Serra do Açor
A organização tinha prometido um dia épico na serra do Açor. Partida do vale do rio Alva, as cumeadas aos 1200 m, 90km para percorrer com orientação exclusiva por GPS, 3000 m de altitude acumulada, a mata da Margaraça, as aldeias do xisto, trilhos de cortar a respiração ... e é aqui que eu fico sem respirar. Muitos precisam de trilhos técnicos e difíceis para que a adrenalina lhes corra nas veias. Por exemplo, às tantas, sob nevoeiro intenso, percorríamos uma encosta inclinada por um carreiro transversal, estreito, em sobe-e-desce, pedregoso e, caso houvesse um descuido, nem sequer sabíamos onde iríamos parar. Eu fiz aquilo com o coração na boca. A organização chamou-lhe o trilho do Açor. Tínhamos a clara sensação de que a encosta tinha centenas de metros, para cima e para baixo, embora nada víssemos. Para mais colou-se-me um gajo à roda traseira que vinha a fazer pressão para eu andar mais depressa. "Queres passar?" - gritei-lhe. "Não, deixa-te ir, estás à vontade". Foda-se, "estás à vontade?" o gajo cola-se-me à roda, vem ali a fazer pressão e diz-me "estás à vontade?"
A mim basta-me a visão das cumeadas, dos vales fundos, da curva de um rio e coisas assim para que a adrenalina acelere nas veias e me eriça os pêlos.
As serranias onde lavrou o grande incêndio de Outubro de 2017. As povoações são oásis brancos no meio do negro das encostas. Pela manhã sob nevoeiro.
À tarde sob céu azul.
O Açor, o imenso Açor. As cumeadas acima dos mil metros, os vales fundos onde correm ribeiras, o vento e a vastidão árida dos cumes, os recantos verdejantes e húmidos dos fundos ... e nós por ali a pedalar; dos cumes aos vales and back. Chegámos de noite, antes da madrugada e fomos embora ao por-do Sol. Um dia inteiro e, no entanto, na memória tenho apenas fragmentos; não um filme completo que consiga rebobinar com coerência. Passámos lá em cima e, agora daqui, vamos descer ao vale e tornar a subir a cumeada e, depois, atravessamos o rio, paramos na aldeia a meia encosta para queijo pão e vinho oferecidos pela dúzia de pessoas que ali vivem, continuamos a subir e, quando chegarmos ao topo, desceremos para o outro vale e cruzaremos o caminho para o Piodão, onde não iremos porque não haverá tempo pois que teremos que subir e descer e atravessar a outra ribeira para tornar a subir e ...
... voltar aos vales cá em baixo. E assim assim sucessivamente.
E as histórias ! Na povoação de Açor (pois, há uma povoação chamada Açor), onde generosamente nos colocaram uma mesa com filhós, mel, broa, broa com chouriço, queijo de cabra e vinho, contava-nos o anfitrião "éramos 6 aqui na terra, 3 de um lado e 3 do outro, felizmente temos aquele tanque ali em cima, está a ver, com água ligado a mangueira aqui em baixo, tudo à volta a arder mas conseguimos aguentar e não cedeu nenhuma casa". Extraordinário. Foi assim que resistiram ao grande incêndio de 2017. As encostas à volta a arder, fogo até onde avista alcançava e ali, naquele canto com meia dúzia de casas, cercados pelo fogo, sobreviveram, 3 de um lado e 3 do outro com mangueiras. Fiquei com pele de galinha ao ouvir o homem, sobretudo porque falava com adeterminação de quem enfrentou uma situação potencialmente letal, sem pieguices nem lamentos.
Olha, passámos além!
No final, a ficha técnica no écran do meu GPS.
Um dia inteiro a pedalar os cumes e os vales do Açor, do imenso Açor. Um imenso privilégio.
Olá João,
ResponderEliminarcomo sabe, tenho um carinho especial pelo imenso Açor, daí também ter sido um imenso privilégio andar a passear à boleia das suas palavras e imagens.
Tem aí 6 magníficas fotografias, nem preciso dizer quais são :)
Quanto às palavras, compreendo bem que, por vezes, prefira andar sozinho...
Mas aquele bocadinho no Açor do Açor (não faço ideia onde fica), com aquela gente (sofrida, valente e generosa) compensou tudo o resto menos bom, penso eu.
🍃🍁🍃
Maria
Ps: A Tinta da China acabou de me entregar o livro "I'm your Man" , uma biografia do Leonard Cohen, com oferta de um saco lindo. Cerca de 600 pags, já tenho leitura para uns tempos :))
Olá Maria,
ResponderEliminarObrigado. Foi tudo bom. Éramos muitos a pedalar e há sempre uns mais rápidos que outros. Em zonas técnicas (eufemismo para "trilhos-onde-podemos-esmurrar-os-cromados") eu sou lento. E, sem possibilidade de ultrapassagem, às vezes formam-se filas. Foi apenas um desabafo. Logo a seguir conversei com o parceiro de trás e rimo-nos um bocado.
Lembrei-me agora do tempo em que "descobri" o Leonard Cohen. Ele, o Cohen, era relativamente novo, if you know what I man :) Aliás, esse foi um tempo de grandes descobertas.
Enjoy the reading.
João
Eu também só descobri (leia-se passei a gostar) do Cohen mais tarde. Quando penso que estive em Hydra nos anos 80 e ignorava completamente que ele e a Marianne da canção tinham vivido ali nos anos 60... e só não digo que foi uma grande história de amor porque Mr. Cohen tinha o hábito de viver várias histórias de amor ao mesmo tempo...
ResponderEliminarAnyway, se soubesse teria ido tirar uma pligrafia à casinha deles. A ilha é encantadora, fui lá por acaso, porque me disseram que não tinha carros, o meio de transporte era o burro e tinha imensos gatos.
E era verdade.
🌼
Maria