terça-feira, 1 de janeiro de 2019

Da serra da Lousã à do Açor and back

Dezembro 2018

O dia todo em cima da bike. Uma volta pelas serranias das Beiras. Vamos lá ver se me amanho com isto. A quilometragem a ultrapassar os 3 algarismos. Cerca de 2000 m de acumulado positivo. Já o fiz várias vezes mas, bem vistas as coisas, do ponto de vista biológico a mera passagem do tempo é um factor patológico.  Depois das várias dezenas de voltas ao Sol que já dei, as minhas mitocôndrias já andam um bocado desacopladas e convertem energia com menos eficiência, as articulações já não articulam com a frescura de outro tempo e, sobretudo, a imprevisibilidade de uma dor aqui, outra ali, no tendão de Aquiles ou na cartilagem do joelho, podem trazer borrasca às pedaladas.
Temperatura prevista entre os 8 e os 10 ºC. Vento forte. Nuvens altas e luz coada. Começa-se devagar, sentindo o corpo. Contraído. Dentes cerrados. O frio húmido da manhã mete-se até aos ossos. Até nos dentes se sente o frio. Apesar de tudo, a base layer e o casaco ROS (rain or shine) da Castelli mantinham-me num estado minimamente confortável.
Anseia-se pelas primeiras subidas para aquecer. O nosso metabolismo é pouco eficaz; mais de metade da energia dos alimentos que ingerimos perde-se na forma de calor e, por isso, aquecemos quando aumentamos o metabolismo (correndo, pedalando, etc). Sorry mas somos viáveis porque somos imperfeitos. As curvas sombrias dos vales ainda com neblina. Depois, pouco a pouco, pedalada a pedalada, esquece-se o corpo e, à medida que se atingem os cimos dos montes, quando as lonjuras se percebem, o olhar domina e esquece-se o desconforto.

Já percorri este caminhos várias vezes mas é como se fosse a primeira vez. É sempre esta a sensação. O friozinho das primeiras horas impediu-me de parar, tirar as luvas e disparar o telemóvel para umas fotos. À medida que ganhava altitude, livrava-me da humidade, o ar ia ficando mais ameno e a visão dos farrapos de nevoeiro que se espalhavam pelo vale vincavam a sensação da travessia da serrania.
Depois dos penedos de Góis, já no Açor, o horizonte abre-se Sul. Estava na Portela do Vento, um nome extraordinário e bem adequado para um cruzamento de estradas no alto da serra. A luz coada pelo céu baixo, incidindo hesitante sobre as aldeias dos vales, dava a estas um aspecto ainda mais isolado do que, de facto, são. Aldeias encravadas ali nas meias encostas.


Cá em cima, na estrada, a paragem da camioneta de carreira foi, há anos, um upgrade excepcional para a vida das pessoas das aldeias lá em baixo. Não há um pingo de sofisticação, tudo tão enjorcado ... and yet eram locais de encontro e de partida, de viagens.



Dia de muitas pedaladas mas de poucas fotografias. Da Portela do Vento em diante as pedaladas fazem-se com o vale do rio Zêzere a Sul, ao fundo, coberto de nevoeiro sob um céu de nuvens altas que prolonga a paisagem. A linha do horizonte fica indiscernível.




Não era o único por ali a pedalar. Apanhei a estrada para Fajão, subi um pouco e parei a olhar a paisagem. Vi, então, mais atrás, um tipo esguio e alto em bicicleta de estrada, pedalando no mesmo sentido que eu. Inglês, 56 anos, vegetariano há 40 anos, passava os Invernos com a mulher para os lados de Góis e o Verão em Inglaterra. Tinha-se reformado. Vamos juntos, disse ele. Um sotaque fortíssimo, português incipiente (broken portuguese) mas, como me pediu para treinar o português, foi na língua de Camões que continuámos a epopeia, quero dizer a conversa. Além disso, era um gosto ouvir o sotaque britânico acentuadíssimo. Eu vou devagar. Não faz mal, eu tenho luzes, ripostou o Inglês com um sorriso. Gosto destas ironias e estabelecemos logo ali uma empatia. Pronto, vamos lá. Gosto de andal pol aqui porque há poucas carros e é really bonita a paisagem. Ora, ora, a quem o dizes meu. Mas vegetariano há 40 anos !? Tomas vitamina B? É que é fundamental à actividade de um complexo enzimático central no metabolismo que leva à produção de energia. Si, si é um assuontô quê euuu conhêiço bém.
Eu quis saber porque achei extraordinário um tipo com uma capacidade física excelente (parecia que deslizava na bike) ser vegetariano há tanto tempo. Interessava-me o aspecto biológico. Lá explicou a dieta em traços gerais. Dia sim, dia não ele fazia 6 a 7 h em cima da bike por toda a região, de ambos os lados das serra da Lousã e do Açor (Arganil, Góis, Piodão, Pampilhosa da Serra, Castanheira de Pêra, Lousã ...).
Pedalava com uma leveza extraordinária, sempre sorridente ... e sempre com um pingo na ponta do nariz comprido.
Separámo-nos no cruzamento (onde todas as separações deveriam acontecer) ao cimo da barragem de Sta. Luzia. Eu ia lá abaixo e um pouco ainda mais à frente, antes de voltar para trás. Ele ia fazer um loop: dali para Malhada do Rei, Piodão, Arganil ... Várias horas para ambos.


O nevoeiro fazia um tecto sobre a barragem. Na descida, à medida que mergulhava, de novo, no ar translúcido, um visão sublime: as ervas finas e brancas cobertas com mil gotas de orvalho reflectiam a luz difusa, dando a impressão de um manto de neve. Assombroso. Click, click, qual escolho para postar aqui? As duas.






Lá fui até à barragem. O horizonte fechado a Este não deixava ver o maciço da Estrela nem, mais próximo, o Adamastor do Açor (Picoto da Cebola). Um pão com marmelada empurrado com água da fonte. Teria comido o outro mas precisava de o manter como reserva para mais tarde.


Já na volta, depois de ter, novamente, atingido as cumeadas, o céu tingia-se já de amarelos e vermelhos a anunciar a descida do Sol. Precisava ainda de umas 3 horas de luz to get back home. E de 2 minutos para tirar uma fotografia panorâmica




Cá em cima, sob o ar seco, as ervas brancas que cobriam encostas não faziam de espelho como acontecera lá baixo sob nevoeiro.


Pedalada após pedalada, olhar após olhar, as cumeadas sucediam-se. Olhei para trás; lá estava o Adamastor á direita e, ao centro, o granítico maciço da Estrela.


Para Sul, o entardecer trazia aos vales a neblina fina e fria. Quase que o sentia daqui. Não queria que a noite me caísse em cima.


Ainda muita estrada para pedalar.
Still a long way from home.


6 comentários:

  1. Olá João,

    Muitas voltas no primeiro dia da Volta :)
    E isso de ser biker começou em criança ou já é coisa de adulto?
    O que fez hoje implica um esforço tremendo, depois não fica de rastos?
    Eu hoje estive a ver uns livros sobre as Aldeias Históricas de Portugal (Inatel/DN, 2000) e no fim de cada volume vem um "BTT Road Book" com uma série de percursos. Foi nestes livros que aprendi muitos nomes de árvores e plantas destas regiões. Estive a ver o Piódão, Linhares e Sortelha, mas são 10 livros.

    As suas fotografias estão belíssimas:
    a segunda do orvalho, a da barragem (tenho de lá voltar, nem que seja de táxi), as neblínicas, as últimas do poente, as, as, todas!
    Aqui também há paragens dessas, óptimas para ficar encharcado se a chuva estiver batida.

    Acho que já estive na Portela do Vento...
    Encontrei aqui nos meus roteiros uma nota sobre "Cruzamento Sra. do Carmo" entre Cabril e Fajão.
    Devo ter parado lá para consultar o mapa, penso eu.
    Existe mesmo (conhece?) ou inventei?

    O meu Plátano ainda tem bastantes folhas, nunca pensei que se aguentasse até 2019.
    E é isto.
    :)Maria

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    1. Esta volta foi no domingo anterior ao Natal. A bike começou exactamente em 1990. Em criança não tive condições para ter uma bicicleta. E começou devido a um problema de saúde. Fiz muitos anos de bicicleta de estrada (as designadas bicicletas de corrida, como as que se vêm na volta à França ou a Portugal). Depois, um dia, experimentei os caminhos da serra com uma bicicleta de montanha e, actualmente, raramente ando na de estrada, na alcatrónica. Fiz maratonas com centenas de participantes, sempre a abrir. Tive acidentes, quedas e aleijei-me. Etc, etc. Hoje ando quase sempre sózinho porque, embora não goste de pedalar em versão ponhonhó, uma pedalada agora outra daqui a pouco, também não vou sempre em ritmo competitivo, sempre a abrir (que é o que quase sempre acontece quando se pedala em grupo). Gosto de ir num ritmo espevitado, em boa cadência, sentindo bem as respostas do meu organismo, parar quando me apetece, ficar a olhar, tirar fotografias, virar para aqui ou para ali apenas porque me apetece ou porque vi qualquer coisa interessante ... (em grupo isto não é possível).
      Por isso, quando faço estas tiradas mais longas não fico exausto, longe disso. Chego um pouco cansado, um cansaço que sabe bem, mas pronto para mais se fosse preciso.

      Acho que no Verão passado ouvi dizer que havia uns autocarros Covilhã-Barragem Sta. Luzia-Covilhã. Trata-se de um programa para a promoção do turismo na barragem, ou coisa assim ...

      Quem vem na EN2 de Góis para a Pampilhosa da Serra, a Portela do Vento é no cruzamento para Alvares. Aliás, nesse ponto a mítica EN2 (a nossa route 66) segue para Alvares, a que vai para a Pampilhosa é outra.

      Entre Cabril e Fajão conheço como as palmas da mão (lindo!). Há um cruzamento onde está instalada um pequena central eléctrica mas não sei se tem esse nome. Nunca ouvi esse nome dito pelas pessoas de lá. Conheço um cruzamento da Sra. do Carmo mas fica longe dali: quem vai da Covilhã para a Guarda (pela estrada antiga), no cruzamento entre o Teixoso e Caria, fica a capela da Sra. do Carmo ), local onde se faz uma grande festa no dia 15 de Agosto).

      E às tantas o seu Plátano ainda tem folhas verdes. Na serra da Lousã, há uns anos, as acácias floriam em Fevereiro - uma explosão de amarelo. Depois, começaram a florir em Janeiro - e eu ficava muito surpreendido. Há dias, antes do Natal, vi uma já em flor. Estes são, acho eu, sinais muito óbvios das alterações abruptas de um padrão climático.

      João

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  2. Sim, o plátano ainda tem algumas folhas verdes (poucas), mas a maioria é de um tom castanho escuro.
    Talvez chegue aos Reis...
    Hoje fui à Biblioteca e trouxe 2 livros do Carl Sagan: Cosmos e Os Dragões do Eden.
    Não tinham o livro que eu queria (aposto que sabe qual é).

    No regresso voltei a olhar para as serras (como sempre faço) e o apelo da estrada bateu forte.
    Sempre gostei de conduzir e só o carro que tenho me impede de ir por aí estrada fora (podia levar a minha mãe comigo e assim não ficaria preocupada...).
    Embora o carro tenha passado na última inspecção em Setembro (nem sei como), já me prega uns sustos now and then. Mas foi um grande companheiro - juntos fizemos coisas incríveis ;)
    Voltando às serras, entre o Muradal e a Gardunha há uma outra que não sei qual será.
    Já me disseram que o Muradal pegava com a Gardunha, mas eu creio que não, há ali outra pelo meio.
    Será possível que seja o Açôr?
    Faz-me confusão as pessoas daqui não saberem o nome das serras (e das árvores) e ficam a olhar para mim como quem pensa " para que raio quer ela saber estas coisas"?

    O caminho para o Fajão é lindo, sim senhor. E aqueles dois penedos são um espectáculo. Quando lá estive, há mil anos, só havia um restaurante: O Juiz de Fajão. Comemos um magnífico Bacalhau à Juiz, recomendado pelo Sr. Lucas, que também nos foi mostrar a igreja e a capela e me sugeriu que regressasse por Dornelas do Zêzere, pois era um percurso muito bonito. E era!

    Obrigada, João, por contar um bocadinho da sua história:)
    Maria



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  3. Que estranho, João, a lua que eu vi ontem às 6 a.m. tinha um halo muito semelhante ao do sol das suas fotografias # 4 e 6.
    Só que era a poente e ainda era de noite, o céu estava muito escuro, só o luar permitia ver alguma coisa (nas minhas fotos o fundo ficou negro).
    Mas o contorno da lua era desse tom salmão claro.
    Estranho...

    E sabe qual era a ost? Os gatos a "cantar o fado", como eu costumo chamar às serenatas que eles fazem para conquistar as meninas gatas.
    Devia dar um videozinho interessante, to say the least:)
    Maria

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    1. A água na atmosfera, algumas poeiras, talvez alguns gases ... dispersam e absorvem a luz, deixando ver as cores separadas e provocando os halos que vemos. Deve ser uma explicação desta natureza.
      A Mrs Dreamer fica perturbada (orelhas espetadas, cabeça pendente ligeiramente inclinada, ar interrogativo) com as serenatas dos gatos. Tenho que lhe explicar que são os gatos e (mentindo-lhe) que os gatos são amigos.
      João

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    2. E alguns são, mas nunca na época das serenatas...
      Há mil anos tive uma gatinha branca, com um olho azul e outro amarelo (like Major Tom).
      Eu chamava-lhe Francisca Bowie e viveu até aos 14 anos.
      Veio para CB com os meus pais, e quando a minha mãe me telefonou para o emprego a contar, desatei a chorar e as minhas colegas aflitas a pensaram que tinha morrido algum dos meus pais, enfim, uma vergonha!
      Nessa altura o meu chefe era um homem extraordinário (um engenheiro químico muito conhecido) que me disse para eu ir para casa nesse dia, se quisesse. Claro que não fui, não faria sentido.
      Um colírio e muito carinho resolveram o assunto.
      Patetices para alguns, são coisas importantes para outros.
      Maria

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