra acima. Era já o fim do dia e então, sem esperar, o eco da brama encheu o vale da ribeira de S. João.

Parei e comi a laranja que levava no bolso. Olhei à volta e disparei o telemóvel ao acaso:

Leitos a humedecer ainda à espera de das tempestades que hão-de fazer correr a água em fúria 





Fetos a morrer lentamente, colorindo o chão







O musgo que cobre as pedras


e as árvores a ficar viçoso, mais fosforescente, ao receber as pingas (da chuva).





Já agora, pode ser que isto seja útil:

Quem sobe a EN236 a partir da Lousã (direcção Castanheira de Pêra), por volta do km 8,5, logo após o cruzamento para a aldeia da Cerdeira, isto é, depois do monólito,


faz uma curva fechada à direita que leva à encosta Sul do vale da ribeira de S. João. A estrada serpenteia serra acima cerca de 1 km. Após a curva há outra "instalação" à beira da estrada:



de um tronco morto de uma árvore, com jeitinho nasceu o veado. A placa no tronco indica o Candal, 2 ou 3 km mais acima.



Parando o carro por ali, umas curvas mais acima, ao fim do dia, é muito provável ouvir a brama vinda da encosta oposta (sei que por ali há um harém). O silêncio cortado de tempos a tempos pelo eco do chamamento dos veados. Fim de Setembro e metade de Outubro é a altura da brama.



sexta-feira, 18 de setembro de 2020

Açor: a linha do horizonte

Agosto 2020

O estradão em primeiro plano. À medida que se ganha altitude o ar é mais fino e os aromas mais limpos. Por isso, a altitude conta. O estradão aos 1000 m de altitude. Na linha do horizonte o maciço central da Estrela aos 2000 m. Entre ambos fiz as viagens vertical e horizontal. Ida e volta. Dia quente mas, àquela altitude, soprado por um vento que fazia estremecer o corpo suado.



Pelo meio. Pelo meio vertical e horizontal, o Adamastor do Açor: o cone quase perfeito do Picoto da Cebola (ao centro, num plano à frente da Estrela).  Do picoto da Cebola vêem-se os falcões e os açores. Estas magníficas aves planam, deixam-se ir no vento para, de súbito, tomarem um rumo que definem independentemente do vento. Um coelho, um rato e lá vão eles em mergulho. Nas pedaladas que me levam ao picoto os falcões e os açores planam a uma altitude em que os vejo pelo dorso ... vejo-os por cima, olhando para baixo (e não para cima, se necessário é dizê-lo). Plano no Açor sobre os açores.


Here we go a navegar aos 1000m de altitude. Passei grande parte da minha vida umas centenas de metros acima do nível médio do mar. Devo ter o 2,3-difosfoglicerato (2,3-DPG) ligeiramente elevado. E, à medida que pedalo, o 2,3-DPG mete-se entre as cadeias da hemoglobina nos meus eritrócitos, permitindo uma oxigenação mais fácil das células musculares das minhas pernas. Depois, tal como o sonho e a bola colorida nas mãos da criança e por aí fora, o cérebro comanda a vida e pam! lá vai a acetilcolina, pam! lá vai o sódio e o potássio, pam! lá vai o cálcio, pam! lá vou eu sem pensar nisto. Pedalada após pedalada. Pedala-se como se respira. Há um momento em que vem o cansaço. Mas o que é o cansaço? Acho que ninguém sabe. Pelo menos de ponto de vista bioquímico. Ah e tal o ácido láctico acumula-se nos músculos ... sabe-se hoje que esta não é a razão biológica. O cansaço exige um pouco mais de esforço, apenas mais um pouco até que se atinge um estado em que se pedala com a mesma naturalidade com que se respira. É um estado interessante. 

A linha do horizonte de há horas atrás, no estradão das eólicas aos 1000 m, deu lugar à linha do horizonte vista do picoto da Cebola aos 1400m de altitude. A Estrela imponente logo ali, um horizonte próximo.




Para o outro lado, para Oeste, a linha do horizonte é traçada pelo recorte do Trevim, na serra da Lousã. E daqui vejo as cumeadas navegadas para aqui chegar, quero dizer percorridas, bem entendido.



Às tantas, atravessa-se-me na mente a obrigação de uns carapaus que terei que grelhar lá mais para a noite. Hei-de fazê-los como deve ser. Grelhar carapaus é uma arte só acessível a verdadeiros "experts". Tirá-los inteiros, a pele inteira e crocante, suculentos por dentro, de um azul alourado e brilhante (isto é, não deixar secar e queimar ...) ... 


A lembrança dos carapaus faz-me tomar o rumo de casa. Horas de pedaladas pela frente.
Já metido nos vales olho, de novo, o horizonte a Oeste. O Sol baixo, a luz difractada e heis que, num passe de magia, a serra da Lousã se tinge de azul. Por breves instantes. Mudo de sítio, o Sol baixa mais um pouco, algumas nuvens passam por ali e a montanha azul transforma-se novamente. 


Aqui, onde a roda da frente da minha bike pisa ao chão, a serra é amarela e verde. Amarelo seco e verde de uns heróicos arbustos que teimam em nascer e crescer nestas encostas devastadas pelo fogo há 2 anos. Também por ali os esqueletos de algumas árvores queimadas, negras, teimando também em manter-se de pé.


As sombras nos vales, o vento mais fresco e a luz pálida formam um padrão no meu cérebro que me diz: está a anoitecer.


O vale do rio Ceira e os penedos de Fajão no horizonte mais próximo. Uma visão extraordinária.



Depois vem a noite a um friozinho que se instala na "espinha" e nos faz apressar. A contemplação não tem horas, a chegada a casa tem. Não ser apanhado pela noite nas serranias, sem luz, é uma ideia que começa a martelar na cabeça. Mas o prazer de parar e ficar por ali  olhar o pôr do Sol faz-me faz-me parar e ficar por ali a olhar o pôr do Sol.