sexta-feira, 15 de março de 2019

Estrela, um dia luminoso (2 de 2)

Serra da Estrela
(Março 2019)


(o som está péssimo, sorry mas não encontrei melhor)

Chegado ao planalto da Torre e contemplado o Açor fiz de conta que elaborei planos para a descida: "Ora, trinta km até aqui contando com umas voltas, sigo até ao Covão da Ametade, vale glaciar do Zêzere, Manteigas (ou Verdelhos?), Valhelhas ... isto dá mais umas dezenas."
Iria fazer mais 70 km (claro que furei o plano, ou melhor mantive-o como rumo principal mas fui dando umas voltas por ali e por ali, para espreitar o rio, para lavar as vistas no planalto sobre o vale glaciar ...).

Parei mal tinha iniciado a descida. A pequena lagoa junto à Torre estava gelada. Não me faltou a vontade de tentar dar uma pedaladas sobre a superfície mas caraças pá não sejas parvo - gritaram os neurónios do cérebro envolvidos nos mecanismos da razão.




A descida é uma vertigem. O conta-quilómetros rapidamente aumenta para as várias dezenas, a atmosfera quase que se torna uma barreira (como quando se põe a mão de fora da janela de um carro a alta velocidade), o corpo a chocar contra as moléculas e partículas da atmosfera (então se houver vento !!!), os horizontes, no entanto, mantêm-se distantes, tal como deve acontecer ao velejar em alto mar.
A descer (a velejar) a grande velocidade, logo depois da curva do Cântaro Magro, travei a fundo. Parei outra vez. Os vultos nas pedras mal se viam mas eram uma boa medida para se perceber a escala do que daqui se observa.




Nos Piornos, tal como planeado. Segui para o Covão da Ametade. Mal tinha feito meia dúzia de curvas,  furei o plano e cortei para o planalto sobranceiro ao lado Oeste do vale glaciar. Piso pesado, mole, ensopado de água devido ao degelo. Alguma neve nas bermas ainda. Afastava-me do Covão da Ametade (na base do Cântaro Magro que se vê à direita na fotografia) e aproximava-me cada vez mais de um dilema. O planalto onde estava é belíssimo. Pedalar ali, àquela altitude, é uma bela de uma sensação. Caindo para a direita iria por Valhelhas (como fiz já noutras pedaladas), pela esquerda pelo Poço do Inferno. Em ambos os casos um percurso que me levaria de volta à Covilhã. Mas e o Covão da Ametade? Salomónico, decidi: dou aqui umas voltas e, depois, volto para trás, volto à estrada que deixei e que me vai levar pelo vale glaciar.




De novo na estrada asfaltada dos Piornos para Manteigas que tinha deixado, parei na fonte da Jonja. Fonte da Jonja?
Parei pela água mas, sobretudo,




porque sentado na fonte de costas para água que corre abre-se à frente uma paisagem esculpida pelo gelo há 20 mil anos; o Vale Glaciar do Zêzere. Um visão avassaladora. No fundo corre o rio Zêzere.





Antes de acompanhar o Zêzere, descendo a estrada que serpenteia pela meia encosta do vale, parei no Covão da Ametade. Belíssimo, no sopé do Cântaro Magro, é hoje um local turístico muito frequentado. Bem diferente do tempo em que, adolescente e com um amigo aqui acampámos e à noite, sozinhos ali no planalto da serra, uivámos à volta de uma fogueira até sentirmos um calafrio que se nos meteu pelo corpo dentro ... o eco devolvia-nos os uivos mais intensos, mais graves e intermináveis ... o eco do eco do eco de mil ecos. Ficámos petrificados. Caiu-nos em cima a solidão, a imensidão granítica que nos rodeava sob a via láctea bem nítida e sei lá que mais. Metemo-nos na tenda em silêncio, à escuta, sós no Universo ...



(há uns tempos a cor dominante na fotografias que aqui tirei era o branco)

Descendo o vale glaciar, os riachos bem nutridos, alimentados pela neve, contornando pedregulhos gigantes, compunham a banda sonora que me embalava a descida. E como eu gosto desta banda sonora.

Depois, mais umas curvas fechadas na long and winding road que me levaria a Manteigas, a Fonte de Paulo Martins. Icónica. Tentei um ângulo de modo evitar apanhar os garrafões de águagarrafões de plástico alinhados e o tipo que os enchia na fonte.



No vale, há anos, havia os casais, casas cobertas de colmo com um pequeno redil para as ovelhas. Hoje - fiquei com essa impressão - algumas estão transformadas em casas de férias.





Legenda:


O vale glaciar traz-nos das terras altas, da montanha para um outro, mais ameno, bucólico, escolhido também pelo Zêzere para fazer o seu caminho. A tarde avançava. No fim do vale, após a curva do viveiro das trutas, planeei uma paragem estratégica em Manteigas para um café e um pastel de feijoca, especialidade da terra, na padaria/pastelaria Floresta. Pouco tinha comido até aí. Horas que nem dei pela fome. Tinha bebido vários cantis de água, comido uma banana, um pão e mais nada.

Meti-me pelo vale que me iria levar à Cova da Beira, quase a Belmonte. A partir da estrada asfaltada, uma estrada de inclinação suave que percorre uma das encostas que limita o vale do Zêzere desde Manteigas até Valhelhas, por vezes consegui pedalar mais junto ao rio, por entre freixos e pedras rolantes. Alguns dos troços marcados como "grande rota do Zêzere".




O Sol a cair sobre a encosta Oeste acentuava sombras horizontais, penumbras e contra-luzes que a luz intensa e mais vertical do meio-dia oculta. O entardecer. Além de uma bela palavra, é um dos momentos do nosso ciclo circadiano de 24h, inscrito nas nossas células, no nosso corpo, que para mim é muito sedutor. 



O entardecer junto ao rio Zêzere (que eu vinha a acompanhar há vários quilómetros) em Valhelhas.




É curioso mas, durante as pedaladas, a memória vai em standby. Ali, no tranquilo e belo vale que o Zêzere percorre, não me assaltou a memória das altas paragens que tinha percorrido antes de ali chegar


É o presente  que se impõe. Do mesmo modo, mais tarde, já quase noite na Cova da Beira a caminho da Covilhã, o vale do Zêzere era uma recordação hibernada, tal como as pedras no fundo do rio onde se escondem as trutas e que eu tanto gosto de olhar. Quando novo, metia-me em rios destes e bem sei o que escorregam estas pedras cobertas de algas.


O fértil vale onde, depois de impetuoso e caudaloso por entre rochas  no vale glaciar, o rio Zêzere se espraia, formando espelhos de água tranquilos. Percorri o vale, aqui sim, como um passeio no parque.
Por vezes, sem dar por isso, vou embalado com músicas que se me atravessam na memória. Às tantas vinha por ali a pedalar e a assobiar Fly me to the moon.


O telemóvel com a bateria quase esgotada refreou-me o ímpeto de fotografar. Mais uma ou duas, pensei. Uma, olhando para trás: o rio e as montanhas, lá em cima, por onde pedalara horas atrás.


Ao percorrer o vale, atravessou-se-me uma música na memória. Acontece-me muitas vezes, vou por ali fora a pedalar com uma música na cabeça e só muito tempo depois , numa paragem, num imprevisto etc, dou conta que vinha embalado em melodias.
Desta vez foi Caçador de Mim, cantado por Milton Nascimento, o genial Milton, e o Fly me to the moon numa versão tocada em saxofone.

And, here it is, Fly me to the moon para dois saxofones, em que um deles é o ciclista extraordinário (vamos lá a ver se a file abre, gravada à primeira, sem ensaios, e a tentar sussurrar para não abafar o outro):

Fly me to the moon


A Cova da Beira fez-se já ao ocaso. Passei perto de Belmonte, terra de Pedro Álvares Cabral e com tradição na comunidade judaica em Portugal.


Pomares de pessegueiros em flor ladeavam a estrada.





Guardei ainda uma última fotografia para registar a capela da Sra. do Carmo e o largo onde, na minha infância, havia a festa em Agosto. ainda hoje se realiza mas os homens não vão vestidos com os seus fatinhos de Domingo feitos de grossos tecidos pretos e com gigantescas melancias à cabeça e o chapéu de chuva pendurado no casaco junto ao cachaço no pescoço (nunca se sabia quando havia uma "bulha" e era preciso um bastão). O Verão quente, o pó do largo onde se fazia a feira e que cobria a roupa e a garganta, os animais, a roupa que abafava e fazia suar em bica, a confusão, o vinho que corria a rodos, a festa, a música, as procissões ... era um grande acontecimento.

Hoje há uma via rápida logo ao lado e o sítio tem um aspecto asséptico.
A Covilhã ao longe, a 10Km de distância. Uma distância suficientemente grande para permitir que a noite descesse sobre o vale. Chegada de noite, sem luz e a experimentar o friozinho finíssimo que se instala nos vales com o anoitecer, 9h após ter partido e 100 km pedalados. Foi a Estrela a 100.










4 comentários:

  1. What a(n) efe gi day, JDLA!
    A primeira fotografia está um espanto.

    Mão contra o vento... ou quando vamos de combóio e metemos a cabeça de fora da janela, contra o vento, e mal conseguimos respirar (tendo atenção às pontes "corta-cabeças" obviously); conheço uma tonta que fazia isso.

    Entardecer no Zêzere em Valhelhas: outra foto inesquecível.
    Fui lá 2 vezes, mas sempre virando à esquerda antes de chegar a Belmonte. Além do pelourinho, encontrei uma bela praia fluvial.
    Belmonte: terra linda, linda, de Pedro Álvares Cabral e também de Zeca Afonso, de pelourinho com cães dorminhocos e belíssimo castelo,
    e com uma das mais belas e singelas Piétàs que já fotografei (outro dos meus temas).
    Nem sei como consegui que me abrissem a porta da capela e, ainda por cima, me permitiram fotografar com flash.

    Covão de Ferro: foi aqui que alguém me tirou a última fotografia na Serra da Estrela, há vinte e tal anos. Voltei à serra mas só fotografei paisagens.

    Fly me to the moon
    Let me play among the stars...
    ...In other words, please be true
    In other words tralalala....

    Abriu!
    Claro que gostei, mas preferia um solo ;)
    E fui ouver o Frankie Blue Eyes.

    Gosto sempre que o Vincent apareça por aqui, logo adorei a foto dos pessegueiros em flor.

    Também conheço essa Sra.do Carmo, mas não em dia de festa, habitualmente fujo das multidões.
    Ainda gostava de voltar àquele cruzamento lá no Açor... para confirmar.

    Bom fds, João.
    :)
    Maria


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    1. Adenda:

      Ainda aqui volto para pedir desculpa às outras fotos que não destaquei.
      Seria impossível fazê-lo, ficaria o comentário maior que o post...
      E o culpado é o João... ou a beleza da Estrela, ou eu que já estou a ver mal para caraças e vejo beleza em todas, sei lá...
      Mas é o que sinto.
      Ah e a Via Láctea... há mil anos que não a vejo.
      Maria


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    2. Olá Maria,
      Bem vi o pelourinho em Valhelhas mas a poupança de bateria no telemóvel impediu-me a fotografia. Nesse largo há também um belo chafariz. Onde, aliás, enchi o cantil.
      A Estrela é uma montanha belíssima. Dos detalhes mais próximos às lonjuras basta olhar com olhos de ver :)

      Qual é a relação de Zeca Afonso com Belmonte?

      João

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    3. O Zeca viveu lá uns tempos em casa do tio, que era o Presidente da Câmara, mas não foi nada feliz, diz mesmo que foi um tempo desgraçado. O tio era do regime e o Zeca, sendo o sobrinho do senhor doutor, nem podia brincar com os outros miúdos, entre outras coisas.
      Se googlar Zeca Afonso em Belmonte, vem lá tudo.
      Eu lembro-me de ver a placa na casa onde ele viveu, mas só recentemente soube os pormenores.
      Eu tenho fotos do pelourinho. Da primeira vez, estavam dois velhotes lá sentados (que até se queriam levantar, mas eu disse que não, até ficou mais engraçada assim).
      Está um pouco escura porque já era tarde, mas vou enviá-la na mesma.
      Cães dorminhocos, Cachorras sonhadoras e velhotes simpáticos dão logo outra beleza a um pelourinho :)
      Maria

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