Serra do Açôr)
Agosto 2016
Pela manhã, quando o céu começou a clarear
e a luz, entrando ainda tímida pelo ‘janêlo’ do quarto (manias de dormir com o
janêlo aberto), dava cor às pedras da parede e às tábuas do tecto, entreabri os
olhos e, enquanto a consciência voltava devagar à mente e tornava a ser eu, meteram-se-me
no corpo as ganas para subir o Adamastor do Açôr. Não antecipo sensações (a
respiração ofegante por ali acima, o suor a correr por todas as gelhas e dobras
da pele, o Sol lá em cima e o rio lá em baixo, o sopro inesperado do vento e aahh
sabe tão bem e logo a seguir mais um derrapanço no cascalho solto, caraças ...),
nem faço planos detalhados: abalar de casa (deixa cá ver se não me esqueço dos
pães com marmelada), pedalar devagar até à barragem de Sta. Luzia, olhar para
as cumeadas lá em cima e ver como estão as coisas, logo a seguir parar na fonte
para encher os cantis de água fresca e, a partir daí, começar s subir; isto é
tudo o que tenho por certo.
Bom dia! diria o pastor representado aqui
na escultura à saída do Cabril
Logo depois, uma cabra tresmalhada e os
penedos do Vale Grande por detrás anunciam a barragem
e eu, seguindo o plano, pedalo devagar,
tentando que o coração acelere, aumentando o fluxo sanguíneo [excepto no
cérebro porque esse é um caso à parte (este é imune aos caprichos do coração e
tem que ser assim, mas isso é outra história, uma bela história, aliás,
mas seria demasiado longa para contar
aqui, o problema da alocação de energia no tempo e sítio – os neurónios activos
– certos; é que os vasos sanguíneos no cérebro têm uma intimidade, ou melhor,
uma cumplicidade com as células vizinhas que não existe em nenhum outro órgão)],
a lubrificar os mecanismos de ligação e libertação do oxigénio à hemoglobina, optimizando a sigmóide que
descreve a ligação, acidificando ligeiramente os músculos das pernas e pondo em
acção o 2,3-difosfoglicerato. Por outras palavras, respirar fundo, ver a
paisagem e inebriar-me com os aromas da manhã, pedalando nas calmas.
Do lado de lá dos penedos, a barragem. Mil
vezes que passe, mil vezes me espanto.
Na linha do horizonte, ao fundo, a serra
da Cebola com 3 picos. O pico do meio é o meu destino, o Picoto da Cebola (1400
m de altitude e ponto mais alto da serra da serra do Açôr) – o Adamastor do
Açôr.
Tivesse eu chegado aqui ao entardecer e
não pela manhã e a visão do Adamastor teria sido outra. Esta:
Cá de cima, dos penedos, é isto!
Com a água fresca da fonte (nos cantis) a
correr garganta abaixo e o sangue bem quente a correr rapidamente por onde tem
que correr fui-me aproximando do Adamastor. Por vezes, nos vales desaparecia da
vista para reaparecer na curva da estrada quando chegava a algum topo.
Sobre a Malhada do Rei (onde caí há uns
anos atrás e parti a clavícula) e lá está ele
É curioso que a distância às vezes
intimida mas, para usar um lugar-comum, todo o caminho começa com a primeira
pedalada, como que num ritual, encaixa-se o sapato no pedal, ouve-se o som do ‘cleat’
metálico a encaixar, click, e é um som familiar, motivador, é o som de partida,
do início da viagem, click, encaixa-se o segundo pé, depois segura-se o
guiador, olha-se em frente e vamos lá, segue-se outra, que se segue de mais
outra pedalada e assim sucessivamente. É assim que se percorre o espaço entre
dois pontos; onde estamos e onde queremos ir.
É, no fundo, apenas aritmética; 1 mais 1 igual a 2, 2 mais 1 igual a 3 e
já estamos 3 vezes mais afastados do ponto inicial.
Muitas pedaladas depois, parei. Estava já
na subida do picoto da Cebola. Desta vez comecei pelo lado da Covanca. É a
subida mais curta: 3 km com uma inclinação média de 13,3 %. Um estradão arranjado, onde se pode ir de jipe 4x4. Mas a maior
dificuldade são as mini-lombas contínuas e a gravilha solta que dificulta a
tracção. Outra particularidade da subida é que a inclinação vai aumentando à
medida que se sobe. De resto, estamos com o planalto da Estrela aos 2000 m no
horizonte, o rio Ceira jovem cá muito em baixo, no vale, estamos sobre os
falcões e outras rapinas que por ali pairam, vendo-as por cima, vendo também as
cumeadas de eólicas por cima.
Olhei para trás. Tudo abaixo de nós
excepto o céu. E pouco mais há a dizer.
Depois ... cheguei.
Chegar ali,
ao cimo do Adamastor do Açôr, é tranquilizador, chego sem euforias, como se
fosse a coisa mais natural do mundo. Num processo de feedback comigo próprio
quase que me surpreendo com esta sensação. Não deveria estar eufórico e gritar:
chegueeeeiiiiiiii? Não, chego como se sempre o tivesse feito.
Gosto de olhar o planalto da Estrela ali à
minha frente. E gosto da minha ‘jersey’ com o prisma que dispersa a
luz branca! (the lunatic is on the grass - Pink Floyd, Dark side of the moon).
Não há mais caminho por onde subir; é quase uma decepção.
Daqui, diz-se, avista-se cerca de um terço
do território nacional. Desde a serra da Estrela e Espanha a Este até à Serra
da Lousã e o mar a Oeste. Esta é a imponente cordilheira montanhosa que
atravessa Portugal ao centro (Estrela-Açôr-Lousã). Desde o Caramulo e
Montejunto a Norte até sei lá onde a Sul.
180 graus para Sul
180 graus para Norte
Círculo quase-mais-que-perfeito: trezentos
e sessenta graus no picoto da Cebola.
Começa e termina a Este, com a visão imponente do maciço granítico da Estrela (o dedo no final indica-o). Na direcção Sudoeste fiz uma ampliação para se ver a barragem de Sta. Luzia, de onde parti e para onde regressarei.
A luz intensa disfarça contornos, anula os
perfis das cumeadas, torna indistinto o horizonte mas ... é o que há.
Este: a Estrela, granítica, majestática,
fria, dominante, quase.
Sul: nariz e serranias que nunca mais acabam.
Sul, outra vez: a barragem de Sta. Luzia,
de onde vim, ao fundo e ao centro.
Norte: a cumeada de S. Pedro do Açôr (irei lá um dia destes), o
Caramulo, indistinto no horizonte, por detrás e, mais ainda, outras serranias a Norte (Montejunto?) que mal se distinguem na luz imensa que banha o vale a olho nu e que na fotografia ficam ausentes.
Oeste: já a descer e a Serra da Lousã na
linha do horizonte.
Aqui as linhas são oblíquas e isto pode
acusar estranheza dado que o padrão do dia-a-dia nas vilas e cidades é
constituído por linhas horizontais e verticais. Este é um aspecto central da
paisagem.
Ainda hei-de desenvolver esta teoria: “de
como as perspectivas oblíquas e em fuga nos perturbam os padrões espaciais da
experiência comum”.
Ou: “prospectos para os estudo da perturbação
espacial conducente à apreciação estética da paisagem”.
Ou: “afinal o seu cérebro não é infalível
e surpreende-se com linhas oblíquas com laivos fractais”
Descido o Adamastor, ter estado lá em cima
é já passado e life goes on. Agora,
há que apanhar a linha das eólicas, além à esquerda, que me levará à barragem.
A barragem anuncia o fim das pedaladas. Dali ao Cabril é um pulo.
Embora, bem vistas as coisas, a chegada e
a partida permutem. Quer dizer, fui da barragem ao Adamastor mas isso foi pela
manhã, agora, à tarde, venho do Adamastor para a barragem. Cheguei à partida e, portanto,
como em quase tudo, do infinitamente grande ao infinitamente pequeno, as extremidades
tocam-se.
Overwhelming!
ResponderEliminar"Não há mais caminho por onde subir; é quase uma decepção."
You should have called Mr. Robert Plant and asked him a stairway to heaven... já que Houston e os lunatics, neste caso, não conseguiram resolver o problem ;)
Maria
Vi por ali os bigodes do Dalí, ou foi impressão minha?
Às vezes saem à Dali, outras a abominável homem das neves !
EliminarAcho que nunca aqui linkei o starway to heaven mas já pensei fazê-lo várias vezes. Mas não tenho a certeza, às tantas estupor aí.
E a propósito de stairway to heaven fico por aqui porque tenho ali um arroz de peixe ao lume; sobras de peixes de refeições anteriores - assim uma espécie de arrumação do frigorífico.
João
Bon appétit!
Eliminar:)Maria
Olá João,
ResponderEliminarE afinal a cabrinha tem um pastor, e lá está a tal estrada de boa memória...
E lá está outra vez o João a dizer que tem comida ao lume... e eu a desejar-lhe bon appétit.
E esta sensação de déjà vu/déjà lu que não me larga ;)
Essa Jersey é um espectáculo e fica mesmo bem aí nesse cenário grandioso.
By the way a Worten hoje ofereceu-me o duplo CD do David Gilmour Live at Pompeii, e tem sido um desatino aqui em casa, if you know what I mean.
E ofereceu porquê?
Porque tem uma campanha de compre 3 pague 2, e este é oferta :))
E por falar em campanhas, sinto-me tentada a informá-lo que o Continente está com 25% desconto este fds nos deliciosos e nada enjoativos Ferrero Rocher: absolutamente a não perder 😊
João, aquele Café do Casal da Lapa ainda existe? E está aberto todo o ano ou é só no Verão?
Please let me know, okay? Ando com tanta vontade de lá voltar, mas não me apetecia encontrar tudo fechado.
Bom fds, de preferência sem molhas.
Maria