sexta-feira, 8 de março de 2019

Estrela, um dia luminoso (1 de 2)

Serra da Estrela
Março 2019


Durante a subida, como tem sido hábito nos últimos anos, páro para olhar o vale onde nasci e passei parte da infância; a cova da Beira do lado encostado à Estrela. É difícil sobrepor o que vejo actualmente às memórias dessa altura. Da infância. Se o contasse seria para muitos insólito, to say the least. Eu próprio, que gosto de navegar na mudança, quase que desacreditaria na memória não fosse ela tão viva. Até os rostos e os cheiros estão ainda esculpidos a escopro e martelo nas sinapses do meu cérebro.







Daqui, deste sítio, a meio da subida para o "sanatório" (hoje hotel), quase que nos debruçamos sobre a Covilhã, fazendo jus ao nome do local: varanda dos Carqueijais. Que belo nome. Ao fundo, no horizonte, o monte granítico de Monsanto. A espreitar do lado direito, a Serra da Gardunha.








Sol intenso. Dia luminoso. E, pouco a pouco, pedalada a pedalada pela subida íngreme vamos embrenhando-nos na granítica paisagem. Sente-se o impacto do granito a toda a volta. A subida não é um passeio no parque de cabelo ao vento e sorriso nos lábios. Com o esforço, entro com frequência em "mind wandering"; vou por ali Estrela acima a pedalar com a cabeça nas estrelas. Como que num transe. Olhar fixo na roda da frente. Por vezes, sim, olho à volta, para logo depois retomar o transe. Pedalada a pedalada.

Um pouco mais de azul, isto é um pouco mais de altitude, quase nas Penhas da Saúde, a Gardunha fecha e traça a linha do horizonte a azul.








Passadas as Penhas, e passado o lago Viriato (apetece dizer: onde a terra se acaba e o céu começa),









o maciço central. Caraças, o maciço central ! Vai-se impondo na paisagem à medida que cada pedalada nos aproxima. Que força é essa que trazes nas pernas, que força é essa amigo?

Percebia-se que a neve cobria parte do Cântaro Raso.









O vale glaciar da Nave de Sto. António. Na moreia central vê-se claramente visto o "poio do Judeu", a pedra enorme que se destaca de todas as outras.

Contra o céu de nuvens difusas, o recorte dos três cântaros: o raso à esquerda (onde fica a Torre, identificável pela cúpula arredondada do radar), o magro  e o gordo (à direita). Aqui aos 1600 m de altitude faltam apenas 400 para subir à Torre. Basta seguir a estrada que serpenteia cântaros acima.

Na curva ao cimo da moreia, hei-de espreitar o Covão da Ametade na base do Cântaro Magro, centenas de metros lá em baixo. E, depois, durante a descida hei-de lá ir.








O dia ameno e a subida dura obrigava à paragem nas fontes. Bicas que jorram de paredes de granito.








Curva sobre o Covão da Metade. Parei. O belíssimo vale ao fundo onde nasce (um pouco acima) o rio Zêzere. Do lado direito percebe-se a ruga gigante na serra esculpida há cerca de 20 mil de anos por um glaciar: o vale glaciar do Zêzere, o maior vale glaciar da Europa com mais de 10 km de extensão.

Aqui o espaço engana. Os sentidos baralham-se. É que a serra é imponente. Parece logo ali, as bétulas e carvalhos do vale parecem uns pequenos arbustos acastanhados, mas basta reparar na curva da estrada asfaltada à entrada do vale e no tamanho dos carros estacionados para perceber o engano.








No mesmo local, para a direita, as paredes de granito que um dia, há mil anos, eu adolescente, quando estas paragens eram visitadas apenas por pastores, tentei subir (hoje dir-se-ia escalar em free solo) sem qualquer suporte logístico até ficar preso num pequeno patamar (a meio do Cântaro Magro ao fundo à direita) de onde nem para cima nem para baixo. E ali fiquei até que fiz qualquer coisa da qual não tenho memória nítida mas que não me custa imaginar e lá consegui sair dali mais ou menos incólume. Na altura era especialista em saltar de pedra em pedra. Andar por ali em passo de corrida, por estas paredes gigantes fora, saltando de pedra em pedra. A decidir ao microsegundo, enquanto se vai no ar, onde colocar os pés e ganhar balanço para o salto seguinte. E, por vezes, era um pequeno arbusto na falha de uma pedra que, servindo de apoio à mão, salvava o salto.





Ali, entre a imponência majestática do granito, as violetas da serra





Continuei. Depois do túnel, já sobre o vale de Unhais da Serra, as pedaladas começam a ficar mais pesadas. Aos 1800 m a hemoglobina contida nos meus eritrócitos que viajam aos trambolhões no sangue tem já uma certa dificuldadezinha em saturar de oxigénio e as mitocôndrias nas minhas células musculares não acham piada nenhuma a isso. Vale olhar o vale. E ao sentir-me arrebatado pela beleza que me entra pelos olhos sei que pelo menos os meus neurónicos têm ainda oxigénio e energia suficiente para se manter em forma; de outro modo, se estivessem a morrer com falta de oxigénio, como poderiam orquestrar a sensação de beleza que se sente ao olhar o vale? QED.







A chegada ao cimo da serra, à Torre, fez-se sem grandes surpresas, apenas a anormalidade do costume: carros, carros e mais carros, muitas pessoas, a maioria com merdelhices de plástico na mãos procurando um pedaço de neve para escorregar ... de resto nada de especialmente imprevisível.

Tirei a fotografia da praxe, aproveitei para comer um belo de um snack que levava no bolso traseiro do blusão e pus-me a andar dali para fora.







Bem, primeiro ainda fui ao lado Oeste do planalto. Tinha que ir. Tinha que ir olhar o Açor e as serranias por ali fora.

O Açor, o imenso Açor. A medula espinal montanhosa oblíqua no centro de Portugal: Estrela-Açor-Lousã.




Em primeiro plano, à esquerda, o cone quase perfeito do Picoto da Cebola (1400 m). À direita os outros dois dos três gigantes do Açor; o São Pedro e o Culcorinho. Entre eles, o vale onde nasce e corre jovem o Rio Ceira. Na encosta do Culcorinho, a desaparecer do lado direito, o vale do Rio Alva (este que nasce aqui perto do planalto da Torre, ali um pouco a Norte no Vale do Rossim). Ao fundo, na linha do horizonte à direita o St. António Neve e o Trevim (1200 m) na serra da Lousã. Por todos estes vales e picos já pedalei. Pelas cumeadas entre o Picoto da Cebola até ao Trevim. Chego aqui como se olhasse para as serranias pela primeira vez, como um conjunto mas, pouco a pouco, sem querer (e fazendo o que não gosto), descontruo a paisagem e começo a dar nomes aos montes e vales e lembro-me dos sítios e dos caminhos e dos rios ...


(os pequenos vultos na neve servem de régua para se entender a dimensão do que daqui se avista)





Afastado umas centenas de metros da multidão que enchia o largo da torre não dei conta que uma mulher se tinha aproximado. Vendo-me ali, talvez há tempo de mais, aproximou-se (afastando-se do pequeno grupo onde estava - percebi depois) e perguntou-me: ficava aí uma bonita fotografia? Olhei para trás e disse-lhe que sim. Clique.




Tinha feito uns 30 Km. Decidi ir para os lados de Manteigas, passando pelo Covão da Metade, depois Valhelhas .... Iria fazer mais cerca de 70. Foi a Estrela a 100.
(Começa a ficar pesado o carregamento das fotografias. Vou deixar o resto das pedaladas para o próximo post) 

2 comentários:

  1. Olá João,

    Este post é uma orgia de azul, granito e alguma neve.
    Varanda dos Carqueijais: primeira paragem obrigatória para quem começa a subir a Serra pela Covilhã.
    E o nome é porque há por ali muita Carqueja?
    Confesso que não sei.

    Violetas da serra, tão belamente frágeis face à imponência das montanhas.
    E como eu gosto dessa cor...

    E o Dalí (parece-me ele pelos bigodes) partilhou o "gelado Km 0" com o urso do Árctico?

    E como o Açôr é belo, tão belo, nesse mar de azul!

    Vou ficar à espera da segunda parte do documentário.
    Que não demore muito...
    :)
    Maria

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    1. Olá Maria,
      provavelmente a abundância de carqueja (hoje não é tanto assim) deu o nome ao miradouro.
      Neste dia foi interessante observar o céu em contraste com a cadeia do Açor. Tal como acontece com o mar, o céu parecia reflectir as montanhas.
      João

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