Seis e pouco da manhã e já pedalava pelas ruas da vila. Escuro ainda, o vento a arrefecer-me as faces e os dentes (não convém pedalar a sorrir quando está frio; arrefece os dentes !). Foi uma bela maneira de começar; as ruas desertas, apenas as folhas a esvoaçarem por ali sob o vento e iluminadas pelos candeeiros e eu, também por ali, às curvas a ocupar toda a estrada. E nem cães nem gatos. Dantes, ainda não há muito tempo, viam-se cães a vadiar pelas ruas e jardins. Agora não. Pouco depois encontrei-me com os dois companheiros com quem ia pedalar até ao cimo da serra do Caramulo. Com quem ia fazer o mítico "assalto ao Caramulo do dia 1 de Dezembro". Eu, que ainda levava o sorriso no rosto, dei com eles a sorrirem também. Sabíamos que a coisa ia ser danada. Tínhamos previsto que até lá seriam 65 Km mais coisa menos coisa e para aí uns 1750 m de acumulado positivo em altitude. Mais 1000 e tal para a volta.
Primeiro teríamos que atingir o rio Mondego e seguir pela margem esquerda. Apanhámo-lo 30 km depois em Penacova. O Sol tinha nascido antes de termos iniciado a descida para o rio. Belíssimo, por baixo de nuvens negras sobre a cordilheira Açôr-Lousã. Ainda me passou pela cabeça tirar uma fotografia mas iria ficar tão desiludido ao vê-la, sabia de antemão, que desisti.
O Mondego ia tranquilo (Suzanne takes you down to her place near the river ...).
Pedalámos vários km pela margem, ora em estradões e praias fluviais, ora em "single tracks" em zonas húmidas cobertas de vegetação densa e onde a roda traseira patinava nas raízes molhadas, até zonas com plantações. Perto da barragem da Raiva, onde o atravessámos, as pedras espalhavam-se por ali, pelo leito baixo do rio. Tudo muito bonito.
O tempo foi fechando. Muitos km e pedaladas depois, passados Mortágua, e guiados por GPS para nãos nos perdermos nos caminhos, já a meio da subida da serra do Caramulo, aos cerca de 500 m de altitude, parei e olhei para trás. A serranias na linha do horizonte, de onde tínhamos partido pela calada da noite sob intenso temporal e com os lobos a uivarem lá longe (bem, agora deixei-me levar um pouco pela imaginação - estava apenas vento e um friozinho, nada demais), estavam sob um céu carregado. Seria preciso voltar para lá, uma vez atingido o cume do Caramulo.
Já na cumeada da serra, começámos finalmente a encontrar outros companheiros de pedaladas. Centenas e centenas. No percurso final encontram-se os grupos que subiram a serra, partindo de diversos locais à volta, no sopé. É uma grande festa. Grupos surgem a subir os caminhos da serra por todos os pontos cardeais. É um passeio espontâneo, não organizado, sem qualquer apoio e guiado por GPS. Depois vai-se quase em pelotão, incentivando-nos mutuamente (tirando uma meia dúzia que faz daquele encontro uma corrida).
É também onde os horizontes se abrem, o ar fica mais frio e se tem a sensação de andar lá por cima. Estou sempre impaciente para chegar ali.
Já perto do cume avistam-se as formações de granito características do topo. Não sei o nome da povoação (e não aparece no google earth) mas parece um oásis no meio da rudeza à volta.
Em Malpalhão de Cima, aldeia de granito e gado e caminhos ladeados de muros de granito e grandes lages de granito a pavimentar o chão aqui e ali, o bar da aldeia enche-se de centenas de pedalantes. Poucos cabem dentro e cá fora é preciso furar pelo meio da multidão para fazer os últimos 2-3 km que falta para o cume. Para o Caramulinho (parece ali tão perto e tão pequeno mas é imponente):
Aqui em cima o vento sopra forte, o suor arrefece-nos e, por regra, a fome aperta (felizmente pessoal da zona, sabendo do "assalto" do dia 1, monta por lá umas barracas de comes e bebes e é ver a bela sandes de presunto em quase todas as mãos enluvadas num contorcionismo, tentando segurar a bike, o cantil da água ou a mine e furar pelo meio da multidão). Há um cerrar de dentes que resulta da sensação de frio à medida que o suor nos arrefece com o prazer de trincar as sandes.
Como quem crava a bandeira depois da conquista de um qualquer cume nevado (e há anos em que o cume está nevado), tira-se a fotografia da praxe.
Vamos lá fazer contas. São quase 2, o Sol põe-se às 5:30, já vamos chegar de noite. Nem penses. agora é a descer. Em 3 h estamos lá. Mas isso dá mais de 20 à hora. Pelo meio das matas não é possível. Ora, quem é que quer saber de aritmética, vamos mas é andando.
Quando chegámos de novo ao Mondego, 8h depois de lá termos passado pela manhã, o Sol já se punha.
Ainda estive por ali uns minutos parado. Vamos, está de noite, diziam eles. Primeiro fiquei fascinado com a disposição das pedras. Achei muito bonito. Depois fiquei a pensar qual a finalidade (quebrar a força da corrente? barreira para impedir descida de barco? barreira para reter árvores e outros detritos? impedir a erosão do leito?...)
Chegámos de noite, perto das seis. Tínhamos partido de noite há 11h e tal atrás. Foram 9:20h em cima da bike a pedalar.
Tal como à partida, despedimos-nos com um sorriso.
Afinal, passou depressa, tantos os belos sítios por onde pedalámos.
Foi uma not so long and winding road
Que aventura fantástica João. Que lugares lindos. Tenho tanta pena de não ter ido, apesar de bastante constipada e com tosse, queria ter ido e andei a chatear o marido, mas ele não estava para aí virado. Ainda não foi desta... Espero conseguir convencê-lo no próximo :)
ResponderEliminarEu gosto do "assalto ao Caramulo" porque é uma festa. Sobretudo quando nos juntamos todos lá em cima, nas cumeadas, para os últimos km. Claro que aparecem uns armados em pros mas maioria vai para a festa. Nada é organizado, tudo é espontâneo e em autonomia. Mas convém juntares-te a um grupo e ter um track GPS de ida e volta (é fácil perdermos-nos nos caminhos durante a subida).
EliminarTudo tão bonito, João.
ResponderEliminarNunca fui ao Caramulo.
Reportagem e fotografias excelentes, como sempre, aliás.
A última fez-me lembrar a Irlanda (que só conheço dos filmes e revistas).
Também gostei da música, era e ainda sou muito fã dos Beatles.
Maria
E estamos outra vez em cima da data: 1 de Dezembro. É uma festa; milhares de pessoas a pedalara e a correr serra acima, tipos com furgonetas a assar febras e a vender tinto ... tudo espontâneo sem qualquer tipo de organização ... just for te fun.
EliminarCuriosa a associação com a Irlanda. É que para mim a Irlanda é mais colinas verdejantes.
Esta música do (sir) Paul, a long and winding road, já deve ter aqui posto umas mil vezes. O Paul MacCartney faz músicas que parece que sempre existiram. Ouvimos o começo e adivinhamos o que vem a seguir, de modo muito natural. Belíssimas. É como os escultores que dizem que a escultura já lá estava, eles só retiraram o que estava a mais.
João
Olá João,
ResponderEliminarPois, para mim a Irlanda também é tudo verdinho, ruínas de castelos, falésias e mar a perder de vista, tudo com ventos uivantes, assim à la Ryan's Daughter.
Acontece que não há muito tempo vi um vídeo do Giant's Causeway (nada a ver, tudo aquilo é gigantesco) mas lá pelo meio vi umas imagens de pedras negras na água azul escura que me ficaram na memória. E quando vi esta fotografia das pedras no Mondego lembrei-me da Irlanda.
Não tem nada a ver, ou se calhar até tem...
Maria
Olá Maria,
Eliminarpois é, a mim também em acontece. Um som, uma imagem, uma palavra que na altura se perde no meio de outras mas que ficam impressas na memória imunes à passagem do tempo. Neste comentário a Maria usou palavras que (no contexto em que as usou) me prenderam e que me trouxeram a memória de outras. As suas foram "ventos uivantes" (uuuaaaauuu, pensei) e as que recordei foram as de uma mensagem de um amigo Argentino que, estando eu para visitar a Argentina, me falava da possibilidade de visitar a costa e contemplar o "ferocious ocean". E era isto!
E a Argentina para mim é a Patagónia, especialmente o Perito Moreno, as cataratas do Iguaçu, o Borges e o Piazzola.
ResponderEliminarTantos países que adoraria visitar...
Mais vai ter que ser na próxima reencarnação:)
Hoje estive a ver uns vídeos do seu baloiço e também da tal cadeira sobre a ribeira, aliás até vi um que mostra a montagem da mesma.
É uma zona lindíssima, sem dúvida.
Maria
Olá Maria,
ResponderEliminaraqui há dias, na resposta a um comentário seu, esqueci-me de lhe enviar este link par ouvEr:
https://www.youtube.com/watch?v=N07Q6SAN6cQ
Caso não conheça, suspeito que vai gostar.
João
Olá João,
ResponderEliminarJá tentei 3 vezes e dá sempre vídeo indisponível.
Não dá para dizer o nome e o autor do vídeo? Talvez consiga chegar lá, não sei, agora fiquei curiosa...
Maria
Maria,
Eliminartente estes:
https://www.youtube.com/watch?v=dHpHxA-9CVM
https://www.youtube.com/watch?v=JCG8F32Tnps
https://www.youtube.com/watch?v=rvgAS2BwIbQ
É o Ludovico Einaudi a tocar piano numa plataforma no oceano ártico (em colaboração com o Greenpeace)
EliminarQue maravilha, João, é tão belo que até dói!
EliminarMany,many thanks!
Bastou pôr o nome dele no youtube e vi logo o Elegy for The Arctic.
Belíssimo! Já vi 4 vezes e também o making off.
Tenho um fascínio por paisagens geladas. Pode ser a Patagónia ou o Alaska, a Noruega ou até a Serra da Estrela.
Viu o filme Into the Wild?
É um dos "meus filmes", banda sonora incluída.
Obrigada, mais uma vez.
Maria
Fui à net ver o trailer do Into the wild. Já antes tinha lido ou visto algumas imagens. Tenho que tentar ver.
EliminarUma das coisas que já me passou pela cabeça, falando de paisagens geladas, foi pedalar pela Islândia.
João
João
A Islândia é (deve ser) uma das últimas maravilhas do nosso planeta. Por favor, vá até lá e depois conte-nos tudo aqui:)
EliminarO Into the Wild é uma história verdadeira (também tenho o livro) e vale muito a pena ver.
Maria
Às vezes convém seleccionar os sítios que se visitam; é que há o risco de querer ficar por lá ;)
EliminarJoão
Engraçado, João, vim aqui parar por acaso. E não é que foi mesmo pedalar à Islândia? Só que lhe faltaram as palavras (e talvez o tempo) para nos contar tudo...
ResponderEliminar🐧🐧
Maria