domingo, 12 de dezembro de 2021

O ciclista extraordinário foi ao alto, lá ao alto

 Dezembro, 11, 2021

- Vai lá ao alto?

- Vou.

- Deve lá estar frio.

- Não importa. Vou lá ao alto.

- Boa viagem.

- Obrigado e até mais logo, hopefully.


Quando o ciclista extraordinário se mete a caminho da serra e passa na aldeia logo a seguir à vila, o amigo Joaquim - por regra anda sempre por ali a tratar da horta ou do quintal - saúda o ciclista e pergunta: vai lá ao alto?

Nem sempre o ciclista extraordinário vai lá ao alto, aos 1200 m, ao alto de onde se avista o mar e a Estrela, o Caramulo e o Marão. Desta vez, o ciclista extraordinário foi lá ao alto. Às vezes, não há tempo para ir lá ao alto. Hoje, a coisa compunha-se para o ciclista andar pela serra despreocupado, sem a pressão do relógio - não do tempo mas do relógio, do relógio que nos marca as horas para fazer o que parece inadiável mas que, vistas as coisas a 10 000 m de altitude, quase não têm qualquer interesse.

Lá foi ao alto. Para chegar ao alto é preciso um bom par de horas, um ranger de dentes aqui e ali, um desabafo tabernáculo nas rampas mais íngremes e, sobretudo, facilidade em entrar em "mind wandering"; pedalar serra acima sem consciência de se estar a pedalar serra acima, com a cabeça nas nuvens, e nos riachos, e nas rapinas que levantam vôo mesmo à frente, e na aragem, ora mais húmida ora mais suave, e nos ruídos que se pressentem na mata ...

Quando o ciclista extraordinário chegou lá ao alto, do alto via-se um manto de nevoeiro até ao mar.

O vento trazia o nevoeiro serra acima pelo vale da ribeira de são João que, ao chegar lá ao alto, se dissipava. Por vezes formavam-se clareiras na mancha branca que deixavam ver as povoações lá em baixo no vale.



O nevoeiro daqui, daqui do alto, até ao mar.





Depois de ter chegado lá ao alto, e de por ali ter estado a olhar lá do alto, o ciclista extraordinário iniciou a descida pela estrada nacional. A 50 km/h numa rampa de 10% parecia que o ciclista extraordinário tomava balanço para se lançar sobre as nuvens.


Logo depois, à medida que o ciclista extraordinário pedalava transversalmente ao vale que se abre do cimo  da serra até lá em baixo, golfadas de nuvens surgiam furiosas serra acima.



15 minutos depois, cerca dos 1000 m de altitude, o ciclista extraordinário passou a fronteira, claramente uma fronteira; em cem metros passou do céu azul sobre a cabeça para as penumbras da floresta


Era já outra dimensão do tempo e do espaço. Indescritível. O ar denso e húmido picava a ponta da língua, a luz inimaginável envolvia a floresta.


E o ciclista extraordinário pedalava por ali fora ...



Mais abaixo, no bosque dos carvalhos (souto, não é?), a luz, depois de ter viajado 150 milhões de Km, rasgava a neblina - melhor, queimava o vapor de água - atingindo a terra, perdendo a energia que trazia desde o Sol, de onde tinha partido oito minutos antes. E o ciclista extraordinário pensava nesta viagem da luz enquanto disparava o telemóvel ao acaso, congelando aquele momento em imagens. Nestas:















Cá em baixo, o ciclista extraordinário não encontrou o amigo Joaquim para lhe dizer que tinha ido lá ao alto.