(Serra da Lousã)
O dia calhou ruim, como se dizia na serra.
Estava frio, chuviscava e a serra coberta de neblina densa dizia-me que embora pedalasse instintivamente para a luz, serra acima, desta vez não encontraria o Sol.
A serra neblínica, em semi-escuridão, exerce uma atracção extraordinária em mim. Tudo é indistinto, não há certezas, está-se sempre na expectativa, é tudo novo nos caminhos onde passei já mil vezes, as cores mudam, os sons propagam-se com mais nitidez mas somos como que abraçados pelo silêncio. As rectas transformam-se em labirintos.
9 graus C na Vila era uma temperatura boa para pedalar serra acima. O problema seria descer. Geralmente levo um casaco ou uma jersey de mangas compridas suplente para vestir na descida mas, com chuva e frio, fazer streat-tease no cimo da serra pode tornar-se numa actividade cheia de surpresas. Como é sabido, em dias frios a última coisa que queremos é chegar ao cimo da serra mais suados do que uma lagosta. Base layer e blusão gore tex (Alp X active jacket, custou-me dias de trabalho mas vale cada cêntimo). Pronto vai assim. Até um pouco abaixo dos 4 aguenta-se.
A primeira paragem (não pode haver muitas nos dias assim) foi na paragem. Na paragem da camioneta de carreira. Da camioneta que já por ali não passa há muitos anos. Em frente à fonte e à casa dos cantoneiros. A temperatura tinha caído para os 6 graus. Uma bela manhã de Domingo.
Era nas paragens da camioneta de carreira que dantes se comia a merenda. Num exercício de contorcionismo artístico, levei a mão com a luva (tirar as luvas é nestes dias um exercício a evitar) ao bolso de trás e com pouca sensibilidade tentei abrir o fecho, tacteando e tentando encontrar a banana por entre outra tralha sem a esmagar. Não sou nada bom a fazer isto, sobretudo com o braço da clavícula partida.
A floresta estava bela. Aqui estavam 4 graus e a esta temperatura o nevoeiro é mais denso. Quase que se come se abrirmos a boca. À chuva miudinha juntavam-se os pingos grossos que caíam das árvores.
Era isto que eu esperava desde que tinha saído da Lousã. Estes sítios atraem-me.
Olhava à volta como que a procurar um vulto fugidio contra a claridade por entre as árvores. Um resfolhar a denunciar uma gineta ou um veado. Silêncio. Nem vento soprava.
Os únicos vultos visíveis estavam hirtos, imóveis e silenciosos; as árvores na floresta.
Quase que ouvia uns dedos a cair numas teclas e o som de Satie abafado pela neblina.
Mas, olhando bem, entre as árvores, contra a luz quase que percebia um vulto. Como que me via a mim próprio, a pedalar
Era eu. Não tinha dúvidas.
No fundo, esta historieta é apenas um pretexto para mostrar a floresta sob a neblina.
A descida, pela N236, geralmente arrefece o entusiasmo. Para além do normal (frio, chuva, a água a começar a chegar aos pés e a outras concavidades organísmicas, por assim dizer, provocando uma arrepiozinho pela coluna acima, sensação que para quem pedala à chuva não é surpresa ...) houve um componente adicional; não via a ponta de um chavelho. Não só porque o nevoeiro se tinha assapado na estrada mas também porque ando a experimentar lentes de contacto (depois de anos e anos por caminhos em que só via as pedras, os regos, etc quando estava com o nariz em cima deles) e protegia os olhos com uns óculos que ficaram completamente embaciados. Já em casa fui à Evans Cycle (loja on line em que tenho visto os melhores preços) e comprei uns óculos anti-fog por 19 euros. Não são bué da nice mas as descidas às cegas com chuva e nevoeiro às vezes, para além de arrefecerem o entusiamo, reorganizam a lista das prioridades.
Fantástica a tua descrição dos dias de nevoeiro e que fotos lindas. Pedalas sozinhos por esses lugares eo vais com alguém? Acho perigoso andar sozinho :)
ResponderEliminarPedalei vários anos com alguns companheiros. Era sempre a abrir. Ultimamente pedalo sobretudo sozinho porque páro muitas vezes (e muito tempo) para tirar fotografias. Há sensações muito boas quando se pedala sozinho (tal como há quando se pedala em grupo). O maior risco são as potenciais quedas. Tento ter muito cuidado mas, como sabes, às vezes atravessam-se umas pedras e umas rilheiras à frente da bike :)
ResponderEliminarQue fantásticos chãos para caminhar... e talvez cair, pois deviam estar bastante escorregadios, but who cares anyway?
ResponderEliminarDevia ser bem bom ficar para ali caída, a olhar para as neblínicas árvores e a ouvir Satie, até aparecer alguém que me desse uma mãozinha...
Maria (pateta)
Muitas vezes, na floresta neblínica instala-se um silêncio profundo. Percebe-se a ausência de sons.
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