sábado, 9 de novembro de 2019

Outono azul nas terras altas da Estrela

Outubro 2019
(Serra da Estrela)


Nem amarelos nem laranjas. Antes azuis longínquos, cores graníticas e verdes de urze brava, tudo sob um ar limpo, cortante e fino: as Outúbricas cores nas terras altas da Estrela.








As pedaladas levaram-me à Torre, aos 1993 m de altitude. Fui ao Centro Comercial (pois, na Torre há um Centro Comercial!) e, num dos vendedores de queijo e presunto, pedi para me arranjarem um bocadillo de jámon faxavôr. Mais uma Coca cola e o repasto ficou em 4 euros. Come d'habitude fui para o lado Este olhar as serranias a perder de vista que se estendem do Açor até à Lousã. O esqueleto dorsal montanhoso e oblíquo do país.
O ar cortante mete-se pelo corpo adentro, provocando-me um arrepio que começa nos pés e se propaga até à cabeça, como num cão que se sacode.


O Picoto da Cebola, o cone quase-perfeito à esquerda e, na linha do horizonte à direita, a serra da Lousã. Olho e parece-me improvável que já tenha pedalado por aquelas cumeadas, embora o tenha, de facto, feito. Do Picoto de Cebola ao Trevim. Do Trevim ao Gondufo. Ao Colcurinho, Ao S. Pedro do Açor. No Verão e no Inverno. Pedaladas quase todas solitárias. É que parece irreal pôr a memória dos detalhes das pedaladas em cima do horizonte tão longínquo. E já por ali pedalei muitas vezes por caminhos que daqui são imperceptíveis, ... o suor que escorre pela face, os brilhos por entre os óculos, os tojos que rasgam a pele, os músculos tensos, a água fria da fonte e do ribeiro, o aroma intenso da urze, o vento forte e o frio, a chuva que encharca os ossos, a incerteza sobre a possibilidade de regressar numa só peça, a sede, as rapinas a planar sobre a cabeça, as lonjuras que nunca ficam próximas por mais que pedale, o vento outra vez, o nevoeiro intenso que quase me desorienta, as pedras que rebolam no caminho, o espelho de água da barragem, a lagartixa que atravessa o caminho num ápice, o susto de um javali cujo vulto se esgueira por entre os arbustos, o avistamento de gamos por entre as árvores e de veados machos imponentes ao longe, o Sol intenso e o granizo que massacra a face, o pó, o suor outra vez, o som da água que corre nos ribeiros, a sede ...





P´raí umas 3, no máximo 4 horas de Sol. Planos para descer da Torre até ao planalto do Curral da Nave ou pelo lado Sul, pelo lado de Unhais da Serra, bailavam na cabeça. Desci até à Nave de S. António e aí, esperei por um impulso, um guinar súbito do guiador que me levasse para Sul ou para Este. Muitas vezes é assim: no último momento, quaisquer que tenham sido os planos delineados, os caminhos que tenha antecipado, o percurso definido, viro o guiador seguindo um impulso. Como, aliás, acontece connosco face a bifurcações de caminhos, a escolhas, um pestanejar, um aroma, uma impressão, um sorriso leva-nos por ali e não pelo outro lado.
Subi aos Piornos e voltei para o lado do vale glaciar do Zêzere, tentando seguir no planalto sobranceiro ao vale do lado direito (Curral da Nave). Do outro lado do vale ... os Cântaros (Magro, Gordo e Raso) ... uma visão tremenda, granítica.
As estrada que sobe o vale glaciar (o maior vale glaciário da Europa) como que um fiozinho branco, tal a distância. Os carros mal se vislumbram. O rio Zêzere, acabado de nascer no sopé do Cântaro Magro, corre lá em baixo por entre os pedregulhos.


Olho em frente para o outro lado do vale e a encosta granítica parece estar logo ali, dois palmos à frente do guiador da bicicleta. Your'e wrong my friend. Estará a cerca de  2 Km de distância, aquelas pedras têm centenas de metros de altura.



Andei por ali um bocado perdido, pelo Curral da Nave. Lentamente fui aproveitando caminhos para pedalar em direcção Sul. Teria que descer para Verdelhos, pois este seria o percurso mais rápido para evitar que a noite me apanhasse na serra. Os ramos do pinheiro esculpido pelo vento indicavam a direcção !

Sabia aproximadamente a localização do Poço do Inferno e sabia também que daí conseguiria apanhar sem dificuldade um percurso para Valhelhas. Descer para o Poço do Inferno sem grandes demoras, era a ideia que me ocupava pelo menos 50% da mente. Grande parte dos outros 50% estavam centrados nos ruídos de protesto do meu estômago. O pão e o presunto devorados na Torre eram já uma vaga recordação - alguns dos carbonos da glucose contida no amido do pão tinham há muito sido já exalados para a atmosfera na forma de dióxido de carbono, gás de estufa como é sabido; pois!, é que na produção de energia a partir de alguns alimentos, nomeadamente glucose, produzimos dióxido de carbono que, sendo "lixo" do metabolismo, exalamos para a atmosfera. Por outras palavras, para vivermos temos que "carbonizar" a atmosfera. Ah, é verdade e libertamos calor. Aqui não há volta a dar, não podemos "descarbonizar". Quem mais come carboniza mais.
Tinha no bolso uma merdelhice de uma barra energética. Nem sequer verifiquei a data de validade não fosse ter já passado. Marchou e carbonizou. Olhei à volta, procurei referências na memória, reconheci uma garganta entre penedos e, ao longe, um bosque de pedaladas anteriores (do outro lado do vale, ao cimo da encosta, a pousada de S. Lourenço; em baixo, no vale, fora do alcance da vista, Manteigas). Estava orientado; descendo por ali iria dar ao Poço do Inferno.


Pedalei até ao cabeço em frente, cheguei ao bosque e ... o Outono azul transformou-se. Assim:


e ficaria por ali às voltas não fosse a pressa de encontrar o caminho para Verdelhos. Estive ainda uns minutos em silêncio, perscrutando a vegetação densa na expectativa de ouvir o ruído de um galho a partir, de uns cascos a pisar as folhas secas, de uma respiração ofegante. E ficaria por ali a disparar o telemóvel não estivesse já em modo de poupança de energia.





O Poço do Inferno (o plano deu certo) era um fiozinho de água nada ameaçador. Nem sequer fui lá acima atravessar a ponte entre os penedos.


Sabia pelos tons da luz, pelas sombras da floresta que o Sol estava já baixo. Não era preciso sequer olhar o céu.


Foram depois pedaladas apressadas. Muitas pedaladas. Subi, desci para o vale de Verdelhos, subi novamente e olhei para trás, para o planalto na linha do horizonte de onde tinha vindo e que em breve iria servir para o Sol se pôr. Olhei as curvas da estrada que tinha feito desde Verdelhos. Faltavam-me ainda cerca de 20 Km.


20 km asfálticos feitos em modo smooth como quem desacelera os neurónios responsáveis por reagir ao inesperado e liga os back to business as usual.

3 comentários:

  1. João olá,

    Caramba, isso é que foi pedalar :) não sei como não se cansa (aliás, o João e a Loira Vera são um mistério para mim: devem ter pilhas Duracell, não há outra explicação!!!).

    Gostei imenso de ver a Serra Azul e adorei aquele pinheirito tão solitário, tão desprotegido, e a ser tão fustigado pelo vento.
    🌰🌰🌰
    Maria

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  2. Olá Maria,
    Cansa, mas não se pensa nisso, olha-se a paisagem :)
    As árvores esculpidas pelo vento, não é? Ali perto algumas crescem (quase) na horizontal.

    PS. Levou-me uns segundos a reconhecer as castanhas :)

    João

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  3. As castanhas são para amanhã :) já sei que não liga muito a datas, mas amanhã é dia de S. Martinho.
    (Por acaso também se comemora o Armistício da Primeira Guerra Mundial, assinado em França, às 11 horas do dia 11 do mês 11).

    Boas comemorações.
    🍷🍷
    Maria

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