domingo, 26 de março de 2017

Mais um bocadinho depois do equinócio ou este ano temos neve com fartura

Março 2017, Serra da Lousã


A partir de certa altura já não foi possível tirar as luvas. Sabia que, caso as tirasse, dificilmente as conseguiria calçar de novo. E isto, parecendo um detalhe, é mesmo um detalhe. Mas, como é bem sabido, o diabo está nos detalhes. Descer sem luvas com temperaturas reais negativas leva a que não sintamos as manetes dos travões e isso, insensibilidade para travar em cim da bike, ... não é bom. Por isso, as fotografias foram escassas. Aos 900 m já havia neve. Mas cheguei lá com os pés ensopados e frios, a perder calor pelos pés como se fossem um funil e o meu corpo um pipo de vinho; é que parte da subida foi feita sob chuva. Aos 900 m o tempo tempestuoso abriu umas brechas e vamos mas é aproveitar para comer o pão de leite com marmelada, enfiar o lenço no pescoço, correr os fechos, ir ali atrás de uma árvore num instante e tirar umas fotografias enquanto se consegue. Lá mais para cima - cheguei ao Trevim aos 1200 m onde estava uma ventania infernal e um tipo com um jipe que insistiu em me tirar uma fotografia - até desmontar da bike seria penoso.
E foi mais um dia de neve na serra e mais umas pedaladas por ali acima até à neve com períodos de stresse intenso, frio, vento, granizo na cara; o organismo, os orgãos, as células a responderem ao stresse, a activarem vias de sinalização que alteram a expressão de genes, o metabolismo a afinar, mantendo a homeostase. E, em cima disto, surpreendentemente, os mecanismos de recompensa no cérebro a funcionarem, a dopamina a disparar e vai-se por ali a pedalar neste estado com os dentes cerrados pois esta é a forma possível de sorrir quando os músculos da cara estão gelados. Esta é a minha visão da coisa. Outros veriam uma tolice, ou viriam com conversas clínicas de algibeira sobre a hipotermia e as consequências nefastas da exposição à intempérie e o perigo de não sei quê e o quentinho é que é bom (ah, eu gosto do quentinho) mas, de facto (quando se escreve "de facto" já se sabe que se quer impressionar), as situações de stresse são o dia-a-dia das células. E, de facto (!!!), o stresse de baixa intensidade é benéfico para a saúde. E já me ia a lançar para a "hormese", e a afirmar que este conceito científico se pode confundir com a homeopatetice, e que estas coisas da toxicologia e de efeitos nefastos de compostos para a saúde está cheia de dogmas, mas o plano inicial era apenas colocar aqui duas ou três fotografias. Sem mais delongas, um cheirinho da serra da Lousã com neve:





























No Trevim (o tipo do jipe lá me tirou a fotografia)



sexta-feira, 24 de março de 2017

Um bocadinho depois do equinócio da Primavera


Amanhece. Três graus Celsius. As cerejeiras brancas aqui e lá ao fundo imersas no nevoeiro denso e branco.  O Sol branco e frio.  Oito da manhã, passámos o equinócio da Primavera há duas rotações da Terra atrás. As cerejeiras, vivas, responderam. Não sabem é que a órbita da Terra é quase circular e que a inclinação do eixo de rotação não varia.








domingo, 19 de março de 2017

The great wilderness ou a jovem ribeira de S. João

Serra da Lousã

Às vezes basta parar. Vai-se por ali fora a pedalar, ouve-se um riacho a cantar e basta parar. Ver de onde vem, se é possível segui-lo, o que nos diz o som sobre a natureza do riacho, se é calmo, ou selvagem, ou se vem de longe ... Depois, seguindo-o, o entusiasmo cresce à medida da beleza à volta e é difícil não ir mais e mais e mais.

Onde muitas vezes passo, numa ponte sobre a ribeira de S. João, decidi parar e ir dar uma vista de olhos à ribeira. Meti-me por um caminho que acabava logo ali, escondi a bike nuns arbustos, atirei com uns pedregulhos para o meio da ribeira no local mais estreito que encontrei, de modo a ter um ponto de apoio para saltar, passei para o outro lado e comecei a subir, seguindo-a na direcção da nascente.



Os sapatos de encaixe, sapatinho de sola rígida com aplicações de metal, são traiçoeiros para caminhar nas pedras mas as minhas competências a saltar pedras foram solidamente cimentadas durante a infância e adolescência nos pedregulhos da Estrela. Bem, não evitaram derrapanços, mas impediram que molhasse os pezinhos e o resto do corpinho. Uns percalços aqui e ali em que me agarrei a silvas para manter o equilíbrio (em coreografias que grupos de dança contemporânea mais radicais não desdenhariam ensaiar) mas, tirando isso (e tirando os espinhos das mãos), nada de especial.

Às tantas, numa curva, rolling stones, denunciando que nas invernias a ribeira corre furiosamente.



Na margem do lado esquerdo havia um "caminho" de pedras, um convite para continuar. Cheguei a um sítio muito bonito; a corrente mais tranquila, pedras nuas e outras cobertas e musgo, troncos partidos e caídos, desalinhados, o chão coberto ainda com as folhas outonais caídas dos castanheiros.





e ... um exuberante arbusto de azevinho. Ali à direita.




Fiquei por ali. Fiz um vídeo.


Às vezes basta parar e ir espreitar.






flores amarelas e a consequente oxidação

Fotografias avulso das últimas pedaladas

Nas últimas duas semanas sempre que pedalava pelos túneis de acácias, se uma brisa se levantava, era como se estivesse a nevar. Mas uma neve amarela e com um cheirinho bom.
Em meia dúzia de dias, as acácias explodem em flor. O amarelo forte das acácias liga bem com o seu aroma intenso. Para quem sofre de asma é um pesadelo. Tenho a sorte (é mais uma deficiência) de não ter alergias. O capacete, o blusão e até as mudanças da bike ficam salpicadas de pequenas flores amarelas.
Depois, sobretudo se vêm umas chuvadas, as flores caem massivamente, cobrindo o chão de amarelo. Uns dias depois estão castanhas, oxidadas. O ambiente gasoso onde vivemos, devido ao alto conteúdo em oxigénio, é oxidante. Até no interior das nossas células o oxigénio pode oxidar biomoléculas, em processos mediados por radicais livres.







Um pouco mais acima, ganhando altitude, são os azuis.






Quando pedalo tento não me esquecer de olhar para todos os lados, incluindo o lado de cima.










domingo, 5 de março de 2017

O sonho da neve

Nevão em Fevereiro, dia 4, na Serra da Lousã


Eram três da manhã. O friozinho que se meteu pelas frestas das portas acordou-me. A cachorra, deitada à porta do quarto, dormia a sono alto, fazendo ruídos guturais estranhos que denunciavam um sonho, acho eu.  A cachorra seguramente que sonha. Levantei-me ensonado para ir à casa de banho e, enquanto procurava o tapete com os pés para evitar o chão frio, um arrepio levou-me a pensar que lá em cima, no planalto da serra, no Trevim, a neve deveria estar a cair. Não me lembro se me custou a re-entar no sono mas o sonho acordou no meu cérebro paisagens fractais



No sonho pedalava na orla do bosque de Faias aos 1100 m de altitude





Pela manhã, despachei-me rapidamente no mercado. Sim, levo essa dourada. Quanto é? É para amanhar, já cá passo. Laranjas, maçãs de bravo esmolfe, uma molhada de grelos, salsa, figos secos, um cacho de tomates e umas batatinhas novas. A caminho de reaver a dourada já amanhada reparei que a padeira estava sem fila. Óptimo. Uma bolo de Ançã, por favor. Dois euros e meio. E rapidamente para casa que a manhã vai adiantada e tenho duas horas de pedalada até lá cima. Até à neve. Os sonhos não enganam.

Oito graus centígrados. Lá em cima talvez uns 2 ou menos.  Portanto, três camadas: base layer, casaco de fleece de aquecimento e blusão corta vento/impermeável (o casaco). Luvas impermeáveis porque às tantas levo com uma chuvada em cima, ou um nevão.
Pedalei com com pressa. Serra acima. Logo nos primeiros Km, pelo vale da ribeira de S. João, as encostas ainda amarelas. A chuva tinha feito tombar muitas flores das acácias mas muitas outras ainda resistiam.


Amarela aos 300. Estaria branca a serra aos 1000 m?
Na curva do caminho, no cruzamento para a Cerdeira, tem-se a visão do cume. Olhei para cima. Nevado. Estava. Pedalei como um autómato, imaginando o chão da floresta branco, O céu branco. O silêncio.

Uns salpicos de neve começaram a aparecer na berma da estrada.



No cruzamento para o Trevim havia já um chão branco generoso.


A partir daqui o mundo passou a gradientes de preto e branco. Silencioso.  Tão real como no sonho. Isso mesmo: tão real como no sonho. Talvez a neve voltasse a cair.



Mas para um tipo agarrado às árvores como eu, era a floresta, o trilho na floresta que me ocupava  a mente. Mal pude, mais acima, meti-me por lá.



Caraças, não posso pôr os pés no chão. Se os molho, só tornarei a sentir os dedos em casa. O trilho serve de rego por onde a água corre e, por isso, a neve descongelou. Pelo menos esta é uma teoria razoavelmente credível. Segui pelo rego.


Tudo muito belo, tranquilo


O "big foot" da serra da Lousã



A parte final da subida , já acima dos 1100m, foi feita de novo pela estrada. O nevoeiro assapava-se sobre as árvores. O céu baixo. Vivi a infância e parte da adolescência no sopé de uma serra. Os céus baixos e a neblina sobre as árvores são para mim o que o Sol aberto e a maresia são para os pescadores no mar.



Mais um pouco e chegaria ao bosque de Faias. Mas os troncos brancos das Faias estão pretos! Mas são brancos. Mas eu vejo-os pretos. Mas se chegar perto e não tiver a neve como fundo são brancos. O costume, as fintas do cérebro.


Uma paisagem fractal tão real como no sonho



Seguindo a estrada, os últimos km para o cume são em espiral. Quando cheguei ao lado Este, tinha na frente o monte gémeo do Trevim, o St. António da Neve. Mais além veria, caso o dia estivesse limpo, a serra do Açôr e, mais longe ainda, o planalto da serra da Estrela. Mas o céu estava baixo. As únicas montanhas que avistei foram as das nuvens.





Comecei a patinar. Quanto mais força punha no pedal menos andava. Se para cima era assim, para baixo seria difícil controlar a bike. A estrada estava a fechar. Há sempre uma hora para voltar. Faltava 1 km mas com 8% de inclinação numa estrada com neve a bike transformar-se-ia num trenó. Nem todos temos o denodo (para não mencionar uns vegetais vermelhos carnudos e esféricos que fazem um belíssimo arroz a correr e que acompanha muitíssimo bem com carapaus fritos) somos o Bartolomeu Dias. Vamos embora.



Na descida, parei uma vez. Não é fácil tirar as luvas e expor os dedos; tão-pouco expor outras extremidades, por mais denodo que se imprima ao acto.
Nos Km iniciais estava uma  luz baça e branca que desfocava a realidade à minha volta, como nos sonhos.



sexta-feira, 3 de março de 2017

As pedras, os telhados e a geometria da luz

Fevereiro 2017

A geometria da luz? É apenas um jogo, juntar palavras que abrem janelas para uma ideia interessante (pois, é que há ideias que são chatas) mas que racionalmente não entendo. Geometria da luz. Há apenas uma estética (para dizer uma palavra com mil significados) na mistura das palavras. O sentido global e preciso não interessa por aí além. Quando penso nisso, sem entender, há uma brisa marítima que me varre a cabeça. Fica a sensação de bem-estar, de perscrutar  alguma coisa que não entendo misturada com a sensação de non-sense mas que se lixe.
Para dar alguma linha coerente a isto diria a geometria da luz ... ou as vistas do cimo da aldeia de xisto do Candal na Serra da Lousã.

Já agora, e sem querer deixar-me ir em roda livre (um controlo retro-inibidor que tenho necessariamente que fazer quase constantemente na minha vida em sociedade) atrás de ideias cujo fim do caminho é incerto, a luz, a radiação electromagnética (e aqui a Física pode entrar com meia dúzia de equações) é a realidade, enquanto que a noção de geometria é apenas uma construção mental. Um triângulo é uma ideia na nossa cabeça porque a realidade são umas linhas que acidentalmente se ligam ... ora deixa cá ver .... formando um triângulo. QED (quod erat demonstrandum).
No fundo, o que interessa é o prazer. O nosso cérebro está construído de modo a procurar o prazer. Desde juntar palavras que nos entusiasmam até ao prazer de descobrir (aquele ditado do prazer mata o gato é detestável), o olhar e achar bonito e por aí fora, dos menos aos mais palpáveis prazeres (e lá vai um smile que vem mesmo a calhar :)

Recomeçando, do cimo da aldeia do Candal vêem-se os montes e a luz baça do Sol baço nos dias baços



e vê-se, ao olhar para baixo, os reflexos nas pedras e nos telhados. Como é normal o nosso cérebro preenche o que falta: a cor, o ambiente, a brisa ... O olhar a preto e branco é apenas para perceber os contrastes que são o cenário das cores.



A realidade sob a luz da madrugada


e sob a luz do meio da manhã


Depois olha-se de novo para o longe e a luz não é comum, não é ordinária. Há uma cortina qualquer que torna as coisas novas, interessantes.


Ha sempre outras maneiras de ver de novo. 










Uns dias depois passei lá em baixo, ao fundo da aldeia.
Com o tempo ameno as acácias tinham florido e a serra era uma festa


Ao fundo da aldeia, a piscina natural do Candal. Para mim, a geometria (à falta de melhor palavra) das pedras e dos troncos das árvores e das folhas e a mistura de tudo isto deixa-me fascinado.


Mas chegar aqui a pedalar leva-nos a um patamar que seria outro caso chegássemos confortavelmente de carro. De bicicleta estamos lá, enquanto que de carro é como se viajássemos num cenário.


Filmei o local com o telemóvel. O som da água que corre é belo e intenso e o vídeo não precisa de banda sonora mas há uns dias atrás, durante uma viagem pela net, atravessou-se-me no caminho um album novo de um músico Grego cuja música, há anos atrás, nunca confessaria que ouvia. Pronto lá vai e que se lixe: Vangelis Papathanassiou. O album chama-se Rosetta


e pode servir de banda sonora do post e da água que corre no vídeo ali em baixo e que provavelmente continua a correr na aldeia do Candal.