quarta-feira, 10 de maio de 2017

Corços (vultos) na mata

Maio 2017


O vento soprava suave, enchendo a paisagem como se fosse o mar ouvido ao longe. Um som longínquo, grave, vibrações que se sentem mais do que se ouvem. Sentem-se com os ossos. O caminho é um daqueles caminhos que vai por ali fora, que serpenteia a meia encosta sobre o vale que se abre a Sul, o vale do Coentral. Pedala-se como se veleja no mar (digo eu, que que nunca velejei), fazendo as rugas da serra como quem sobe e desce as ondas e se se estivesse sempre no mesmo sítio. Do lado de cima do caminho há uma mata de pinheiros pequenos, não necessariamente jovens porque a esta altitude nunca crescem muito e, do lado de baixo, as encostas estão cobertas de arbustos, de carqueja. Para além da carqueja há mais carqueja e é carqueja por aí fora até ao alcance da vista. A rasgar a paisagem.



Atravessou-se-me a ideia de que pedalar por ali é como que tocar violino; digo eu, que não toco violino. Ou como dançar uma valsa (dou um jeitinho). Ou as duas coisas, a kind of mood for love:


(Encontrei por acaso ao procurar Neil Young: In the Mood for Love - Shigeru Umebayashi)

Cada curva do caminho cria a expectativa de se dar de caras com algo inesperado. Por exemplo, uma vez dei com milhões de borboletas amarelas pousadas no chão; à medida que pedalava elas esvoaçavam e envolviam-me em nuvens e eu, em estado de espanto, sem saber o que fazer. Outra vez dei com uma manada da veados, talvez meia dúzia. Quando me viram fugiram espavoridos encosta acima excepto um muito jovem que não conseguia subir a barreira do caminho. Segui, ele corria à minha frente e, então, reparei que os outros não se tinham ido embora, acompanhavam-nos correndo por entre os pinheiros do lado de cima do caminho numa linha paralela ao caminho. E eu, em estado de espanto, ia pedalando sem saber o que fazer. Às tantas o juvenil que corria à minha frente lá conseguiu subir a barreira numa local mais baixo e juntar-se à família. Oura vez, após uma curva, vi um animal que vinha pelo caminho em direcção oposta. Vinha por ali com o ar descontraído de quem passa ali muitas vezes. Às tantas, quando deu por mim, parou. Sentou-se.  Eu parei também. Desci da bike e tentei encontrar um pau. Ficámos ali imóveis a uns 50 m mudo outro. Eu tentava receber o que era.  Sem óculos e com umas lentes que já estão descalibradas não chegava a nenhuma conclusão. Ele, castanho, ágil, observava-me. Percebia-se muito bem que avaliava a situação.  Fitámos-nos. Ficámos nisto bastante tempo até que, assim de repente, ele foi-se embora em trote como que a pensar: que se lixe, não quero chatices, tenho mais que fazer. Para raposa pareceu-me grande demais, para cão tinha uma atitude atenta e inquisidora  de animal selvagem.

Depois há o azul. Por ali pedala-se em azul



Mas a história dos corços. Retomando: o vento soprava suave, quase que se podia dizer que tudo estava em silêncio. Tinha parado. Distraído comia uma banana e bebia uns golos de água. Percebiq ue havia alguma coisa por entre os pinheiros, do lado de cima do caminho. Um vulto fugidio, depois outro. Silêncio. Apontei para lá o telemóvel. Ao início percebem-se os vultos ao centro, na imagem. Depois, quando me movo surgem novamente. É assim, estar ali e perceber que os corços passam silenciosos e que os vemos apenas de vez em quando, por acaso. Estamos ali por acaso e eles passam por acaso. Fica uma ideia de liberdade no ar, em fundo, como o vento.



6 comentários:

  1. Oh. Que fixe. Já vi bastantes animais no mato quando ando de bike, mas veados e corços só vi quando ia de jipe. De vez em quando ouve-se correr bichos nos arbustos ao nosso lado mas nunca se deixam ver

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    1. Eu acho que são mais as vezes em que eles nos vêem do que nós a eles. Já dei de caras com alguns, ali à minha frente, e é um alvoroço, mas estes vi-os por acaso. Passaram fugazes e silenciosos como sombras.
      Pode parecer-te esquisito mas muitas vezes sinto um cheiro "orgânico" intenso e, sem nada ver, sei que por ali há algum animal (javali, veado, gineta ...). É que como os aromas no cimo da serra são finíssimos (têm pouco ruído!) e "arbóreos", o cheiro "orgânico", por leve que seja, sobressai facilmente.

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  2. Que maravilha, João.
    E pode dizer onde foi aquela cena das borboletas amarelas, ou é um segredo muito só seu?
    E cá está a belíssima música que também pôs no post de Kyoto...
    Até para o ano!
    :) Maria

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    1. Mea culpa.
      Foi no vale do Coentral, não foi?
      Que maravilha, o que eu adorava passar por uma cena dessas...
      Maria

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    2. Sim, foi num estradão a meia encosta sobre o vale do Coentral, a aldeia dos neveiros. O mesmo onde tirei as fotos da carqueja e onde avistei os corços por entre as árvores. Embora não seja um local de difícil acesso (vai-se lá de jipe) é isolado. Ninguém anda por ali. Foi inacreditável na verdadeira acepção da palavra; o chão pejado de borboletas que, a medida que avançava devagar, evitando pisá-las, levantavam voo às centenas. Devo ter apanhado o momento exacto da transformação de larva em borboleta. Ou, então, algum alimento especial cobria o caminho, atraindo-as.
      Repito músicas e fotografias e etc mas não me importo com isso.

      Combinado, Maria: até para o ano !

      João

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    3. Ah João, que maravilha!
      E o que é um blue-eyed raven comparado com essa explosão de amarelo?
      (será que blue-eyed existe ou acabei de inventar?).
      Maria

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