Primeiro, pôr a tocar (som alto). Depois, passar às imagens. A história pode ser contada por quem vê as fotografias.
Max Richter - On the Nature of Daylight
A memória das pedaladas. Foi esta a principal razão. O blog é, assim, uma espécie de dispositivo virtual de reforço sináptico.
Max Richter - On the Nature of Daylight
Setembro 2022
O ciclista extraordinário fez a viagem no convés do barco. Céu azul e cabelos ao vento. Como o ciclista extraordinário não tem cabelo na cabeça - embora abundante em outras partes do corpo - no dia seguinte ao espelho o ciclista extraordinário reparou que a face e a testa estavam da cor e textura do interior de uma melancia madura. Poderia ter feito a travessia do porto do Pireu para a ilha confortavelmente sentado no salão inferior do barco mas, tendo ido espreitar o convés, o desafio de duas inglesas bem entradas na idade e de sorriso matreiro (Não me diga que vai para baixo? Is this too much for you?") tiraram-lhe o conforto do pensamento (too much for me ladies? Naahh, I´m pretty confortable). Três horas ao sol e ao vento pelo Mediterrâneo adentro, passando por várias ilhas até aquela em que o ciclista extraordinário deveria desembarcar. O ciclista extraordinário perscrutava na sua memória o que ainda restava do livro "Lendas e narrativas da Antiga Grécia" que lera mil anos antes, ainda criança. Este livro encheu-lhe a cabeça de semi-deuses e semi-deusas (sempre muito belas), titãs, ciclopes, enredos e labirintos ... e o minotauro. O ciclista extraordinário lembrava-se bem do minotauro de Creta. E Creta iria estar no horizonte. E, ainda, de cabelos ao vento durante a travessia, embora sem os cabelos, a imaginação do ciclista extraordinário vogava já sobre as ondas mediterrâneas no enredo da versão moderna da lenda: em busca do minotauro ... de bike.
Uma vez desembarcado - entretanto as Inglesas tinham ficado numa outra ilha, não sem antes atirarem um último olhar de despedida - o ciclista extraordinário sentiu-se claramente numa ilha grega (embora nunca antes estivesse estado em ilhas Gregas). Abeirou-se da água, o mar parecia um lago (falta-lhe a força do Atlântico, pensou).
E pôs-se a caminho do sítio onde iria ficar. Às tantas, uma tasca e um muro branco coberto de mantas pareceu-lhe o local certo para uma bela de uma cerveja acompanhada do que houvesse. Ao fundo, sob o último Sol do dia, as montanhas do Peloponeso, o mítico Peloponeso. E o que havia era batatas fritas e fishburguers .. salvou-se a cerveja
Depois foi a história do Nikos. Ainda a caminho do sítio (já o Sol se punha) o ciclista extraordinário deu com a oficina do Nikos. Parede branca, bicicletas à porta e ele magro e tisnado cá fora a lavar uma das bikes.
- Hi !
- Hi !
- I´m João
- I'm Nikos
- How are you Nikos?
- Just great and you?
...
E depois desta troca de galhardetes (já quase amigos) lá fomos ao que interessava ao ciclista extraordinário. O Nikos era de poucas mas muito metafóricas falas. O Nikos alugava bikes, o ciclista experimentou duas ou três e ficou combinado que no dia seguinte pela manhãzinha o ciclista extraordinário estaria ali para pegar na bike e se lançar em busca do minotauro. Não te esqueças do protector solar, disparou o Nikos à despedida (o ciclista extraordinário ainda não se tinha visto ao espelho).
O Sol pôs-se e o ciclista extraordinário ainda a caminho do sítio para ficar. A sensação de estar numa ilha Grega era mais ou menos ... a de estar numa ilha Grega (embora, como disse, o ciclista extraordinário numa estivesse estado numa ilha Grega)
Setembro 2022
Nos anos anteriores fiz algumas tentativas para registar a brama. Há por aí (no arquivo do blog) umas postas sobre o assunto. Devo ter escrito sobre o som cavo dos machos, bramando na perseguição das fêmeas. Quer dizer, no fundo, elas em grupo, deixam-se perseguir e a brama é um aviso dos machos entre si, Porque, no fundo outra vez, elas é que escolhem. Eles, com as hormonas a inundar o cérebro, desafiam-se e lutam pelo harém. Devo ter também escrito sobre a frustração com que, após a cena em real thing, ouço as gravações que fiz (imagens e som) no telemóvel. Nem fazem jus à coisa e até chateiam. "Que grande merda", tem sido sempre a impressão final.
Desta vez, pedalei serra acima com a cabeça focada em chegar ao lusco-fusco (palavra mais bonita que crepúsculo) à Aldeia da Cerdeira. Bem sei que é por ali que eles andam. Cheguei ao lusco-fusco. Bem, ao lusco-fusco quando a realidade era vista pelos meus olhos. Quando registada no telemóvel parecia que a tarde ia ainda no adro.
E onde fica a Cerdeira?. Fica ali, na encosta em frente:
Deixando de lado as virtualidades criadas pela câmara do telemóvel que, num passe de magia tecnológica, transforma o lusco-fusco da tarde em meio-dia soalheiro (exagerando apenas um pouco), cheguei ao lusco-fusco, usando, como referência, a realidade a que estou habituado.
Na subida à aldeia, uma bela de uma rampa com inclinações acima dos 20%, a respiração ofegante não me impediu de começar a ouvir o bramar de vários machos. Percebi que uns andavam ao fundo, junto à ribeira, mas que outros (um ou dois) andavam logo por ali, perto do caminho à entrada da aldeia.
Pedalei, em silêncio, pelo caminho que leva à aldeia. Olhava para a esquerda, para o lado de onde vinham alguns ruídos de folhagem agitada e uns bramidos roucos atento a qualquer movimento. Com lentes que me deixam distinguir um pedregulho de um javali a 10 m de distância - mas não muito mais do que isso - percebi que andavam por ali algumas fêmeas. Disparei para lá o telemóvel com ampliação no máximo. Ali estava uma.
E ali estavam outras, mordiscando umas ervas despreocupadas mas sempre atentas (já me tinham detectado muito antes de eu ter conseguido vê-las)
Nisto,
pressinto do outro lado, do lado de baixo, um movimento pelo canto do olho. Duas fêmeas passavam nas calmas com o ar petulante de quem sabe que o macho as seguiria.
Pressentiram-me - têm um radar fantástico (olfacto e ouvido apuradíssimos).
Quando tirei o pé do encaixe metálico do pedal da bike, o clique foi ouvido com estrondo. A mais velha olhou-me, avaliou a situação, sentiu-se segura pela barreira que nos separava
e continuou a pastar nas calmas
atirando-se às folhas do sobreiro (nunca tinha visto as madames a banquetearem-se com folhas de sobreiro)
Percebi, entretanto, que o bramar de um macho estava cada vez mais próximo. Mas do outro lado. Do lado de cima onde tinha visto as primeiras fêmeas. Voltei lá.
A note caía.
Fiquei por ali algum tempo. Ouvia o bramar cada vez mais próximo. O macho estava perto. Ouvia ramos a quebrar e a folhagem das árvores agitadas, provavelmente do roçar das hastes. Percebi que seguia as fêmeas. Mas o caminho tinha obstáculos, sobretudo para quem tem um par de hastes magníficas como os machos. Mas estava próximo. E percebia-se que estava agitado. Já não se via nada, a noite tinha caído. Eu próprio estava agitado. Já se me estavam a eriçar uns pêlos. Pressentia que, após todos estes anos, estava quase quase face a focinho com um dos machos. Estava na orla da floresta. Seguramente que ele me pressentia e, sobretudo, percebia que eu estava próximo das fêmeas. Como é que se explica a um macho carregado de hormonas até às orelhas que não estamos interessados no seu harém? Talvez miando, tentando passar por gato. Sem ver a ponta de um corno (literalmente) liguei o vídeo e apontei o telemóvel para a frente, para a escuridão (o telemóvel conseguiu captar luz suficiente para se perceber a paisagem) , e esperei.
(paciência e som no máximo; ouvem-se galhos a quebrar, sons de aves e bramidos)
aproximei-me um pouco
Um friozinho subiu-me pela espinha acima. Tenho que me pôr a andar, I've got the message: sai daqui pá, deixa-me as fêmeas em sossego antes que estejamos a trocar galhardetes, ou melhor, a entrelaçarmos cornos (ele poderia estar confundir o guiador da bike com um par de cornos).
Serra abaixo às escuras a destilar os nervos acumulados na cena de minutos atrás.