quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019

uns farrapos de neve aqui e ali e a Estrela branca no horizonte

Fevereiro 2019
Serra da Lousã



Comecei a encontrar uns farrapos neve por volta dos 700 m de altitude. Neve a esta altitude significava que a tempestade da véspera fora dos infernos.
Logo depois devo ter entrado em mind wandering, imaginando a tempestade: o vento forte, muito forte, em rodopio, trazendo a neve com força, não na vertical mas oblíqua, o assobio infernal do vento misturado com o rumor grave resultante da oscilação das árvores em fundo, talvez um vulto fugidio, procurando abrigo, noite escura, breu, vento, a neve a acumular-se, um rebuliço ...

Não era o caso do dia, o desalinhamento de Neptuno com o buraco negro do centro da nossa galáxia sob influência de Vénus por sua vez altamente influenciado por Europa a lua de Júpiter que como toda a gente sabe tem água e provavelmente uns seres verdes com grandes cabeças não esquecendo obviamente a conjugação gravítica com a lixeira dos restos de naves espaciais que orbitam a Terra conjugada com o satélite Chinês que está em orbita estacionária no lado escuro da Lua, determinou um dia de sol. Mas quantas vezes fui já a rider on the storm.




Nascido o dia, um dia com céu azul, os raios de Sol incidindo na neve transformavam-na em gotas de água. Não de um modo abrupto mas lentamente, passando por um estado sólido translúcido intermédio que reflectia a luz.


E, com grande probabilidade, muitas daquelas gotas irão ser absorvidas pelas plantas verdes logo ali através das raízes, subir até às folhas e aí, juntamente com o dióxido de carbono da atmosfera, e aproveitando a luz do Sol, servir para fabricar (entre outras coisas) o oxigénio que respiramos.
Talvez que nas moléculas de oxigénio que por ali avidamente respirei, alguns dos átomos de oxigénio tenham feito parte de cristais de gelo a água ali no chão. Os átomos que já tinham sido neve andavam agora no meu sangue!



Uma pedalada e mais outra e mais um suorzinho nas costas que o Sol não aquece só a clorofila nas folhas das plantas para fazer a fotossíntese. Caso seguisse num carro com vidros fechados e bem insonorizado parecer-me-ia que o dia seguia tranquilo e solarengo - a bonança depois da tempestade. Seria um engano de alma ledo e cego. Os riachos enchiam o ar do som da água corrente, em turbilhão, contornando pedras, ultrapassando outras, percorrendo novos caminhos fora do leito normal.










Já acima dos 900 m de altitude, o lado Sul dos pequenos bosques parecia em chamas. Sob Sol intenso via-se um clarão ao fundo contra o qual se recortava a silhueta da  árvores, enquanto que o lado Norte, sombrio, retinha ainda os farrapos de neve da tempestade da véspera.



Mas ia com pressa. Na minha cabeça via já, elevando-se sobre as serranias a Este, o maciço central da Estrela branco, coberto de neve. Faltavam ainda vários quilómetros, muitas pedaladas a subir até que, na curva da estrada já perto do cume, do Trevim, aos cerca de 1100 m avistaria o que esperava avistar. Quando isto acontece, quando nos atinge em cheio a vontade de chegar a um cimo qualquer para olhar o horizonte, mete-se um obsessão no corpo que nos leva a pedalar sem consciência do esforço. Uma e outra e mais outra e é como se fosse uma dança, as pernas a oscilantes, os braços flectidos, permitindo deitar ligeiramente o corpo sobre a bike, o chão que passa sob as rodas ... 1, 2 minutos, meia hora, uma?

Cheguei. Lentamente, à medida que dava a volta ao sopé do Trevim (o cume da serra da Lousã)  e virava para Este, foi surgindo a cordilheira da serra do Açor e, no horizonte, tal como tinha imaginado, o maciço da Estrela coberto de neve.






E, já que estava ali, terminei a espiral que me levou ao Trevim. A ventania e o frio aumentavam a cada pedalada. O frio estava escrito nas pedras à beira da estrada, nas aparentemente improváveis estalactites de gelo.




O termómetro marcava 3 ˚C. A ventania que varria o cimo da serra, fazendo as árvores oscilar e gemer como os mastros dos veleiros em dia de tempestade, trazia a sensação térmica para muitos graus abaixo de zero. Cinco, seis, sete? Sem luvas, com o telemóvel na mão gelada, comecei a reparar que o click do disparo, normalmente um som rápido, se tinha transformado num cliiiiiiiick arrrraaaaassstaaaddooo. Às tantas, apesar de estar com bateria a 60% a florzinha de estuda do iPhone desligou-se e, mais do que isso, recusou-se a ligar novamente. Foi a segunda vez que tal me aconteceu, com o frio o telemóvel desligou-se.
Num rasgo de inteligência dirigi-me ao telemóvel em linguagem tabernácula na vã esperança de que tal estratégia resultasse. Cheguei-me para o Sol, enquanto fazia o plano para a descida.
Estava do lado Norte e, daqui, via claramente o picoto da Cebola (o cone à direita do planalto branco da Estrela)


A descida é o maior problema; vinte e tal km a descer sem aquecer, com o vento frio que até os dentes arrefece, dá para ficar num estado próximo das estalactites de gelo que tinha encontrado na subida ao Trevim.

Optei pela estratégia do costume: "em vez de descer pela estrada, meto-me pelos caminhos a pique, a direito serra abaixo, cheios de calhaus e com o stresse e o receio de cair nem vou sentir o frio." Uma estratégia que normalmente tem sucesso, caso não se dê um trambolhão pelas cascalheiras abaixo.



Joelhos, cotovelos e ombros quase inarticuláveis, mãos agarradas aos travões como as garras da águia  pesqueira quando agarram um peixe, vim por ali abaixo e voltei às meias encostas onde jorravam as cascatas. Fechara-se o ciclo, voltei para onde tinha começado as pedaladas.

From the beginning (ELP)



Pus-me ao Sol a descongelar devagarinho. Ali sentado na pedra a ouvEr o turbilhão ao meu lado. O iPhone ressuscitou e para o testar apontei-o para a água. A ribeira em not so slow motion que, embora obedecendo às mesmas leis leis de Newton que quando vista na velocidade a que o nosso cérebro se habituou a ver as ribeiras a despenhar-se encostas abaixo, nos parece de um mundo regido por outras leis.



4 comentários:

  1. Olá João,

    Eu também vi a Estrela coberta de neve, só que de muito mais longe e com muito menos frio.
    Gostei de saber que a operação "descongelamento do stalactite man e acessórios" foi um sucesso.
    Ia dizer: Que imprudência arriscar-se assim.
    Mas não adianta, pois não?
    E o bem que faz à alma (whatever it may be) supera o dano que possa fazer ao corpo, não é?
    E para um Biker on the Storm isso são peanuts :)
    Riders on the Storm: what a great, great song, the last one by the way.
    E todos temos as nossas personal storms para vencer...
    A fotografia das estalactites de gelo já está na minha galeria de imagens, e vou voltar aqui para voltar a ouver aquela cascata (e para mostrá-la àquela pessoa que já sabe).

    Sábado feliz!
    Maria

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    1. O risco pode ser visto como uma variação a partir da linha base, o invulgar a partir do que estamos habituados a fazer. É diferente em todos nós.

      Não sabia (... the last one by the way). Fui confirmar se tinha entendido bem: Jim Morrison morreu em Paris um mês depois do riders on the storm ter saído.

      A propósito das estalactites de gelo ainda me passou pela cabeça ficar ali a ver se conseguia ver uma gota de água a pingar da pedra, escorrer pela estalactite cada vez mais lentamente e solidificar na ponta aumentando mais um pouco o tamanho da estalactite. Mas acho que eu iria congelar primeiro!

      João

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    2. As coisas incríveis que lhe passem pela cabeça, João ;)
      Mas é por isso (entre outras coisas) que eu gosto tanto deste blog.
      Maria

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    3. ... passam pela cabeça.

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