segunda-feira, 16 de julho de 2018

Tsunami nos campos de arroz do Mondego

Julho 2018


Aquilo foi crescendo, crescendo de tal modo que passei do estado "mas que é esta merda?" para a fronteira do pânico. Ia em pedalada vigorosa até ao mar. Da serra ao mar e volta em "mountain bike". Passava pelos campos de arroz do Mondego. Verdes.  Estava por ali parado, rente ao arroz, a olhar o verde e o espelho de água. As cegonhas pousadas nos campos levantaram voo mal me aproximei.



E depois vem-nos à memória, não uma frase batida, mas ante meus olhos me traziam, num engano de alma uns versos de Camões:

"nos saudosos campos do Mondego
aos montes ensinando
e às ervinhas
o nome que no peito escrito tinhas"


Mas o som crescia e quase que aposto que também sentia a terra a tremer debaixo dos pés. Sentia o som nos ossos. Naquela placidez dos campos, sob um céu imenso onde quase (quase, quase) se percebe que o mar lá se reflecte, alguma coisa estava para acontecer. Foram uns segundos longos. Um tsunami? Depois, oh caraças, é o comboio. Mas como é que passa aqui um comboio? Eu tinha atravessado uns carris ferrugentos algum tempo antes mas tinha-me esquecido. Pensei que era mais uma linha abandonada. Um comboio de mercadorias ali rente aos campos de arroz, por entre os canaviais que os limitam. Apareceu de repente, do nada, naquele ritmo constante: prrraammm pam pam, prrraammm pam pam, prrraaammm pam pam, prrraaammm pam pam, prrraaammm pam pam, prrraaammm pam pam ...


Foi-se e o silêncio voltou como se nada se tivesse passado. E, bem vistas as coisas, nada se tinha passado.


Segui. Já sentia o ar salgado, a maresia a entrar-me pelo nariz. Puro engano, claro, faltavam ainda uns 20 e tal quilómetros para o mar. Depois cheguei e o mar lá estava.


Na volta, a noite quase que me apanhou. A viagem era longa, mais de sete horas em cima do selim, fora as paragens. O céu já amarelava e alaranjava em tons de por-do-sol quando avistei a serra ainda ao longe. Nas encostas a Este (opostas ao lado onde se põe o Sol), a luz reflectia-se nos vinhedos que revestiam o solo, em ondas. Belíssimo.


Trazia o Sol nas costas e sentia-o a morrer. Pedalei com pressa. Quando cheguei à vila já as luzes das ruas estavam acesas. A viagem acabou com o dia. É bom assim.


segunda-feira, 9 de julho de 2018

Anoitece nas serranias

Serra do Açôr
Julho 2018


Não é a transição do dia para a noite. O anoitecer não é uma passagem como quem cruza uma ponte para a outra margem. O anoitecer é o anoitecer, tal com a manhã é a manhã. Não é só a paisagem que muda. Nós também. A luz tem influência nos ciclos circadianos que influenciam (governam?) o nosso organismo, a nossa fisiologia. Não me surpreende, portanto, que os "olhos" com que vemos o anoitecer sejam outros que não aqueles com que olhamos o Sol do meio-dia.

No anoitecer nas serranias respira-se até aos ossos. O ar impregna-nos. Tanto mais hoje, um os primeiros dias quentes do ano. A aragem começa a refrescar. Tudo se aquieta. Nem tudo, percebem-se nas escuridão olhos brilhantes, tal como as luzes das aldeias encravadas nos vales. Distinguem-se vultos que esvoaçam, fugazes. Caçadores nocturnos. Para alguns animais a noite é a manhã de outros.


Na paisagem os vales ficam indistintos, cobertos de neblina. Sobressaem os cumes, como ilhas no mar gasoso e volátil.


(Sobre a albufeira da barragem de Sta. Luzia percebe-se ainda, na linha do horizonte ao centro-esquerda, o planalto central da Serra da Estrela)

Devagar, muito devagar a luz vai morrendo nas serranias.

E ao pedalar a esta hora pelas serranias - agora que penso nisso e que preciso de uma palavra para acabar a frase - fica uma sensação de despojamento.

(Penedos de Fajão na serra do Açôr)




segunda-feira, 2 de julho de 2018

Domingo por las doze de la tarde antes da tormenta

Serra da Lousã
Julho 2018

Há muito anos, quando era muito novo, era vulgar trovoadas noturnas abaterem-se sobre sobre a vila,  lá no sopé da serra onde vivia. Tão certo como Abril águas mil, a electricidade faltava pouco depois.  Era bem sabido. Casas, ruas, céu, tudo às escuras. Um escuro fundo que, cortado pelos relâmpagos, tornava o escuro uma experiência perturbadora: não era escuridão mas a ausência completa de luz. Eu achava a trovoada sobre a serra uma coisa deslumbrante. Os trovões ecoavam e o som andava por ali em sucessivas vagas, os relâmpagos iluminavam durante uns segundos as encostas e a vila e depois aquilo ia-se repetindo, eu sempre na expectativa do próximo trovão seguido do clarão do relâmpago. A maioria da pessoas fechava-se em casa, janelas fechadas, à luz de velas.. Eu vinha sempre para a porta ou para janela. Ficava fascinado. Lá tinha que resistir aos apelos (to say the least) da minha mãe para sair dali e ir para dentro. E havia o cheiro, o cheiro a trovoada. Não apenas o cheiro da terra mas o da trovoada. Sei hoje que é o ozono. As descargas eléctricas geram ozono. Muitas vezes a trovoada vinha com chuva em torrente, gotas grossas, rápidas que batiam nos telhados, ricocheteavam no chão e nos objectos, fazendo um barulho intenso. Outras vezes era granizo.
Se na vila era assim, na serra a coisa era elevada ao cubo. Mil vezes mais intensa, mil vezes mais arrepiante. Um dia, acampado no Vale do Rossim, nas Penhas Douradas, no coração da serra da Estrela, percebei o que era estar "no centro" da trovoada. Os trovões sentiam-se nos ossos, sobretudo no esterno (quando se está num concerto em frente à colunas dos baixos sentem-se, do mesmo modo, os graves no esterno) e a simultaneidade de clarões e do eco dos trovões que parecia vir das entranhas da terra e não do céu deixou-me num sobressalto mas, ao mesmo tempo, encantado. Uma coisa do outro mundo.

Ainda hoje, onde vivo, quando há trovadas fico sempre na expectativa que a luz em casa e na vila "vá abaixo". Mas, claro, hoje os sistemas são mais estáveis e isso raramente acontece.

Pedalei serra acima. Precisava de lonjuras, de estender a vista sobre os horizontes. Na subida encontrei um companheiro com quem dei belas e muitas pedaladas há anos atrás. Pedalámos algum tempo juntos, saboreando a companhia mútua e refrescando laços de companheirismo. O tempo ameaçava uma bela chuvada e, por vezes, ouvia-se um rugir ao longe vindo do céu. A trovoada andava por ali.
Chegados ao planalto, aos mil metros, separámos-nos. Virei para Sul, para os lados das serranias sobre o vale da ribeira de Alge.


Chão duro, rude e belo. Os pequenos tufos arbustivos são tojos misturados com flores que, vistos ao nível do chão, são mais exuberantes




De vez em quando, os trovões longínquos lembravam-me que talvez fosse boa ideia ir descendo e sair dali do planalto. O vento era forte. Um vento forte e bom. Morninho.

Desço pelo Gondramaz? Mas se a borrasca me apanha pelo caminho estou a dezenas de km de casa. Pela meia encosta, pelo caminho que vai dar à floresta? Pois, é isso mesmo. As árvores sempre dão alguma protecção em caso de chuva torrencial. E vamos embora que se faz tarde. Segui, tentando apanhar o caminho que me levaria à floresta. Tinha 800 m em altitude para descer até ao vale.




 Às tantas ... mas que raio ?!. O caminho estreito que conhecia estava transformado num estradão. Provavelmente mais umas das "medidas preventivas" contra incêndios.





Apanhei uma boa velocidade. Uns bons 15 minutos a pedavelejar pelo estradão sobranceiro ao vale, entre os calhaus e as nuvens. Estas, à minha frente eram brancas mas pelas costas aproximavam-se ameaçadoras, negras, puxadas a vento, a querer cobrir o céu. Mas, no fundo estava a borrifar-me para as nuvens; queria lá saber se a trovoada me apanhava ali, se iria chover a cântaros - não me vou deixar empurrar pela borrasca. Fui pedalando em grande gozo. 




Fiz o estradão. Começava a cheirar intensamente a chuva. Pois é, a chuva também se cheira. De vez em quando caíam umas pingas vindas de longe arrastadas pelo vento. Desci uma cascalheira bem inclinada para sair do estradão e entrei na floresta. Entrei com vontade de a passar rapidamente e descer mas ... tudo tranquilo. Ouviam-se sons de passarada e de paus e galhos e pedras pisados e partidos sob as rodas da bike. De vez em quando um riacho. Mas tudo tranquilo.


Parei. Ao contrário da ventania que tinha sentido lá em cima, ali apenas uma brisa agitava as folhas das árvores. Fiquei com aquela sensação familiar de que alguma coisa está para acontecer. Fiquei por ali algum tempo. Bem sabia que andava por ali sozinho. Quase que desejava que a tormenta me caísse em cima. No bolso de trás da camisola levava o impermeável da Louis Garneau. Esse detalhe dava-me muita segurança.



Ao chegar ao vale, após a descida, o céu desabou-me em cima da cabeça. Era seguramente disto que os irredutíveis Gauleses (Asterix e companhia), temerosos, falavam: que o céu lhes caísse em cima da cabeça. Uma cortina de água torrencial, trovões e uns relâmpagos. Uma festa.