segunda-feira, 2 de julho de 2018

Domingo por las doze de la tarde antes da tormenta

Serra da Lousã
Julho 2018

Há muito anos, quando era muito novo, era vulgar trovoadas noturnas abaterem-se sobre sobre a vila,  lá no sopé da serra onde vivia. Tão certo como Abril águas mil, a electricidade faltava pouco depois.  Era bem sabido. Casas, ruas, céu, tudo às escuras. Um escuro fundo que, cortado pelos relâmpagos, tornava o escuro uma experiência perturbadora: não era escuridão mas a ausência completa de luz. Eu achava a trovoada sobre a serra uma coisa deslumbrante. Os trovões ecoavam e o som andava por ali em sucessivas vagas, os relâmpagos iluminavam durante uns segundos as encostas e a vila e depois aquilo ia-se repetindo, eu sempre na expectativa do próximo trovão seguido do clarão do relâmpago. A maioria da pessoas fechava-se em casa, janelas fechadas, à luz de velas.. Eu vinha sempre para a porta ou para janela. Ficava fascinado. Lá tinha que resistir aos apelos (to say the least) da minha mãe para sair dali e ir para dentro. E havia o cheiro, o cheiro a trovoada. Não apenas o cheiro da terra mas o da trovoada. Sei hoje que é o ozono. As descargas eléctricas geram ozono. Muitas vezes a trovoada vinha com chuva em torrente, gotas grossas, rápidas que batiam nos telhados, ricocheteavam no chão e nos objectos, fazendo um barulho intenso. Outras vezes era granizo.
Se na vila era assim, na serra a coisa era elevada ao cubo. Mil vezes mais intensa, mil vezes mais arrepiante. Um dia, acampado no Vale do Rossim, nas Penhas Douradas, no coração da serra da Estrela, percebei o que era estar "no centro" da trovoada. Os trovões sentiam-se nos ossos, sobretudo no esterno (quando se está num concerto em frente à colunas dos baixos sentem-se, do mesmo modo, os graves no esterno) e a simultaneidade de clarões e do eco dos trovões que parecia vir das entranhas da terra e não do céu deixou-me num sobressalto mas, ao mesmo tempo, encantado. Uma coisa do outro mundo.

Ainda hoje, onde vivo, quando há trovadas fico sempre na expectativa que a luz em casa e na vila "vá abaixo". Mas, claro, hoje os sistemas são mais estáveis e isso raramente acontece.

Pedalei serra acima. Precisava de lonjuras, de estender a vista sobre os horizontes. Na subida encontrei um companheiro com quem dei belas e muitas pedaladas há anos atrás. Pedalámos algum tempo juntos, saboreando a companhia mútua e refrescando laços de companheirismo. O tempo ameaçava uma bela chuvada e, por vezes, ouvia-se um rugir ao longe vindo do céu. A trovoada andava por ali.
Chegados ao planalto, aos mil metros, separámos-nos. Virei para Sul, para os lados das serranias sobre o vale da ribeira de Alge.


Chão duro, rude e belo. Os pequenos tufos arbustivos são tojos misturados com flores que, vistos ao nível do chão, são mais exuberantes




De vez em quando, os trovões longínquos lembravam-me que talvez fosse boa ideia ir descendo e sair dali do planalto. O vento era forte. Um vento forte e bom. Morninho.

Desço pelo Gondramaz? Mas se a borrasca me apanha pelo caminho estou a dezenas de km de casa. Pela meia encosta, pelo caminho que vai dar à floresta? Pois, é isso mesmo. As árvores sempre dão alguma protecção em caso de chuva torrencial. E vamos embora que se faz tarde. Segui, tentando apanhar o caminho que me levaria à floresta. Tinha 800 m em altitude para descer até ao vale.




 Às tantas ... mas que raio ?!. O caminho estreito que conhecia estava transformado num estradão. Provavelmente mais umas das "medidas preventivas" contra incêndios.





Apanhei uma boa velocidade. Uns bons 15 minutos a pedavelejar pelo estradão sobranceiro ao vale, entre os calhaus e as nuvens. Estas, à minha frente eram brancas mas pelas costas aproximavam-se ameaçadoras, negras, puxadas a vento, a querer cobrir o céu. Mas, no fundo estava a borrifar-me para as nuvens; queria lá saber se a trovoada me apanhava ali, se iria chover a cântaros - não me vou deixar empurrar pela borrasca. Fui pedalando em grande gozo. 




Fiz o estradão. Começava a cheirar intensamente a chuva. Pois é, a chuva também se cheira. De vez em quando caíam umas pingas vindas de longe arrastadas pelo vento. Desci uma cascalheira bem inclinada para sair do estradão e entrei na floresta. Entrei com vontade de a passar rapidamente e descer mas ... tudo tranquilo. Ouviam-se sons de passarada e de paus e galhos e pedras pisados e partidos sob as rodas da bike. De vez em quando um riacho. Mas tudo tranquilo.


Parei. Ao contrário da ventania que tinha sentido lá em cima, ali apenas uma brisa agitava as folhas das árvores. Fiquei com aquela sensação familiar de que alguma coisa está para acontecer. Fiquei por ali algum tempo. Bem sabia que andava por ali sozinho. Quase que desejava que a tormenta me caísse em cima. No bolso de trás da camisola levava o impermeável da Louis Garneau. Esse detalhe dava-me muita segurança.



Ao chegar ao vale, após a descida, o céu desabou-me em cima da cabeça. Era seguramente disto que os irredutíveis Gauleses (Asterix e companhia), temerosos, falavam: que o céu lhes caísse em cima da cabeça. Uma cortina de água torrencial, trovões e uns relâmpagos. Uma festa.




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