Carvalhal da Rocha (Brejão) - Cabo Sardão
Com os anos transformou-se numa clássica: ir ao cabo Sardão e voltar pela falésia, rente ao mar e rente ao abismo. Ao longo dos anos fiz este percurso mil vezes e, como em muitos outros sítios, é como se cada vez fosse a primeira, tal a beleza.
A chegada foi já ao pôr-do-sol. Encostei a bike ao forno. O Sol baixo reflectia no mar aquela luz doce do ocaso que inunda e se insinua por todo o lado de mansinho, como quem não quer a coisa.
À partida, contrastando com a chegada, a neblina tornava difusa a paisagem, ampliava os aromas do mato rasteiro (mil aromas que há por ali, tenho-os na memória há anos)
e camuflava o abismo.
Às vezes a neblina levantava e recordava-me a "topografia potencialmente geradora de riscos em função das Leis de Newton que, como toda a gente sabe, resulta do facto de a massa da Terra ser maior do que a do meu corpo somada à da bike e, portanto, eu a bike somos atraídos para o centro do planeta e não vice-versa" (para dizer isto de uma forma poética).
E vai-se por ali fora, sob a neblina e sobre o mar que, muitas vezes não se vê mas se ouve, a pedalar, e é tudo muito real. Nada tem de sonho. Sente-se tudo na pele.
Paro com frequência. Há gaivotas que fazem vôos rasantes à falésia, como esta. E ... olha a bike da altura, pesadona e robusta ! É como estar hoje a olhar para um Fiat 600.
E é tudo imenso
O caminho mesmo ali à beira e o som do mar que por ali sobe faz com que um friozinho se instale em permanência pelas costas acima (pela espinha acima !). E isto é bom. Evita vertigens.
Demoro muito tempo a a fazer uma dúzia de Km. É inevitável parar.
Às tantas percebe-se ao longe o farol do cabo Sardão, elevando-se à medida que pedalo, como se fosse o mastro de um barco que se aproxima na linha do horizonte.
Que sítio este! Olhamos e, sem dar por isso, sai-nos das entranhas: Fooooooooodddddddddaaaaassssssssssssseee!
É um local poderoso, de grande intensidade, de pele arrepiada, este.
A volta, pois, há sempre uma volta, foi pelo lado do Cavaleiro, a povoação junto ao cabo.
Mas rapidamente mudei de ideias e voltei pelo percurso da ida. É outro percurso, não é o mesmo. Uma coisa é vir para Norte, outra é ir para Sul. Parece claro.
Quando o Sol abre a paisagem transforma-se
Na volta, ainda espreitei os ninhos de cegonha, 4 em linha pelo penhasco abaixo, mas, nesta altura do ano, os juvenis já voaram do ninho. Já os observei noutros anos, por alturas do início da Primavera, ali no ninho, protegidos pelos progenitores, a levarem com ventanias e espuma das ondas, estas ainda ferozes nessa altura do ano.
Pedalo com frequência nos mesmos sítios. Nunca me canso. São sempre diferentes, todos os dias. Tenho tantas fotografias de pedaladas na costa do Alentejo mas numa área relativamente pequena, entre Aljezur (já Algarve) e cabo Sardão. Tenho que as lançar aqui. Tal como fiz com estas. Estava para aqui, a 450 km de distância destes caminhos, a olhar pela janela e, de repente, atravessou-se-me a memória das falésias na mente. Fui rapidamente à procura de fotografias e as primeiras que me apareceram foram estas, de 2009.
Para além da costa do Alentejo, os sítios recorrentes onde pedalo são as Serras da Estrela, do Açôr e da Lousã. Falésias, montanhas e serranias. Ora, afinal há apenas (como em quase tudo) uma linha ténue que separa o granito da Estrela do mar no Alentejo.
Gosto de chegar ao por-do-sol, de ver a luz refletida no mar e as gaivotas, em bandos, por ali às voltas como quem vai para qualquer lado.
Que pasagens de perder o folego :)
ResponderEliminarHá muitos anos que vou para aqueles lados e tenho muitas fotografias tiradas durante caminhadas e pedaladas. Hei-de colocar aqui mais, seguramente. Já aqui postei uma ou duas vezes sobre a costa do Alentejo.
ResponderEliminarHá muita gente que faz Tróia ou, pelo menos, Sines até Sagres em bike. E não estou a falar do Tróia-Sagres em bike de estrada mas sim de bike de montanha sempre o mais perto possível do mar pelos caminhos e estradões das falésias. Tens que fazer planos ... :)
Já agora, o ano passado fiz a maratona Alvalade-Porto Côvo e este ano devo fazer novamente (estou inscrito) mas não tem o encanto das pedaladas nas falésias.
E finalmente cheguei aqui. Que saudades!
ResponderEliminarÉ um local poderoso sim, esmaga-nos tanta grandeza, tanta beleza.
Eu morava em Sines e aos fins de semana partíamos à descoberta.
Milfontes, Zambujeira, Cabo Sardão, Porto Covo (muito calmo, o Rui e o Tê ainda não tinham escrito a canção), Odemira, Barragem de Santa Clara e todas aquelas praias da Costa Alentejana quase desertas.
I had the time of my life...
Foi bom recordar :)
Maria
Olá Maria
Eliminaré curioso mas, também a mim, as fotografias me "devolvem à lembrança o Alentejo". O Alentejo rente ao mar. O Alentejo das falésias, da maresia, do mar fundo que oscila na vertical junto às rochas. Eu, um tipo das serranias da Beira, tornei-me apanhador (à maneira tradicional) de perceve e mexilhão e, para isso, tive que aprender a dinâmica do mar. Fui para lá nos anos 80 e depois, de modo regular, a partir de 90, muito antes de "estar na moda". Mas por esta altura já a Maria por lá andava. Deve ter conhecido o litoral Alentejano genuíno.
João
Eu estive lá de 79 a 88 e a zona de Sines já era muito pouco genuína: a praia suja e destruída pelas obras do Porto de Sines, a Petroquímica (onde eu estava), a Petrogal, a Central Termo-eléctrica de S. Torpes (outra praia cheia de nafta).
ResponderEliminarDurante a semana era uma confusão, e no verão também, mas aos fins de semana de outono/inverno/primavera era um pequeno paraíso, tudo muito calmo - nunca comi tanto peixe fresco na minha vida.
Agora o resto da costa era de uma beleza incrível. Jamais esquecerei o dia em que fui à Ilha do Pessegueiro. Ninguém me avisou que depois de irmos por uma estrada rural, a seguir a uma curva, surgiria aquela visão de sonho: parecia um barco, entre o mar azul e o céu já com os tons avermelhados do poente.
Lembro-me que pensei: gostaria de acabar os meus dias aqui, a olhar para esta paisagem até morrer.
Claro que não passou de um impossible dream...
E hoje já não melgo mais, prometo!
Maria
A memória é acontecimento curioso. O que é a memória? Não se sabe muito bem. Há uma base física para a memória? Talvez. É que se morrerem neurónios no cérebro podemos perder a memória. Temos memória do que não sabemos até essa memória ser chamada. A Maria, ao falar do mar azul e do céu poente, disparou (fez renascer) na minha memória visões semelhantes nas falésias a Sul da Zambujeira. E essas memórias iniciam processos de recompensa (rewarding) no cérebro. E isso sabe muito bem.
EliminarJoão