terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Lagartas do pinheiro

Serra da Lousã
(Fevereiro 2016)

(Ligar a televisão para o canal "Odisseia" à 7 da matina durante o pequeno almoço dá nisto: conhecer  histórias extraordinárias que se passam à nossa volta com animais de aspecto ordinário)

Há anos e anos. Desde para aí dos 7, 8 anos que conheço as filas de lagartas que parecem funcionar com um megaorganismo (como os cardumes de milhares de sardinhas, ou os bandos de milhares de pardais que, parecendo nuvens, se movem com se fossem um único organismo - isto é um assunto que me fascina mas é outra conversa). Os carreirinhos do "brugos" como diz o meu pai. Vão em fila indiana que se move com uma única lagarta mas, vendo bem, o movimento é individual, cada uma das largadas dobra-se e avança tocando na da sua frente.
Dantes, ir para o pinhal era um problema por causa dos "brugos". Já se sabia, vinha-se de lá com comichão e a pele vermelha, inflamada. Eu, que tenho uma pele que os mosquitos acham deliciosa, nunca tive problemas com os brugos. Andava pelos pinhais e saia incólume. Quanto muito com pedaços de resina agarrada à pele, ...

Hoje, nas voltas de bike pela serra, sobretudo depois do Inverno quando o tempo começa a aquecer, é muito frequente vê-las em fila indiana, encolhendo-se e esticando-se, com cadência, como se alguém estivesse a marcar o ritmo.
E, só agora, depois de tantas vezes me ter atravessado no caminho da fila das lagartas do pinheiro, aprendi para onde vão. Quem são e de onde vinham já sabia.

Depois do temporal dos últimos dias, o Sol deu um ar da sua graça e ... lá vão elas


Não se deve tocar-lhes. Quando se sentem ameaçadas, enrolam-se, abrindo uns poros que liberam uns pêlos microscópicos que difundem no ar e são altamente alergénicos. Eu, quando as encontro, dou guinadas no guiador da bike para evitar passar-lhes com a roda por cima.
Ali vão, à sombra da bike. São pelo menos umas 11 em fila.



Provavelmente este cordão já se separou de outro maior, à saída do casulo. Pois é, é que ela passaram o Inverno num casulo. Ali, naquele pinheiro, no casulo já muito estragado, no cimo à esquerda. Parece uma pinha grande.


No Inverno os casulos, enquanto ainda em bom estado, são brancos. O casulo é tecido de tal modo que mantém uma temperatura amena no interior (penso que acima dos 20 graus C), apesar do frio no exterior. É ali que passam o Inverno. Saem apenas para comer e, como o casulo não tem qualquer orifício, têm que furar para o atravessar. O que é comem? As folhas dos pinheiros. Por isso são uma praga para os pinheiros. Aliás os ramos que suportam os casulos não têm folhas (devem começar por comer as que estão à porta de casa)



Depois do Inverno bem passado ali no quentinho do casulo há um momento em que se inicia uma migração. Alguma coisa acontece que leva a que, em grupo, saiam alinhadas do casulo. A temperatura? A intensidade da luz? Estímulos olfactivos das flores que começam a despontar? Não sei se se sabe como é dado o tiro de partida mas a população de lagartas sai em fila, do casulo, desce o pinheiro, cada uma ligada à da frente e vão por ali fora em procissão até ... e agora isto é extraordinário ... a que vai à frente encontrar um local com areia adequado para se enterrarem (sim, enterrarem) no solo. Após tantos anos só agora sei para onde vão as filas dos "brugos". Vão enterrar-se por ali. Devo ter-me sentado muitas vezes em cima das lagartas enterradas, quando andava pela serra.
É durante a viagem em procissão que são alvo de predação por algumas aves. Um cão mais curioso que se aproxime o suficiente para levar com uma boa dose dos pêlos da lagartas que contêm toxinas pode sofrer lesões irreversíveis na língua e nas mucosas.
Não sei bem quanto tempo ficam para ali enterradas mas o suficiente para ocorrer a diferenciação celular e se transformarem em borboletas (não nas belíssimas de várias cores mas noutras mais modestas de aspecto deslavado, pequenas e menos elegantes, com aspecto obeso). As borboletas desenterram-se e voam dali para fora. Voam dali para os pinheiros onde vão fazer um novo casulo, fechando o ciclo. Parece que têm apenas 1 ou 2 dias para o fazer, pois esse é o seu tempo de vida.

Que história extraordinária.
Agora, quando pedalo na bike e me cruzo com a procissão das lagartas no caminho, vejo não uma mera procissão de lagartas no caminho que anda por ali perdida, ao acaso, mas uma epopeia colectiva, um desbravar de novos mundos para uma transformação (embora, não percamos isso de vista, o genoma é o mesmo) fantástica, de uma lagarta numa borboleta. Esta última voa para os pinheiros de onde as primeiras saíram rastejando.

Depois das lagartas fui à vida. Tinha subido a serra por uns caminhos secos e solarengos onde encontrei as lagartas (na fotografia, com a bike encostada a um sobreiro - a variedade da flora na serra é um deslumbramento - vê-se a aldeia de xisto do Gondramaz na encosta em frente)


mas nos vales mais fechados, na orla da floresta de cedros, assisti a outra transformação: os caminhos transformaram-se (não em borboletas - que piadola rasca !) mas em riachos



(acho isto muito bonito, os brilhos e as pedras amarelas rugosas ...)

até que, na curva do caminho, após uma descida, travei a fundo. Houston we have a problem. Como é que vou passar para o outro lado? Parecia simples, uma coisa de limpar o cú a meninos. O problema não era o riacho ter uns 4 ou 5 metros de largura ou a altura da água, era a irregularidade do terreno, as pedras escorregadias e as poças fundas camufladas e imprevisíveis. A água a correr com força tinha aberto buracos e caso lá metesse a roda da frente a probabilidade de ir ao charco seria maior que a de encontrar 1 milhão de pessoas na bicha do supermercado à minha frente quando estou cheio de pressa. E descer a serra encharcado provoca não só hipotermia mas também mau aspecto quando se chega a casa. Não conseguia contornar aquilo com a bike às costas.


Estudei a coisa, aproximei-me subindo para uma pedra, coloquei uns paus e umas pedras como guias a marcar o caminho, recuei uns metros com a bike, bloqueei a suspensão (quando enfiamos a roda da frente num buraco não queremos que este sirva de genuflexório, queremos é levantar a cabeça e sair dali, do buraco, rapidamente, para usar uma imagem que bem se aplica ao anterior e ao actual governo, respectivamente) e pedalei em frente. Correu bem.





É pena aqui na serra não haver pinguins, sobretudo os imperadores. É que dava-me uma deixa para contar a sua história. Esta conheço-a desde a adolescência ... o casal a substituir-se na protecção do ovo, enquanto um parceiro se vai alimentar em mar aberto (que fica a km de distância do local de nidificação na Antártida) o outro fica ali à espera, semanas a fio. Depois trocam. Se alguma coisa corre mal (uma encontro pouco amistoso com uma foca, por exemplo), se há atrasos ... bem mais isto é outra história. Uma história de sobrevivência notável.

E por falar em sobrevivência o pão de leite com marmelada comprado no mercado pela manhã foi comido com a satisfação do costume.






10 comentários:

  1. Bonito entrosamento de espírito e natureza...
    O que não é bonito numa serra?

    Por vezes a vida é tão difícil. Mas quando se percebe que na criação existem criaturas cujo tempo que têm na terra é tão diminuto e fazem tanto para o preservar... Dá que pensar.

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  2. É curioso que parece tratar-se de uma estratégia colectiva (como acontece com muitíssimas outras espécies) com vista à preservação da espécie. Provavelmente, apenas uma pequena percentagem das lagartas que abandonaram o casulo voltam como borboletas. Durante o percurso são alvo de predadores, acidentes diversos ...

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  3. Aqui há umas duas ou três semanas, lá no meu 'heaven', assisti a este fenómeno. Ia uma fiada destas lagartas felpudas a descer um muro que temos quase encostado a um grande pinheiro. Há vários sacos desses no pinheiro e, de facto, dão cabo dos ramos onde se alojam. Eu sabia que as lagartas fazem mal aos cães. Quando tínhamos a nossa boxer de quem tenho tantas saudades, tinha sempre medo que algum desses bichos a picasse mas não fazia ideia de que também eram nocivos para pessoas.

    Então, quando vi aquela fila indiana, para ver se as exterminava para não me darem cabo dos pinheiros, dei com uma pedra em cada uma. Fiquei aliviada pensando que já não iam para o pinheiro. Vejo agora que fui burra. De lá vinham elas.

    Poucos dias depois reparei numa pequena mancha vermelha nas costas de uma mão. Dava-me comichão. esperei que passasse e não passava. Coloquei uma pomada: nada. fui à farmácia e ela disse que era uma pequena afecção, nada de especial e prescreveu-me outra pomada. Nada. Até que li este seu post. Cá para mim é reacção às diabas. Fui ver na net e li que o melhor é não pôr nada e parece que está mais seca. Se não passar, terei que ir ao médico mas agora acho que foi a minha estúpida imprudência.

    De resto, como sempre gostei imenso de ler o que escreveu.

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    1. Provavelmente, a mancha na mão é uma reacção às diabas (gosto desta palavra). Isso passa. Deve ter uma inflamação mas a pele tem uma boa capacidade de regeneração.
      O pinheiro no seu "heaven" é que pode estar em risco. Tanto quanto sei, meia dúzia de casulos podem matar um pinheiro. A praga das lagartas do pinheiro alastrou da península Ibérica (como atravessaram os Pirinéus não se sabe) e vão quase no Norte de França.
      Há umas cintas que se colocam à volta dos pinheiros (uma varanda circular) que barram a descida para o solo e que têm apenas uma saída para um saco de terra. As diabas começam a descer, entram na cinta e e circulam atém encontrar o buraco para o saco de terra. Depois é só apanhar o saco e já está.
      PS. Investigadores Portugueses descobriram umas lagartas que se adaptaram ao Verão. Isto é, podemos ter as lagartas o ano inteiro.

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    2. Vou ver se descubro onde comprar essas cintas. Adoro os meus pinheiros. Uns são pinheiros mansos, outros são pinheiros de Flandres, e outros radiata, todos enormes. Nem quero pensar que as diabas mos matam. Que horror. Ficam vergados com aqueles enormes casulos. Há coisas na natureza que parecem escusadas e estas lagartas horríveis são um desse caso (acho eu).

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  4. Olá João,
    Está a ver que vale a pena escrever estas coisas?
    Quase 3 anos depois aqui estou eu a ler a história das diabas que dão cabo dos pinheiros e não só...
    Vi imensos casulos desses nos pinheiros e sabia que era uma doença, vi também muitas dessas lagartas, só não sabia de todas essas "procissões,enterramentos, metamorfoses e regresso aos pinheiros".
    A natureza é extraordinária, não é?
    E por falar nos The Who, aqui há tempos encontrei um DVD com o filme Tommy. Lembra-se?
    Maria

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  5. Maria, se puder pesquise a historia dos pinguins imperadores. Aliás há um filme mais ou menos recente sobre esta notável história de sobrevivência.
    Se quiser um flavour, à la David Attenborough, veja aqui:
    https://www.youtube.com/watch?time_continue=92&v=RYvachfdpPI

    Então não me lembro do Tommy!

    João

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    1. Como vê (lê), eu já tinha andado por aqui a aprender a lição sobre as diabas ;)
      Aproveito para lhe dizer, Sir JDLA, que já tenho o dvd dos pinguins imperadores para ver um destes dias.
      Maria

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    2. Olá Maria,
      já viu? Extraordinário, não é?
      João

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    3. Sim, vi anteontem.
      É o filme do Luc Jacquet e é realmente extraordinário.
      Eu já tinha visto documentários sobre estes seres encantadores, sempre adorei pinguins.
      Bem, eu também sempre adorei girafas, tigres, Leões, elefantes, camelos, cegonhas, corujas, gatos, etc., etc., enfim, toda a bicharada (baratas e similares: NÃO!).
      Quem me dera ter a milionésima parte da coragem daqueles pinguins... que seres magníficos.
      Maria

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