segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Invernia suave (como se fora um chamamento)

Novembro, dia 20

E, de súbito, quer dizer, apenas com um aviso de véspera, um aviso em tons de luz coada, branca e difusa ... de súbito, a serra estava num turbilhão.

Um manto de neblina filtrava a luz e saturava o ambiente, criando a sensação de se estar in the middle of nowhere, rajadas de vento atiravam com folhas e ramos para a estrada e cortinas de chuva, puxadas a vento, varriam os montes.
É preciso aprender a pedalar à chuva. Sobretudo na serra. Somos habituados desde cedo a protegermo-nos da chuva. Fugimos da chuva. Evitamos a todo o custo levar com uns pingos na cabeça. Como se a chuva fosse um líquido tóxico. Tenho colegas que se lhes cai um pingo na cabeça enquanto circulam entre edifícios próximos correm a sete pés para um abrigo. Ou então abrem um guarda chuva  para o fechar 5 passos depois.
Quando se aprende a pedalar à chuva é como se chovesse "lá fora". Pedala-se à chuva como se pedala ao Sol. Corre a água pelo capacete, os pés vão ensopados, mas pedala-se com naturalidade e com prazer.  Por vezes, sob cargas de água torrenciais, começa a sentir-se uma humidade aqui e ali, de fora para dentro, em zonas do corpo que pensávamos mais ou menos inacessíveis. Quando se chega à fase de completamente encharcado, atinge-se o estado de equilíbrio dinâmico. É um sossego. Nada mais há para molhar. Nestas condições é importante que nos mantenhamos quentes.
Tive um professor de botânica, um homem famoso e muito conhecido, que andava à chuva como quem passeia à beira-mar num dia ameno de Verão. Um dia, à saída de uma aula, chovia a potes e ele, com grande naturalidade, pôs-se a caminhar rua fora. Eu, que seguia atrás dele com um guarda chuva, ofereci-lhe boleia. "Professor, não se quer abrigar, o chapéu dá para os dois". Olhou para mim e com uma voz tranquila mas tom desafiador disse: "obrigado, não é preciso, os cães também andam por aí à chuva". Fui com ele durante algum tempo. Mantive o guarda-chuva aberto (e ele ao meu lado a escorrer água), evitando apenas que os fios de água escorressem para cima do ombro dele. Já não sei de que falámos.

Pensei tirar fotografias. Mas como? O telemóvel no bolso traseiro interior significa que tenho que expor parcialmente as costas, levantando o casaco impermeável. Com vento e chuva esta acção requer a perícia de um contorcionista. As luvas encharcadas não se podem descalçar porque, uma vez cá fora, as mãos molhadas recusam-se a entrar novamente onde devem entrar. Mexer no telemóvel com as luvas não é, digamos, pêra doce.
Já a descer, lá consegui fazer um filmezinho sem tirar as luvas.
Estava sobre o vale da ribeira de S. João. O som da chuva misturava-se com o da ribeira.



Pela primeira vez desde o último Inverno ouvia-se a ribeira lá em baixo, no fundo do vale.
Passei lá pouco depois, numa aberta.
Ribeira de S. João. A água, geralmente cristalina, ia turva. A primeira enxurrada do ano arrasta detritos e lava as margens.



A despropósito,  acordaram na memória (como tantas vezes) os acordes da guitarra de Steve Hackett no "firth of fifth".
Aqui em 2013, quarenta anos depois da sua publicação no álbum "Selling England by the Pound" dos Genesis. Falta a parte inicial do piano e a voz do Peter Gabriel: the path is clear though no eyes can see ...
Mas fica o solo.





14 comentários:

  1. Uma bela descrição do que é pedalar à chuva. Depois de molhados, atravessamos as poças pelo meio e nem nos desviamos, confesso que adoro. Como dizia um rapaz por quem passei ontem debaixo do temporal, molhado por cem, molhado por mil. Torna a pedalada difícil mas é libertador.

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    1. Olha-se para o lado e pensa-se: aquele tipo vai ali à chuva :)

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  2. Ganda, ganda som!
    Até arrepia...
    Maria

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    1. Quando eu for grande quero fazer músicas assim ;)
      João

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  3. João, desculpe, acho que estou a ser uma melga com tanto comentário... mas encontrei agora aqui um Haiku que o Bashô escreveu (de certeza) a pensar em si e no seu Professor de Matemática:

    Sem chapéu
    a chuva encharca-me
    Qual é o problema?

    Boa noite!
    Maria

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  4. Sorry again.
    O seu professor era de botânica (estava a pensar num professor de matemática que eu tive).
    E também estava a pensar que se fosse de Físico-química, eu diria que sei quem era.
    Pensei num grande homem da ciência, que escrevia com outro nome, e escrevia tão bem, mas tão bem, que todos os portugueses conhecem (ou já cantaram) o seu poema mais famoso.
    Tenho as suas Poesias Completas desde 1982, é um dos meus livros de sempre.
    E tem uma filha que também escreve muito bem.
    Mas devo estar errada...
    Maria

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    1. Quanto ao primeiro comentário (o das melgas):
      Come on Mariô (versão Dexy´s Midnight Runners) e Don´t give up (versão Peter Gabriel + Paula Cole).

      Quanto à bola colorida entre as mãos de uma criança, perdão, quando ao segundo comentário o professor de Botânica de que falei é muitíssimo conhecido. Gostava muito de falar com ele. Há tempos que o não vejo. Curiosamente, falávamos muito de astronomia, do universo, das estrelas ... assuntos em que nem ele era o professor nem eu o aluno. Uma das pessoas admiráveis que conheci.
      João

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    2. Olá João,

      Já fui ver a Eileen, mas não vi por lá a tal Mariô (quem é essa?) ;)
      Quanto ao Don't Give Up apenas conhecia aquele vídeo em que ele está muito abraçadinho à Kate Bush. Gostei muito de ver esta versão ao vivo com a Paula Cole: muito, muito bom!

      Oh, então não era o Rómulo António de Carvalho Gedeão.
      Nem dou mais palpites: não conheço nenhum professor de botânica famoso.

      And now just a little question, if you don't mind:
      Quando esteve na Califórnia não deu um saltinho ao Arizona para ver e fotografar o Grand Canyon e Monument Valley?
      Em caso afirmativo, quer partilhar a experiência?
      Em caso negativo, how could you?

      Música: Ry Cooder na abertura do Filme Paris, Texas.

      Se for ao Encontro do Caramulo, desejo um belo dia para si & Bike!

      Maria




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  5. Olá Maria,
    tem que procurar melhor pela Mariô, that's all I can say.

    Aparentemente, o Peter Gabriel sempre se interessou pela encenação da música. Já nos Genesis fazia "representações" interessantes. Mas essa do abraçadinho à Kate Bush não tem grande piada.

    Não quero dizer aqui o nome do professor de Botânica mas, muito provavelmente, conhece-o dos media. Ele é (ainda) muito activo em defesas de "causas" (ambientais e outras).

    Yes. Dei alguns santinhos ao Arizona, passei perto do Monunent Valley a caminho do Grand Canyon. Um sítio deslumbrante, enigmático, surpreendente. À chegada, lembro-me bem, sob Sol e calor intenso, havia uma nuvem escura uns Km acima do local onde estávamos e, sob a nuvem, uma cortina d chuva com relâmpagos. Parecia uma cena de desenhos animados em que em todo o céu azul está uma nuvem sobre um personagem e o persegue.
    Por regra, resisto bem a sede mas ali foi o local em que, após uma breve caminhada, tive uma necessidade urgente de beber (não só eu mas também a minha família). Estranho, de repente a sede era intolerável. Foi lá também que vi pela primeira vez um veado e aves mortas com o estômago cheio de sacos e copos de plástico. O desfiladeiro tem em média cerca de 20 km de largura e, pelo meio, umas colunas gigantes (penedos), aparentemente escavados por tribos locais, com nomes de divindades egípcias (Ísis, Osíris ...). Fascinante. Por mais que se tente, a descrição daquele local ficará sempre aquém da sensação, do murro no estômago (literalmente) que se leva quando nos aproximamos do desfiladeiro, do espanto, da incredulidade.
    Devo ter por aí (nem sei onde) fotografias.

    Ora Maria, Ry Cooder e Paris Texas. Ainda hoje, depois de mil anos, me lembro de estar sentado na plateia a ouvEr a voz rouca e quente da bela Nastassja Kinski em conversa com aquele que tinha sido o seu marido ... e as caminhadas no deserto ... e a música enigmática do Ry Cooder e a ambiente dos motéis e estradas sem fim que eu conheci quando lá vivi.

    Os planos feitos com amigo de longe para ir ao Caramulo goraram-se. Eu perdi o meu GPS na serra e, para ir sózinho, como são 80 km e anoitece muito cedo, sem GPS corro um levado risco de ficar por lá perdido na serra do Caramulo à noite. Obrigado em todo o caso Maria (como se foi lembrar disto !). Muito obrigado.

    João

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    1. Também pensei que seria impensável o João não ter ido lá.
      Obrigada pelas memórias; eu fico-me pelas imagens dos filmes...

      Peter & Kate:
      Neste caso, acho que aquele abraço exprime a ternura e o apoio de uma mulher ao marido, que perdeu o emprego e se sente impotente para sustentar a família.
      E há lá coisa melhor do que um abraço apertadinho para isso ;)
      E a inveja que eu tive dela quando vi o vídeo - e vi tantas vezes, sempre na tv, que naqueles tempos não w.w.w.
      E claro que também me fartei de ver o Sledgehammer, um espanto, não era?

      Gosto muito dos filmes do Wim Wenders.
      As Asas do Desejo também é um must.

      E como não lembrar o Assalto ao Caramulo se ainda há pouco tempo comentei num desses posts, acerca da Irlanda, remember?
      Afinal isto é um blog about bikes...
      ou não?
      Maria

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    2. Adenda:

      ...naquele tempo não havia w.w.w.

      Mariô:
      Será que andou a ver os comentários no blog da dona de um heaven on earth, que ambos muito admiramos?

      Bela Nastassja:
      Belíssima!
      Vi alguns filmes com ela, depois desapareceu.
      O miúdo lourinho também era lindo.

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    3. Enquanto estudante na universidade vi muito filmes. Bons e baratos. Tanto mais que, até então, nada tinha visto. No local onde cresci nem cinema havia. Fiquei apaixonado pela bela Nastassja quando a vi no cinema. Vi alguns filmes e depois, tal como diz, desapareceu. Um grande desgosto, como está bom de ver :)
      Tinha a mania de ver várias vezes o mesmo filme. Um dos que repeti muitas vezes - e lembrei-me porque o Bertolucci morreu- foi o 1900.

      Vi o seu comentário no blog que refere Mariô.

      João

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    4. Um blog about bikes, obviously :)

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  6. Pois, o Bertolucci morreu...
    Vi quase todos os filmes dele e tenho alguns cá em casa.
    Filme poderoso o 1900.
    Vi a primeira parte no Cinema S. Jorge e depois fui a correr (de metro, claro) para o Mundial ver a segunda parte.
    Tudo em écrans gigantes, que os havia com fartura em Lisboa nessa altura.
    Acho que foi a primeira vez que vi o Dépardieu e o De Niro; a menina era a Dominique Sanda e também desapareceu das nossas salas.
    Maria

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