domingo, 5 de maio de 2019

Gondramaz aldeia do xisto e a raposa que foi ao pão

Serra da Lousã
Fevereiro 2019


Às tantas, estava pedalar por caminhos por onde nunca o tinha feito. Meia encosta, por volta dos 600 m de altitude, depois de uma bela e dura subida atingira um caminho plano, ladeado de pinheiros e vistas para o vale até à serra do Buçaco. Durante a subida encontrei uma casal, talvez por volta dos 70, que apanhava caruma. Um cão de palmo, dos que não se vêem mas se ouvem tal o ladrar estridente, mal me viu, transformou-se num tigre dente de sabre como, aliás, acontece com todos os cães, independente do tamanho e do temperamento, quando vêem uma bicicleta. Eles chamavam-no sabendo de antemão que o tigres dente de sabre não obedecem a ordens, sobretudo ordens vindas de quem, no ambiente bucólico pinhal, apanha caruma para um saco. No caminho estava estacionado o veículo que os tinha transportado até ali e que, likely, serviria para levar os sacos com caruma. O bucolismo da história estava mesmo a pedir um burro ou uma carroça ali estacionada. Não, era uma moto 4! Extraordinário. Tinham uma moto 4.

Tendo decidido pedalar por caminhos nunca dantes pedalados, dei de caras, quer dizer de rodas, com a fonte. Uma fonte ali num caminho remoto, pedregoso, onde ninguém passa. Uma fonte que, pela sofisticação estrutural (digamos assim) me dizia que aquele tinha sido uma caminho importante, uma caminho usado pelas povoações serranas nas deslocações inter-aldeias (digamos assim outra vez).


Com a água da bica jorrava também um tufo de ervas


Um caminho de árvores abraçadas



estas últimas à beira de um riacho (não passaria despercebido pois ouvira o cantarolar da água muito antes de lá ter chegado)



e vistas sobre as serranias cobertas de pinheiros; uma visão que se tornou rara em muitas das serranias da Beira depois de anos de devastação pelo fogo.




Por ali fora, aragem morna, aromas a querer inundar a serra, como que uns arrufos de Primavera e, às tantas, como de costume, numa curva do caminho por entre ramos de carvalhos e castanheiros, lá estava: a aldeia de xisto do Gondramaz. Desde que saíra de casa eu levava um plano: ir ao Gondramaz.




À entrada da aldeia, do lado de quem vem da serra pelo caminho empedrado com xisto,



ladeada por muros de pedra antigos.



 surge na curva do caminho (há sempre outra curva no caminho) a fantástica casa sobranceira ao vale.




Muitas vezes passo pelas aldeias de xisto como raposa por vinha vindimada. "Não me vou meter por ali abaixo, sigo". Algumas aldeias na serra ficam em encostas íngremes. Desta vez, meti-me por ali abaixo (é que depois há o vir por ali acima).


Passei no Beco do Tintol (de novo, com algum pesar, como raposa por vinha vindimada) e segui.


Pelos vistos bem encaminhado por um marketing eficaz.


Cebolas? Não posso levar na bike. Noutra situação teria entrado com "quidado"  e comprado cebolas.


Mais um pouco por ali abaixo e virei na esquina do largo dos petiscos (terra com nomes como deve ser - toponímia?)



O beco estreitou um pouco e, às tantas, vejo um vulto a subir na minha direcção. Assim que me viu fugiu em sentido inverso. Baixo, quatro patas, escuro, duas orelhas a decorar um focinho - não levo óculos mas lentes quando pedalo e, com as lentes, vejo mais ou menos bem entre o 1 e 3 metros, o ideal para ver onde ponho a roda da frente da bike e traçar uma trajectória, mais perto ou mais longe a acuidade é o que se pode arranjar, to say the least. Um cão, tudo levava a crer que seria um cão pequeno. Mas algum coisa não encaixava. O meu cérebro não encaixava o vulto que vi nos padrões de cães armazenados na memória (é assim que funcionamos) e, além disso, deve ter detectado um padrão que coincidia com outro animal (a visão não estava a ajudar). Talvez o comportamento fugidio do animal, talvez uma cauda desproporcionada ..., aliás, acho que também é assim (coleccionar padrões) que na Inteligência Artificial se "ensina" a máquina (ou o robot para ficar mais claro). Nisto, continuando por ali abaixo, ouço uma voz feminina: "anda cá, toma, bichinha anda cá". A rua abria-se num pequeno largo. Primeiro vi a mulher, dobrada a apanhar alguma coisa. Logo atrás, o vulto canínico.


"Bichinha toma, anda cá, bichinha, bichinha". Com a naturalidade e o à-vontade de quem dá milho às galinhas, a senhora atirava pedaços de pão à raposa. "Bichinha, bichinha, toma, anda cá".  Ela, a raposa, de volta, desconfiada mas sem arredar pé, de um lado para o outro, percorrendo todo o largo. De vez em quando abocanhava um pedaço. Depois fugia (de modo pouco convincente).


Curiosamente, só agora dei conta que junto ao balcão, por trás da senhora, está uma escultura que parece ser um cão.

Eu ali, tentando passar despercebido, telemóvel na mão, não querendo perturbar, mantendo-me no beco sem entrar no largo mas ... como seria previsível a raposa estava nervosa com a minha presença. De vez em quando saltava para cima do muro à esquerda, depois voltava para mais um pedaço de pão, afastando-se novamente. A cena não durou muito; no instante em que me preparava para fazer um videozinho a bicha pirou-se. Falei com a senhora: "sim, ela vem cá muitas vezes, damos-lhe pão e pedacinhos de carne, é uma amiga nossa, depois volta lá para a vida dela, para os montes".

E vamos embora que se faz tarde. Back home, que é como quem diz, mais umas belas pedaladas a meia encosta, cerca dos 800m altitude, pelo caminho que desenha as curvas da serra, as concavidades dos vales, com vistas sobre o imenso vale até à serra do Caramulo.  E, no caminho, verei Gondramaz ao longe.

(Gondramaz ao centro e em cima na encosta mais ao longe)

E o caminho levar-me-á à floresta de coníferas do Terreiro das Bruxas.




Mas, logo à saída do Gondramaz, parei junto a um riacho para o brunch: uma banana e água da fonte. Com os olhos a percorrer os fios de água, as ervas envolventes, os raios de Sol que se esgueiravam por entre as copas, percebi alguma coisa invulgar. Pus-me a gravar um videozinho enquanto caminhava riacho acima. Não se nota mas trata-se de um pequeno rego (um canal) proveniente de uma "presa" (tanque que aprisiona a água). Tudo feito com muros de pedra que, com o tempo, se foram desmoronando ao mesmo tempo que se cobriam de vida. Seguramente um canal para rega feito pelos habitantes de há 50, 70, 100 anos?











5 comentários:

  1. Olá João,

    Parece que as raposas andam a fazer uma operação de charme nas Beiras. Depois do Foxy de Belgais, eis que surge a Bichana de Gondramaz: um belo casalinho!
    Pena estarem tão longe um do outro...

    Loijinha do Bezitante?
    Quidado com a cabeça?
    Beco do Tintol?
    Que maravilha!

    João, and you found embraced trees?
    (And I think to myself
    what a wonderful world).

    Ah, e o canito armado em tigre dente de sabre deixou marcas?
    Estou a imaginá-lo no regresso a casa, com os donos e a caruma, todos encavalitados na moto 4.
    :)
    Maria


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    1. Curiosamente Maria, após ter passado pelo tigre dente de sabre e os donos, fiquei a imaginar o mesmo: eles todos mais os sacos de caruma em cima da moto 4. E o tigre em cima dos sacos ou ao colo?

      Tenho uma táctica para me ver livre dos cães que me rosnam: rosno-lhes de volta!
      Resulta a maior parte das vezes.

      João

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    2. Decididamente em cima dos sacos de caruma, vigilante, pronto a saltar e a atacar as canelas de qualquer outro incauto biker que se atrevesse a aparecer por ali :)
      Maria

      Eu também tenho uma táctica secreta, mas não posso revelar aqui, obviously.
      Sorry.

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  2. A "bichinha" é linda e que remédio tem senão aproximar-se das pessoas que lhe dão carne e pão.
    Pedalava há pouco tempo fui passar um fim de semana a Gondramaz com o meu marido e levámos as bikes. Na altura não havia raposas mas apenas cabras e cabritos e uma chanfana de comer e chorar por mais. Decidimos pedalar até lá acima ao topo para ver as vistas. Meu Deus! Quanto lá em cima era o topo e que grande empeno que apanhei que nem à mão a conseguia levar :)) Em contrapartida a descida foi brutal. Gostava de lá voltar, é lindíssimo.

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  3. Olá GM,
    Percebo bem o que dizes. Este último Domingo passei, de novo, pela cumeada ao cimo do Gondramaz. Para Sul, o vale da ribeira de Alge, para Norte o imenso vale até ao Caramulo.
    Espero que a recuperação esteja a ser rápida e que possas em breve voltar a experimentar uma bela chanfana no Gondramaz e um empeno de bike até lá acima para ver as vistas ;)
    João

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