Primeira etapa: Serra da Lousã 2017
18 de Fevereiro
Éramos para aí uns 800, distribuídos por três distâncias: 30, 60 e 80 Km. Partida e chegada a Miranda do Corvo, no sopé da serra. Todos os trajectos em autonomia e com orientação por GPS. Havia apenas umas febras grelhas na aldeia de xisto do Catarredor oferecidas pela organização.
Vamos aos 80? OK P, vamos lá. Fomos. Eu, o P e o F. Oito e pouco da manhã e já pedalávamos em caminhos com inclinação generosa, daquelas que nos fazem inclinar para a frente para mantermos o centro de gravidade onde ele deve estar; muitos outros iam já a passear a bike à mão. Pelo amanhecer, uma hora antes, o céu sobre a serra tinha umas nuvens brancas estilhaçadas, nada ameaçadoras, e umas clareiras de azul. Não era agora o caso. O cume da serra estava "tapado".
O P bem avisou: vamos meter-nos na nuvem. Metemos. Rapidamente ficámos molhados, tal como as pedras (escorregadias p'ra caraças) e a terra batida dos caminhos transformou-se em mousse. E ainda ia a procissão no adro. Quer dizer, ainda íamos apenas a meia encosta. Quanto mais subíssemos, mais intensa seria a chuva.
Eu não ia preparado para a chuva. Os outros setecentos e tal, incluindo o P e o F, também não. Alguns iam até de calções e perninhas ao léu, como se de um dia ameno se tratasse.
Dadas as circunstâncias, o F expressou a sua opinião de um modo sucinto e peremptório: estamos, muito provavelmente, numa situação que, por influência da intempérie que se avizinha, poderíamos eventualmente classificar de muito problemática. O F tem uma grande capacidade de síntese e resumiu tudo numa palavra. E a palavra não foi "quilhados". Pois estamos, respondemos nós (o P e eu). E bem.
Ao princípio, nas primeiras rampas, aquilo era uma avalanche de MAMIL's (middle aged men in lycra) côr de rosa, verdes alface, laranjas, azuis eléctrico etc, pela serra acima. Depois, já com uns km nas pernas, era uma fila de pequenos grupos arfantes e molhados.
O percurso passava na floresta onde tantas vezes passo sózinho. A floresta estava belíssima, imersa em nevoeiro. Era estranho ver por ali uma multidão.
Ali vai o P e o F
depois surgiram outros companheiros de pedalada
Passámos pelo Catarredor, comemos as febras e oh que delícia. Chegámos lá por um belo de um single track (perigoso como o raio) sobranceiro a uma ribeira (um descuido, um derrapanço numa pedra molhada e iríamos ter lá abaixo)
Tinha que ser. Tínhamos que dar com o ribeiro na curva do vale. Aqui a coreografia da travessia era variável. Enquanto que uns, como o meu amigo P, seguiam uma linha mais ortodoxa, pés na água e que se lixe,
outros abraçavam um bailado mais contemporâneo, com coreografias mais arrojadas, ensaiando movimentos de perna com raízes no tango Argentino, tentando passar o ribeiro sem molhar os pés e levando ao mesmo tempo a bike.
Ainda nem sequer estávamos a meio do percurso (e a meio da encosta) e esta foi a última fotografia que tirei.
A partir daqui não poderia mais tirar as luvas, nem sequer tinha sensibilidade para tal. Descemos um pouco e fizemos a subida até ao cume, ao Trevim. O que dizer? Frio, chuva, vento, nevoeiro e as pernas que teimavam em manter-se em rotação, pressionando os pedais. Depois, tudo piorou. Mal se via a 50 m de distância, subimos ao pico gémeo do Trevim, o Santo António da Neve, aos 1200m de altitude. Na subida levámos com uma carga de água gelada em cima. Literalmente, e como diriam os irredutíveis Gauleses da aldeia que resistia e sempre ao invasor, o céu caiu-nos em cima da cabeça. Chegados lá acima, a coisa mudou, apanhámos com uma tempestade de neve. Minúsculos pedaços de neve misturados com chuva fria arremessados pelo vento contra a cara, lateralmente, como se fosse areia. Foi aqui que as coisas começaram a ter um toque cinematográfico, to say the least. O F desanimou. Parou. Não consigo, dizia, acabou, não estou bem, não estou nada bem. Nós, eu e o P, gelados, encharcados, sem sequer conseguir parar, não querendo quebrar a rotina das pedaladas, sorríamos, dizíamos piadas, como se fôssemos na maior. O F, tirou a luva e embrulhou a mão num saco plástico (onde levara comida) para a proteger do frio. Já nem sequer tinha sensibilidade para pressionar o manípulo das mudanças no guiador. Foi tudo muito difícil. Nestas circunstâncias o que há a fazer é continuar a pedalar. Entrávamos a direito pelo charcos de água que se tinham formado no caminho sem sequer pensar no que havia abaixo da superfície da água (pedras traiçoeiras, buracos ...), descíamos as cascalheiras de pedras de xisto afiadas com o coração na boca, esperando não rasgar um pneu (esta era a minha grande preocupação - se algum de nós tem que parar por causa de um pneu, estamos feitos), a pedalar como autómatos. Às tantas, o percurso GPS atravessava a estrada EN236. Disse-lhes: conheço bem isto, podemos deixar o troço e seguir diretamente para o Gondramaz e daí para o ponto de partida em Miranda, estamos a cerca de 15Km. Era necessário descermos rapidamente. Outros companheiros pedalantes que por ali estavam desesperados, a tentar "checkar" o percurso no GPS, ouviram-me. Um dizia que já nem sequer sabia se estava a pressionar a manete do travão. Ninguém quis ouvir mais nada a não ser seguir directamente para Miranda do Corvo. Segui. Às tantas olhei para trás e trazia uns dez companheiros em hipotermia atrás de mim, encolhidos em cima da bike (tal como eu) na esperança de que os levasse dali para fora. Descemos dos 1000 para os 700 m e daí, rapidamente, para os 200.
À chegada, cobertos de lama, com o tempo mais ameno, o Sol a espreitar no vale, olhámos para o cume da serra coberto de nuvens negras despedimos-nos com um sorriso. Foi épico diziam, uma bela volta, afinal isto era o Epic GPS, até à próxima. Isto do BTT é difícil de explicar.
À noite, em casa, o que mais me doía eram os músculos entre as costelas, de tanto ter contraído o peito com o frio, tolhido em cima da bike, durante tanto tempo.
Hoje, o dia amanheceu azul, com o Sol brilhante e aroma intenso das acácias.
Fui esticar as pernas e aspirar os aromas. Já nem me lembrava do que tinha passado no dia anterior.
Que bem me soube apanhar o Sol quente.
Fui até ao Candal. Na subida encontrei um parceiro que também tinha feito o Epic GPS da véspera. Contou-me que, na descida do St. António da Neve, depois da tempestade de neve, no meio do nevoeiro e da ventania, encontrou dois miúdos parados à beira do caminho. Tinham tido um furo. Parou. Eles nem bomba de ar tinham. Não podia parar. Bem sei que é difícil perceber isto mas é mesmo assim. Deixou-lhes a bomba dele próprio, desejou boa sorte e continuou a pedalar. Fez o possível para os ajudar. Naquelas condições, mesmo que houvesse rede de telemóvel, seria penosíssimo parar (parado o arrefecimento é exponencial) e tentar arrancar novamente.
Ah os aromas das acácias
Parece que foi mesmo dificil. O pessoal daqui que foi chegaram todos empenados e negros de quedas que deram devido ao piso escorregadio. Não havia necessidade :))
ResponderEliminarAinda pensei que me ia cruzar com a famosa Gaja Maria na serra da Lousã ;) Para a próxima tens que vir. Olha um muito bom vai ser o epic GPS do Piodão com partida de Oliveira do Hospital lá para Outubro.
EliminarPois foi, foi difícil, sobretudo porque ninguém ia a contar com a chuva e o frio. Na véspera tinha estado um belo dia de Sol. Os trilhos de lama e pedras molhadas estavam manteiga.
Par Toutatis!!!
ResponderEliminarThat's all I can say (write).
Ah e os aromas das acácias...
Maria :)
Por Toutatis o céu caiu-nos em cima da cabeça e não havia poção mágica que nos livrasse do frio a meter-se até aos ossos.
ResponderEliminarJoão