sábado, 23 de janeiro de 2021

E veio o grande nevão ou o lado B do post anterior

 Janeiro 2021

No dia anterior, o dia do último post, as pedaladas foram à neve, sob a neve. No dia seguinte, o dia deste post, as pedaladas são sobre a neve e sob céu azul, Bem, azul ao início, no vale, mas plúmbeo acima dos mil metros.

Tve que seleccionar criteriosamente os sítios para parar, encostar a bike e disparar as fotografias. Durante a subida, quando, na berma da estrada, a erva e arbustos começaram a surgir cobertos de uma fina camada branca e as estalactites de gelo nas pedras, a vontade era grande. Não é apenas o problema da bateria do telemóvel que esvazia em poucos minutos ao frio. É também tirar as luvas. As luvas não podem ser volumosas, impediriam o manuseamento fino da bike (travões, mudanças etc). As minhas têm um forro em Merino e uma capa exterior windstopper. O risco é que, uma vez tiradas, o forro saia e, com as mãos geladas e insensíveis, a probabilidade de as tornar a calçar ficar próxima de zero. Tão mais próxima quanto mais tempo as demorar a calçar.

A primeira paragem foi num bosque branco e fractal. E, antes que o telemóvel desmaiasse, disparei duas vezes. Mais além e mais aquém. Clic, clic. Pelo menos duas já estavam. Numa volta anterior, consegui apenas um disparo. Tinha o dobro.




Mal regressei à estrada: outra. Clic.  Estava à espera que a todo o momento surgisse a mensagem irritante: low batery. Ou pior que isso; estar para ali entusiasmado a focar isto ou aquilo e, às tantas, meio segundo antes de disparar, o ecrã ficar subitamente escuro com a bateria a zero e a florzinha de estufa desligada.

Lá tive que tirar outra vez as luvas e fazer a ginástica habitual para as calçar de novo.


Vamos dosear isto pá. Não podes estar sempre a parar. Pois, mas quanto mais tempo ao frio, maior a probabilidade do telemóvel pifar, tenho que ir fazendo uns disparos. Põe essa merda num sítio quente pá. Olha, junto aos coisos. Entre as pernas? entre as pernas não dá pra pedalar e, além disso, tenho que o guardar num sítio de fácil acesso, em que o consiga tirar sem me desagasalhar.

A discussão entre o meu hemisfério esquerdo e o direito continuou por algum tempo até que, juntando-os a ambos, em apenas um cérebro, cheguei a uma resolução:

no bolso interior da "intermediate layer" (pois, é que o equipamento é cuidadosamente seleccionado e há linguagem técnica que é difícil traduzir para a língua dos treinadores de futebol tugas) é o melhor sítio; há apenas um ligeiro arrefecimento das nádegas, um friozinho que se insinua por ali adentro mas localizado, quando se levanta a parte de trás do blusão para ter acesso ao bolso interior da intermediate layer (que, no caso, e já que falei novamente disto, era uma camisola de mangas compridas em lã merino e tecnologicamente desenhada de modo a expulsar o suor da pele - e que custa os olhos da cara).

Na EN236, os pneus derrapavam. Meti-me por uma caminho de terra, quero dizer, de neve. Os pés é um dos maiores problemas. Sempre com cuidado para evitar pôr o pé na neve. A neve infiltra-se lentamente, ensopa e suga rapidamente o calor dos pés, deixando-os aos gritos.

Clic, clic, clic, clic, ... 









Por aqui, por ali, a volta pelo outro lado, uma queda estúpida e sem história na curva da estrada coberta de gelo (pois claro, deveria saber que naquela curva corre água e só quando me vi me cima de gelo percebi o que iria acontecer), uma massagem na anca do lado esquerdo, tentando que a dor passasse (e também para umas expressões tabernáculas que, como é sabido, aliviam os nervos) e a decisão final de ir ver a floresta junto à fonte.



Às tantas ... o Sol ! Como num filme, os raios de Sol começaram a surgir por entre as árvores do caminho, a luz reflectida na neve ... tudo muito belo ... durante uns segundos, é que, logo depois, o frio obrigou-me a prosseguir. Mas, houve ali uns instantes em que, sem luvas, de telemóvel na mão a disparar e a olhar à volta, não senti frio. 









O caminho levou-me ao outro lado da floresta, ao estradão que, seguindo-o, me levaria ao cimo da serra.
Estava aos mil metros.


"Um pouco mais de azul, eu era além", quero dizer, uma pouco mais e o horizonte abriria, os cumes nús ficariam à vista e ... cá estão. O Trevim à vista (1200 m na antenas). Curiosamente, menos neve aqui que nos bosques e na floresta a menor altitude. A exposição ao Sol que, de vez em quando, espreitava por entre as nuvens foi derretendo a neve.





Andei por ali mais algum tempo, sem plano, a lavar as vistas, a deixar-me levar por coisas sem importância; as ervas geladas, o recorte da copa das árvores contra o céu, o vento de noroeste, a vontade de olhar para o outro lado, para o Santo António da Neve, as cores sem fulgor mas belas, os caminhos to nowhere ...
Come d'habitude, a descida foi feita com a determinação bem presa entre os dentes cerrados. O arrefecimento vai lentamente entrando nos ossos à medida que os quilómetros passam sem gerar calor (sem pedalar em esforço), primeiro nas extremidades e, depois, propagando-se a todo o corpo como a sombra que invade os vales ao por-do-Sol.

E, a despropósito, embora goste de vozes femininas (e vêm-me à memória a Elis Regina, a Sarah  Maclachan, Dionne Warwick, Dinah Washington ... ) e não goste de vozes sussurradas, sobretudo masculinas, gosto de vozes francas e abertas (e, das masculinas, assim de repente, vêm-me à memória Peter Gabriel, Ian Anderson dos Jethro Tull, Roger Daltrey dos Who ...), dei com uma parceria do Eric Clapton com ... Luciano Pavarotti e o East London Gospel Choir:









sábado, 9 de janeiro de 2021

Vem aí um grande nevão + videozinhos ao Sábado sob flocos de neve + Mozart em assobio

9 de Janeiro de 2021

Céu de chumbo sobre a serra. Aquele cinzento enigmático que, quando sobre a serra, a minha avó chamava de céu de chumbo. E um frio de rachar, outra expressão que ela usava. Não há céu de chumbo sem frio de rachar. O frio que se mete pele dentro até aos ossos. Neve. É o que o céu de chumbo anuncia. Quando se põe um céu de chumbo e um frio de rachar quem vive a olhar o céu, as estrelas, as árvores e os riachos, as pedras cobertas de líquenes, sabe que vem neve. Ou melhor, sabe que vem lá neve!

Serra acima, pedaladas vigorosas para aquecer e logo aos cerca de 400 m começaram a cair uma gotas miúdas de chuva que não eram chuva; eram pequenos flocos de neve. Aos 400 m. Um grau Celsius. À volta, os vales e os montes desfocados pela cortina dos pequenos flocos. Isto vai aquecer, quero dizer, isto vai pegar, não à volta a dar, quero dizer, ainda não vou dar a volta, vou mais um pouco até mais acima.

As luvas, o blusão, o guiador da bike começavam a cobrir-se de branco. Estava na altura de vestir o impermeável, enfiar a balaclava, e tomar decisões. Na curva da estrada, sobre a copa de uma mimosa, parei. Ali, abrigado, "olhei lá para fora" e era nítido que as cores esbranquiçavam, que "a neve caía leve, levemente como quem chama por mim, branca e leve, branca e fria, caía do azul cinzento do céu." (Augusto Gil, balada da neve) Estava tomada a decisão: continuar e logo se via.



Logo depois, fiz o videozinho. Breve, para poupar a bateria do telemóvel.
And let´s look at the trailer



A bateria parecia aguentar-se. Logo depois, no cruzamento para a Cerdeira, fiz outro.





Olhei para trás, tentando vislumbrar os cumes da serra, Debalde, a brancura da atmosfera diluía os contrastes.


Mais um pouco e chegava ao Candal, a única aldeia do xisto na subida da EN236.






No Candal alguns carros invertiam a marcha outros paravam. Há muitas casas habitadas e percebia-se que as pessoas vinham para ficar. Sacos de plástico na mão ruelas acima. Segui. O tempo fechava a cada pedalada. Atingi a curva da fonte espinho. Surpreendentemente o telemóvel ainda tinha bateria. OK, mais um videozinho.



Até então, a neve caía "com estranha leveza e nem uma agulha bulia na quieta melancolia dos pinheiros do caminho (balada da neve)". De súbito levantou-se uma ventania, os flocos de neve esvoaçavam em todas as direcções. Branco a toda a volta. Vinha aí um grande nevão. A bike derrapava na estrada coberta já por dois dedos de neve. Estava na altura de voltar para trás mas ... só mais um pouco e ... o costume. Arrisquei. O telemóvel a zero. Mais um pouco. Mais um pouco. Custa voltar para trás. Mais um pouco. Passou um jipe para baixo, abriu a janela: olhe que está tudo cheio de neve. OK, obrigado. Mais um pouco. A descida conta-se em duas palavras: lenta e fria.

 







sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

Pedaladas de uma fotografia só

 1 de Janeiro de 2021

O tempo ia bera. Não era apenas o frio, as nuvens negras velozes que passavam por cima da cabeça mas sobretudo as gotas de água arremessadas pelo vento e contendo cristais de gelo. Uma carga de água de ensopar os ossos de algum modo desfocaria a atenção do ciclista extraodinário das paisagens brancas que antevia no cimo da serra. Vou, não vou. Espero mais um pouco. Então, o ciclista extraordinário, tal como os druidas gauleses, observou as nuvens e o voo das aves. Viu o futuro nas entranhas de um coelho. Embora o coelho tirado do frigorífico para o almoço não tivesse entranhas, em todo o caso o ciclista extraodinário viu o futuro nos músculos e nas costelas do coelho (uma inovação face à tradição dos druidas). Ainda com dúvidas sobre as previsões atmosféricas, o ciclista extraodinário complementou a leitura do voo das aves e das entranhas do coelho com a consulta do MeteoBlue na net: 80%  de probabilidade de chuva para as 2h seguintes (o que quer que istso signifique).  Vou, não vou? Nestas cocasiões, desce sobre o ciclista extraodinário uma grande calma, o ciclista extraodinário entra num estado de transe, pergunta quem é, de onde vem, para onde vai e, como de costume, chega a um estado de clarividência, a uma conclusão isenta de dúvidas: que se foda, vamos a isto.

As primeira pedaladas foram furiosas, serra acima sempre com um olho no horizonte a Sudoeste (de onde vem o tempo que afecta a serra). A meia encosta, na curva da estrada, abre-se o vale e vislumbra-se a cumeada acima dos 1000 m; tudo branco a partir dos 800m. O Trevim (cume aos 1200m) envolto num banco de nuvens. A temperatura ia descendo; 7,  5, 4 ... e, ao chegar ao planalto dos 900 m, 3 graus C. As previsões vistas nas entranhas do coelho confimar-se-iam; nem uma pinga de chuva, para além das sacudidas das árvores. Os bosques brancos e envoltos na neblina branca. A paisagem branca cortada pelos ramos e vultos escuros das árvores. Vento. Mais e mais e, já na subida final, o ciclista extraordinário parou a cerca de 2 km do cume para vestir o blusão impermeável adicional, colocar o lenço (pescoço e cabeça), enfiar a balaclava e puxar pelo telemóvel guardado no bolso traseiro para tirar umas fotografias. Tarefa difícil quer com luvas quer sem luvas. No primeiro caso devido a falta de sensibilidade para achar o telemóvel  e no segundo caso porque a temeratura que  o GPS registava eram 2 graus C negativos e as mãozinhas ao léu ficam humidas e geladas. A parte em que o ciclista extraodinário pôs outra coisa ao léu numa emergência fisológica nem vale a pena falar mas envolve também dificuldade em se achar.

Tal como tinha acontecido noutras ocasiões o telemóvel do ciclista extraodinário, devido ao frio, esvaziou a bateria (passou dos 70% para os 1% em 2 segundos). Houve apenas tempo para um disparo. Foi um samba de uma nota, quero dizer, foi uma volta de uma fotografia só.


 
Luvas calçadas, porra do telemóvel no bolso, e o ciclista extraordiário fez-se ao que faltava da subida; 2 km em asfalto. A neve na estrada fazia patinar a bike e lembrava que a descida seria adrenalínica, to say the least. Um carro ou outro tentava subir. Patinavam tal como o cilcista. Às tantas, o cume foi atingido. Ventania. Nevoeiro. Frio. Neve. E, apesar de os dedos dos pés e das mãos começarem a entrar em estado de hibernação, o ciclista extraodinário deu por si a sorrir entre o ranger de dentes e umas imprecações tabernáculas. Durante a descida abriam-se umas clareiras no nevoeiro, originando visões extraodinárias da neblina rápida sobre a serra, de recortes brilhantes de nuvens iluminadas por raios de Sol que vinham não sabe bem de onde. Extraordinário. Cerca de uma hora depois o ciclista extraodinário atingia o vale. Dor no peito e nas maxilas de tão contraídas durante a descida. Sensação bem conhecida. Dedos quase insensíveis e na capacidade limite para travar ou meter mudanças. C'est la vie. Estava dada a primeira de 2021.