quarta-feira, 12 de setembro de 2018

As últimas antes da invernia, da chuva puxada a vento ...

Serra do Açôr
Setembro 2018


... pensava eu. Foi ao contrário. Mas comecemos na véspera, ao anoitecer.

Um vento fino à superfície, a luz do anoitecer, os aromas a lodo e urze típicos da barragem, do grande lago a 700 m de altitude. Pouco mais que isso. Ao fundo, as cumeadas do Açôr cobertas por uma névoa branca. Cumeadas que percorreria de bike no dia seguinte sob Sol e chuva numa sequência improvável e, ao centro, no horizonte, quase invisível, o maciço central da Serra da Estrela.


Na manhã seguinte, o Sol quentinho puxava a que me despachasse antes que se fizesse tarde para pedalar sem pressas, com genica, que eu não gosto nem de pedaladas lerdas nem que a meia dúzia de neurónios na zona do cérebro que hiper desenvolvemos na actividade profissional - aquela zona que nos conta os minutos e está permanentemente a chamar a atenção para nos despacharmos porque temos um compromisso a seguir e mais um conjunto de merdices para fazer - me estrague as pedaladas, inibindo-me de ir por ali ou por além porque se faria tarde.



As subidas têm que ser duras e feitas pedalada a pedalada para que as cumeadas saibam bem. Sabe bem chegar. Assim temos a ilusão de que conseguimos alguma coisa.



Aos mil e tal metros, na cumeada Sul sobre o vale do rio Ceira - ah como eu gosto deste sítio - olho pela milionésima vez como se fosse a primeira o picoto da Cebola.


O cone à direita pica aos 1400m e, por trás, ao centro, sob as nuvens, o maciço central da Estrela aos 2000m. Mas hoje não é dia de subir ao picoto.
Hoje é dia de pedalar por aqui, por estes caminhos de pedras de que tanto gosto



 e lambuzar-me a encher a barriga de amoras. Comi à fartazana. Às tantas, algumas souberam-me um pouco ácidas e aromáticas. Não me digas que ...! Nestes silvados pejados de amoras ( e a mesma regra se aplica noutros frutos que encontramos pelo caminho) deve seguir-se uma regra de ouro (outra das leis do BTT): apanhar apenas as amoras que se encontrem a uma altura razoável e sobretudo no meio do silvado onde um javali, um veado, cão vadio, raposa, gineta e outros, alçando a perna para se aliviarem, não atinjam com o jacto líquido. Na ânsia de apanhar amoras devo ter-me descuidado e apanhei algumas mais rasteiras ali à mão de semear (para mim) e de alçar a perna (para um javali). Em todo  caso, fosse o que fosse era seguramente biológico ! Urina biológica de javali deve ser um petisco para o nosso microbiota intestinal; uma refeição suculenta, bem regada e nutritiva para a bicharada que nos habita.


(cá estão elas, as amoras)

Algumas nuvens acastelavam-se. O céu azul da há umas horas atrás estava a cobrir-se de cinzento. Durante a subida, o Sol luminoso mostrava bem a aridez da paisagem após o incêndio de Outubro passado. Outrora cobertos de árvores, os montes hoje estão nus. Ou quase. Até onde a vista alcança.





Já antes, ao terminar a subida, junto ao marco geodésico, de onde a imensa barragem parece um laguito para sapos, notara os castelos de nuvens





Já tinha poucas dúvidas; vinha aí uma borrasca. O vento arrefecera ligeiramente e o horizonte a Sul,  lá mais em baixo, manchado de negro na vertical dizia-me que chovia a potes. Horas de me pôr a andar.


Na descida iria contornar a borrasca pelo lado Oeste mas, bem o sabia - é uma coisa que me está nos ossos; sei, sem fazer esforço, em qualquer local, de onde sopra o vento, onde nasce o Sol ... - o vento estava de Este e, portanto, mais cedo ou mais tarde estaria em cima de mim. Lá ao fundo, iria virar à esquerda, para Este, para debaixo do céu negro.



O Sol e o ar ameno aqui aos mil metros não deixa perceber muito bem o que se passa lá em baixo. Lá ao fundo junto à barragem para onde terei que pedalar to get back home. Aqui compreende-se a chuva; estou ao nível das nuvens e vejo as cortinas de água que, das nuvens, varrem a terra lá em baixo. Quando lá estiver, também a ser varrido, a levar com ela em cima, terei, seguramente, uma outra visão das coisas. Enquanto que aqui me deslumbro, esboço um sorriso e solto uns suspiros de prazer, lá em baixo, most likely, proferirei umas imprecações tabernáculas sobre a chuva e a respectiva mãe e sobre a minha condição sexual momentânea, if you now what I mean. No mínimo. Curioso isto.







A descida foi feita a cerca de 70Km/h. Olhar fixo em frente, trajectórias cuidadas, tenso, atento, um dedo no travão de trás - como se isso servisse para alguma coisa - bike bem apertada entre os joelhos, um fiozinho frio nas costas mas, ao mesmo, tempo, uma bela de uma sensação. Ia numa corrida contra os lençóis de chuva. Varriam já uma extremidade do grande lago e eu iria passar na outra. Estrada seca até lá baixo. Cheguei num instante. Comecei a sentir, não água, mas uns impactos nos braços, tal a violência das gotas. A estrada de alcatrão começou a pintar-se de grandes manchas. Às tantas, o meu receio - o mesmo dos gauleses comandadas pelo Ordafabeltix, que, diga-se, odiava a música do Assurancetourix - concretizou-se: o céu caiu-me em cima da cabeça. As gotas pareciam pedras a bater no capacete, nos braços e nos tubos da bike. Foi uma festa. Um pouco antes, num exercício de ginástica, sob uma pedra, tirei o telemóvel do bolso para fotografar a superfície da barragem fustigada pela chuva. A superfície lisa e espelhada da véspera era agora rugosa e encrespada.


Pensava que seriam as últimas pedaladas este ano no Açôr sob Sol quente, antes das invernias que, bem as conheço, por ali se instalam. Mas, afinal, foi apenas uma bela de uma chuvada em cima, dura mas morna. As próximas, espero eu, serão seguramente sob invernia a sério.

11 comentários:

  1. Olá João,
    Tem sido um prazer imenso ler estas suas aventuras no selim: bela prosa, com muito humor, e belíssimas fotos.
    Tenho recordado muitos sítios por onde já passei, não de bike mas de carro.
    Quando vi as fotos # 9 e 10 pensei: eu já estive aqui, tenho uma foto com esta paisagem.
    Procurei nos velhos álbuns de viagens e Eureka! encontrei: foi em Agosto/96 quando fui conhecer a Barragem de Santa Luzia - fiquei deslumbrada com aquelas escarpas incrivelmente belas e a serenidade da água!
    Depois desci pelo paredão (um susto) e segui até Fajão: outra maravilha!
    E creio que foi entre Fajão e Dornelas do Zêzere que parei para tirar uma fotografia muito parecida com as suas.
    Já passaram tantos anos e ainda recordo o que senti quando a tirei.
    Belas recordações!
    Maria

    ResponderEliminar
  2. Aqui no meu relógio são 09.58h...
    :-) Maria

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Olá Maria,

      Japão?, Coreia do Sul?, Austrália?, Indonésia? China? Yakutsik na Sibéria ?! ;)

      Podíamos ter-nos encontrado em 96 na barragem de Sta. Luzia ! Já na altura por lá pedalava. Tenho muitas fotografias da barragem por aí abaixo em vários posts. Com chuva, com Sol, de manhã, com neblina, à noite, de um lado, do outro, cheia, quase vazia , no Inverno, tranquila, encrespada ...

      Nas fotografias # 9 e 10 estou numa cumeada aos 1100m de altitude. Em frente, para Sul, está a barragem de Sta. Luzia (aos 700m) e, em primeiro plano, a aldeia do Vidual de Cima. Ao longe, entre os penedos da barragem e a serra no horizonte, afunda-se o vale onde corre o rio Zêzere, em cujas margens (na fotografia para o lado esquerdo) se situa Dornelas do Zêzere.
      Nas costas (para Norte) tenho o vale do rio Ceira e a aldeia de Fajão (também tenho por ai no blog umas fotos de Fajão).
      Pedalar por estas cumeadas com vistas sobre as lonjuras é um grande prazer. Muitas vezes não tenho tempo de verter aqui nem os relatos nem as fotografias. Ficam para aí num qualquer disco rígido.

      Obrigado pela mensagem; gostei muito de ler. Volte sempre. E bom dia aí para esses lados que aqui a noite está a começar :)

      João

      Eliminar
  3. Olá João,

    Eu não estou assim tão longe, aliás até estou bem perto, aqui na Beira Interior. Acontece que fiz o meu comentário perto das 10h da manhã e ele apareceu como tendo sido feito às 01.53h da madrugada.
    Obrigada pelos esclarecimentos acerca das fotografias.
    Eu sou de Lisboa mas vim para aqui viver há vinte e tal anos.
    Custou um pouco adaptar-me ao clima e à falta do mar. E então resolvi conhecer melhor o interior do país (costumava vir cá passar férias em criança).
    Todos os sábados lá ia eu à descoberta das aldeias históricas (ou não), castelos, barragens, praias fluviais, pontes, capelas, pelourinhos,etc.,etc.
    Saía de madrugada e regressava à noite com as fotografias já reveladas.
    E descobri um reino maravilhoso, como diria o Torga, (também fui a São Leonardo da Galafura por causa dele). Desde Sortelha ao Piódão, Penedono a Castelo Rodrigo, Foz Coa a Avô, Freixo-de-Espada-à-Cinta a Loriga, e também de Penamacor à Sierra de Gata, de Alcantara a Trujillo e, para sul, de Marvão a Monsaraz (ainda sem Alqueva) ou Olivença (uma maravilha!).
    Enfim, foram muitos quilómetros, muitas fotografias, muitas maravilhas da natureza e algumas do homem.
    Agora já quase não saio (a vida às vezes prega-nos partidas) e viajo pelos olhos de outros viajantes como o João - e tenho muito pano para mangas aqui no seu blog.
    Desculpe a seca, ok?
    Abraço!
    Maria


    ResponderEliminar
  4. Maria,
    seca, qual seca? A única seca que me veio à memória foi a secagem de figos (e de maçãs cortadas às rodelas e de abrunhos) que fazia com a minha avó, há muitos anos, lá no "chão" dela, aí na Beira-Baixa. Fazíamos uma cama de palha sob as árvores à sombra, durante o Verão, e, quando secos, a minha avó guardava-os num saco de pano. Depois, durante o Inverno, enquanto o chá estava ao lume, ela ia buscar o saco com grande cerimónia
    como se fosse um tesouro e deliciávamos-nos com os figos secos.

    Sou das Beiras. Nasci e passei a infância na Beira-Baixa, cresci na Beira-Alta e vivo na Beira-Litoral. Sou das serranias. Da serra da Estrela, do Açôr e da Lousã. Conheço os aromas, as pedras, as árvores e arbustos, os riachos e os vales como, provavelmente, a Maria conhece as ruas e avenidas, os bairros e calçadas, as lojas e praças de Lisboa.

    Sem querer impor nada, e porque falou de Torga, se quiser dê uma vista de olhos em:
    http://bateoventosopraachuva.blogspot.com/2017/10/miguel-torga-nas-pedras-do-acor.html

    E, sem querer abusar, deve conhecer estes sítios:
    http://bateoventosopraachuva.blogspot.com/2016/02/as-pedaladas-que-nao-dei-na-estrela.html

    Boa noite Maria e um abraço

    João

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Incrível, João, quer dizer que em meados de Setembro já eu andava por aqui a melgar ;)
      O tempo voa!
      Maria

      Eliminar
    2. A sua visita, Maria, foi das belos acontecimentos desta última volta ao Sol :)
      João

      Eliminar
    3. João, eu não acredito que este comentário está aqui desde o dia 21 e eu só agora o vi.
      Que bela prenda de Natal!
      Vou acreditar que é mesmo verdade o que diz (why not? Há gostos para tudo...) :)
      Agora a sério: muito, muito obrigada, do fundo do coração (o que quer que isso seja).
      Abraço grande.
      Maria

      Eliminar
  5. Olá João,

    Já sei que não liga nenhuma a datas, efemérides, etc. mas eu ligo e, geralmente lembro-me, mesmo sem querer, lembro-me...
    E, embora este não fosse o meu primeiro comentário aqui, foi precisamente há um ano, quando o João me contou a história da secagem dos figos e dos chás com a sua avó que pensei: what a nice guy he is, se calhar vou passar a comentar aqui mais vezes...
    E comentei :)
    Agora poderia aqui escrever mil folhas acerca do assunto, mas não, apenas quero agradecer-lhe toda a paciência que teve em responder a todas as melguices aqui da velhota (sim, eu sei que fui uma melga do caraças!); e também os conselhos e o apoio que me deu num período tão difícil da minha vida.
    Já para não falar de tudo o que aprendi aqui no seu blog, das viagens que fiz, das músicas que relembrei e do que me fez rir com o seu sentido de humor tão especial.
    Foi um ano muito bom, João, mesmo muito bom.
    Muito obrigada.
    🐳
    Maria

    Possivelmente nem vai dar com o comentário, mas não faz mal, fica aqui o registo.



    ResponderEliminar
  6. Aqui o nice guy, como anda sempre a acelerar de um lado para o outro sem tempo para fazer tudo o que gostaria, tem uma atenção selectiva e as mensagens da Maria é um dos "issues" que tenta não perder; embora a maioria as vezes não dê feedback. Having said this, thank you Maria, não tem nada que agradecer eu é que quero agradecer-lhe, muito obrigado pelo seus comentários.
    De facto, as efemérides não são o meu forte; aliás, devido a esta tendência para ver as coisas a 10 000 metros de altitude, sem ligar a detalhes, o meu forte é coisíssima nenhuma.
    João

    ResponderEliminar
  7. Afinal deu com ele...
    :))))))))))))
    Thank you!
    🐧
    Maria

    ResponderEliminar