sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

Pedaladas de uma fotografia só

 1 de Janeiro de 2021

O tempo ia bera. Não era apenas o frio, as nuvens negras velozes que passavam por cima da cabeça mas sobretudo as gotas de água arremessadas pelo vento e contendo cristais de gelo. Uma carga de água de ensopar os ossos de algum modo desfocaria a atenção do ciclista extraodinário das paisagens brancas que antevia no cimo da serra. Vou, não vou. Espero mais um pouco. Então, o ciclista extraordinário, tal como os druidas gauleses, observou as nuvens e o voo das aves. Viu o futuro nas entranhas de um coelho. Embora o coelho tirado do frigorífico para o almoço não tivesse entranhas, em todo o caso o ciclista extraodinário viu o futuro nos músculos e nas costelas do coelho (uma inovação face à tradição dos druidas). Ainda com dúvidas sobre as previsões atmosféricas, o ciclista extraodinário complementou a leitura do voo das aves e das entranhas do coelho com a consulta do MeteoBlue na net: 80%  de probabilidade de chuva para as 2h seguintes (o que quer que istso signifique).  Vou, não vou? Nestas cocasiões, desce sobre o ciclista extraodinário uma grande calma, o ciclista extraodinário entra num estado de transe, pergunta quem é, de onde vem, para onde vai e, como de costume, chega a um estado de clarividência, a uma conclusão isenta de dúvidas: que se foda, vamos a isto.

As primeira pedaladas foram furiosas, serra acima sempre com um olho no horizonte a Sudoeste (de onde vem o tempo que afecta a serra). A meia encosta, na curva da estrada, abre-se o vale e vislumbra-se a cumeada acima dos 1000 m; tudo branco a partir dos 800m. O Trevim (cume aos 1200m) envolto num banco de nuvens. A temperatura ia descendo; 7,  5, 4 ... e, ao chegar ao planalto dos 900 m, 3 graus C. As previsões vistas nas entranhas do coelho confimar-se-iam; nem uma pinga de chuva, para além das sacudidas das árvores. Os bosques brancos e envoltos na neblina branca. A paisagem branca cortada pelos ramos e vultos escuros das árvores. Vento. Mais e mais e, já na subida final, o ciclista extraordinário parou a cerca de 2 km do cume para vestir o blusão impermeável adicional, colocar o lenço (pescoço e cabeça), enfiar a balaclava e puxar pelo telemóvel guardado no bolso traseiro para tirar umas fotografias. Tarefa difícil quer com luvas quer sem luvas. No primeiro caso devido a falta de sensibilidade para achar o telemóvel  e no segundo caso porque a temeratura que  o GPS registava eram 2 graus C negativos e as mãozinhas ao léu ficam humidas e geladas. A parte em que o ciclista extraodinário pôs outra coisa ao léu numa emergência fisológica nem vale a pena falar mas envolve também dificuldade em se achar.

Tal como tinha acontecido noutras ocasiões o telemóvel do ciclista extraodinário, devido ao frio, esvaziou a bateria (passou dos 70% para os 1% em 2 segundos). Houve apenas tempo para um disparo. Foi um samba de uma nota, quero dizer, foi uma volta de uma fotografia só.


 
Luvas calçadas, porra do telemóvel no bolso, e o ciclista extraordiário fez-se ao que faltava da subida; 2 km em asfalto. A neve na estrada fazia patinar a bike e lembrava que a descida seria adrenalínica, to say the least. Um carro ou outro tentava subir. Patinavam tal como o cilcista. Às tantas, o cume foi atingido. Ventania. Nevoeiro. Frio. Neve. E, apesar de os dedos dos pés e das mãos começarem a entrar em estado de hibernação, o ciclista extraodinário deu por si a sorrir entre o ranger de dentes e umas imprecações tabernáculas. Durante a descida abriam-se umas clareiras no nevoeiro, originando visões extraodinárias da neblina rápida sobre a serra, de recortes brilhantes de nuvens iluminadas por raios de Sol que vinham não sabe bem de onde. Extraordinário. Cerca de uma hora depois o ciclista extraodinário atingia o vale. Dor no peito e nas maxilas de tão contraídas durante a descida. Sensação bem conhecida. Dedos quase insensíveis e na capacidade limite para travar ou meter mudanças. C'est la vie. Estava dada a primeira de 2021.



8 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

    ResponderEliminar
  2. Que coragem João...seria incapaz mas quase consigo sentir a maravilha que deve ser. Que 2021 lhe possibilite muitas e muitas voltas e o prazer imenso de as viver.
    ~CC~

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. CCF
      muito obrigado. Mas vou contar-lhe um segredo: eu acho que nós somos capazes de muito mais do que à partida pensamos. Acho até que nos devemos expor a situações das quais temos receio. Além disso, um stresse de baixa intensidade faz bem à saúde !
      Um ano feliz e com saúde,
      João

      Eliminar
  3. Olá João,

    Tem que levar um saquinho de água quente para o telemóvel não ter desses fanicos. É que, assim, para além de ficar limitado na possibilidade de nos presentear com essas paisagens misteriosas e deslumbrantes, ficará impossibilitado de pedir ajuda caso venha a precisar (noc noc noc, já bati três vezes na madeira).

    Mas imagino a adrenalina que um desafio desses constitui, o prazer misturado com algum receio, polvilhado pelas sensações extremas de frio e esforço... o tal stressezinho bom.

    Um belo 2021, João!

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Olá UJM,
      Pois, é isso; não conseguirei fazer uma chamada de emergência para evitar noc, noc, noc on heaven´s door.
      É que a bateria (do telemóvel) já não é o que era. Eu tento mantê-lo quentinho junto ao corpo mas sem grande êxito. A ideia do saquinho é interessante mas um saquinho de chá quente. Depois de despachar as fotografias bebia o chá. Mas, de facto, tive pena porque a paisagem estava deslumbrante, não só as árvores, os bosques mas também a dinâmica da atmosfera (o nevoeiro que, movido pelo vento forte, abria clareiras onde jorrava luz intensa para logo fechar e tudo ficar de novo escuro e denso).
      Às vezes penso que nas situações mais difíceis me comporto com um animal acossado. Não é adrenalina, é um instinto de sobrevivência que vem ao de cima.
      Um ano feliz, interessante e com saúde.
      João


      Eliminar
  4. Ah João, foto fantástica! Por falar em adrenalina, há uns tempos, já inverno, fui subir ao Trevim na bicicleta de estrada e na descida tive um ataque de adrenalina e medo à mistura, a estrada estava húmida e cheia de verdete, qualquer travagem ou hesitação seria a morte do artista. Cheguei cá abaixo, tida eu tremia, prestes a dar-me um piripaque. Bike de estrada, para aqueles lados, só mesmo no verão. Ah, e resolvi a questão das necessidades fisiológicas no inverno. Nós, as gajas temos alguma dificuldade, despir impermeável, casaco, calças com alças, luvas, etc e de pois do acto, voltar a vestir tudo. Encontrei finalmente umas calças em que apenas é necessário abrir um fecho para proceder ao alívio. Bem haja quem teve tal brilhante ideia 🙏. Um otimo ano João, cheio de pedaladas fantásticas.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Olá GM,
      a estrada é sinuosa e, no Inverno, há curvas onde nunca bate o Sol. Ficam húmidas e escorregadias. Mas ao fim de mil subidas e descidas começas a conhecer bem todas as curvas ;)
      Nós, os gajos, também temos os nossos problemas no Inverno. Quantas vezes, com o frio, dedos das mãos e outras extremidades (incluindo aquela que temos que pôr ao léu para as tais necessidades fisiológicas) gelados e insensíveis, estou para ali uns minutos na operação de busca e de exposição à intempérie, para depois tentar aconchegar tudo no devido sítio ... Às tantas essas calças com fecho também de davam jeito.
      Bom ano com belas pedaladas

      Eliminar