Março de 2014
A Cidade dos mil templos. Fundada há 2000 anos e capital imperial do Japão durante metade desse tempo. Actualmente um dos principais centros científicos/académicos do Japão. Cosmopolitismo e tradição interligados. Os Japoneses misturam as coisas, desde a arquitectura aos costumes, de um modo que a um Ocidental distraído parece aberrante. Custou-me perceber que o segredo está nos detalhes, nas pequenas coisas.
banda sonora introduzida pós-post:
(In the mood for love - Shigeru Umebayashi)
Um dia por minha conta depois de vários lá no complexo do International Conference Center, um edifício monstruoso rodeado por lagos e jardins muito belos onde em 1997 foi assinado o protocolo de Kyoto sobre alterações climáticas baseadas em evidências científicas (já lá vão mais de 20 anos e continuamos à deriva num ciclo vicioso de consumismo e aparente bem estar a toque de caixa do mantra elevado à categoria de inquestionável: "crescimento económico").
Há ali a impressão, nos lagos e jardins rodeados de colinas (como tive mais tarde nos templos que visitei), que o tempo corre mais devagar. E, pensando agora nisso, parece-me que o despojamento que se encontra nos jardins (então os jardins Zen !), na paisagem e nos templos (sem show offs) nos faz pousar o olhar devagar em cada detalhe, dando a impressão da dilatação do tempo.
E o dia começava depois de uma noite com jantar oferecido e "abrilhantado" por Gueixas que, com muito talento, tocavam, cantavam, dançavam e teatralizavam cenas da vida japonesa. Muito bonito. A condição das Gueixas nada tem a ver com prostituição (uma ideia comum no Ocidente) mas com arte, cultura e tradição.
(com o Nokia fraquito era difícil tirar fotografias de jeito)
Comi por lá uma sopa (no banquete oferecido) que toda a gente achou fantástica e eu, que me mando de cabeça para experimentar as coisas mais esquisitas, achei uma ideia idiota: sopa com gotículas de ouro. Pequenas gotas de ouro a boiar no caldo ! Ainda estive para explicar a quem estava fascinado com aquilo que o ouro não seria absorvido no intestino e que sairia no dia seguinte pelo outro lado da canalização. Dado o enlevo dos que sorviam a sopa e da elegância do local, abstive-me de fazer comentários.
Uma dia que começou com Sol aberto em ruas largas e templos e terminou com chuva em jardins e vielas.
Kyoto é uma cidade moderna, grande, com um sistema de metro extremamente eficaz (quer dizer, depois de começarmos a perceber qualquer coisa sobre os caracteres japoneses pois não há sinalização em qualquer outra língua). Para mim a maneira mais fácil de me orientar era habituar-me à música das palavras. Para ir para o Centro de Congressos, em Kokusai Kaikan, entrava em Shiyakusyomae e mudava em Karasuma Oike. Já conhecia a música: Kokusai Kaikan, Shiyakusyomae, Karasuma Oike com vogais fortes e abertas, com acentuação na última sílaba. Esta acentuação na última sílaba (por exemplo, Kyoto lê-se kyotÔ) dá força às palavras e determinação ao discurso em japonês. Quase que falam como se insultassem mas, ao contrário, funciona como uma força para a interacção que se pretende.
Mas o dia era para pedaladas.
Mochila e mapa no cesto da bike alugada no hotel. Hey that's my bike !
O meu plano era o costumeiro: um sítio ou dois de referência e depois logo se vê. Perguntei no hotel sobre o templo Rokuon-ji e o seu Kinkaku (pavilhão dourado, do qual tinha visto fotografias). Ah, bem, pois o templo fica na zona Noroeste numa colina a cerca de 20 km - disse-me o tipo no hotel, olhando-me cose esperasse a minha desistência. Quer que chame um táxi?, acho que esteve quase a perguntar. Ora, 20 km numa cidade com orientação por mapa em papel aberto à frente do guiador é muito mais fácil do que sair de um oásis no Saara e dar com o próximo.
Sigo pela Oike, cruzo 4 grandes avenidas, entre cada uma há cerca de 10 quarteirões e subo para Norte na Nijo. Nada de especial.
Apanhei a grande avenida Oike logo ali. Carros, muitas pessoas, semáforos, cruzamentos e, no entanto, pedalar por ali era tão seguro como um passeio à beira rio; os peões davam prioridade aos ciclistas ! Avenidas bem organizadas: peões por ali, bicicletas por aqui e carros por além.
Mas, a mesma fluidez e segurança se sentia em ruas secundárias nos bairros que atravessei.
Cheguei a Rokuon-ji. Prendi a bike num estacionamento para bikes. Percebi que nos últimos km tinha saído do centro da cidade e que tinha subido uma colina suave. Começara a ter vistas para montes cobertos de árvores na periferia da cidade.
Na entrada, um desenho. Muita gente (japoneses sobretudo) a visitar o templo. A localização do pavilhão dourado (à esquerda, no lago) era óbvia. Para além disso, WC era o único local assinalado que entendia (merecedor também de uma visita, seguramente, pois a massagem permanente - digamos assim - do entre pernas no selim provoca sensações sobre as quais não me vou adiantar, referindo apenas que, entre elas, está a da micção).
Kinkaku, o pavilhão dourado no meio do lago. Não se pode visitar. Muito bem, pensei. Nós por aqui temos a mania que tudo é visitável e devassável por hordas de turistas e fotografável e facebookável. Agradou-me aquela reserva. Não sou um tipo religioso mas se o pavilhão é usado por monges para meditação pois então os turistas só vão perturbar. Um templo budista Zen do século XIV ou XV. Dourado porque revestido por uma película de ouro.
Às tantas, por entre as árvores, na curva do caminho: Kinkaku. Silêncio. Quero dizer, para além do som da água, das aves e do vento, não se ouviam vozes em som alto, apesar dos vários visitantes (dos templos mais visitados no Japão) que por ali andavam, desde crianças a idosos, passando por ciclistas!
Contornei o lago e não percebi se o acesso ao pavilhão era por ponte ou por barco.
Espreitei os templos mas não entrei. A área murada era extensa e havia vários templos ligados por carreiros e jardins. Ao longo dos séculos vários templos tinham sido adicionados ao complexo, outros desaparecido em incêndios.
À saída, resolvi continuar pela periferia da cidade, rente às colinas cobertas de arvoredo. E ainda bem porque dei com um templo, o Oubai-in, que, não tendo a exuberância do anterior, foi onde me deixei andar sem pressas, deambulando e descobrindo recantos, pequenos detalhes, como se lá morasse e não estivesse apenas de visita.
O Oubai-in.
À entrada, estava este jardineiro.
Levei uns minutos para perceber que, com uma elegância e delicadeza extraordinárias, como se fosse um samurai, manuseava uma foice e uma espátula em miniatura para cortar algumas pequeníssimas ervas que, pensei eu, deveriam ser consideradas invasoras. Estive ali uns 20 minutos a olhar para ele - que se agachava ou sentava - e nem uma vez ele olhou para mim. Aproximou-se, sem sequer levantar a cabeça, olhar fixo no chão atento ao seu trabalho. Acho que nem deu conta que eu ali estava, tão concentrado estava em cortar os pequenos pedúnculos de uma erva.
Percebi que era um trabalho muito importante. Não o seria no meu país, nem no resto da Europa. Ali é.
(as ervas cortadas eram colocadas na caixa à sua frente)
No interior não havia o apelo do registo em fotografia do que ia vendo, experimentando, saboreando ... Mas, em todo o caso, ainda tirei duas ou três.
Os edifícios eram ligados por passadiços de madeira, sobre os jardins. De vez em quando, havia algumas pessoas sentadas por ali, nas pedras ou nos alpendres, em silêncio.
Em dias de chuva, como começara a ser o caso, era possível circular abrigado sobre os alpendres. Fiquei por ali muito tempo.
Dois templos vistos, faltavam mil novecentos e noventa e oito. O céu pôs-se sombrio, a fome começou instalar-se e virei para Sul, saindo da periferia de Kyoto e começando a entrar na cidade. Às tantas vejo uma pequena casa de madeira, ar modesto mas muito bonito, com um pequeno alpendre decorado com vasos de flores e uma mesa de madeira. É seguramente um sítio para comer, pensei. A mesa cá fora é o sítio ideal. Encosto a bike e sento-me ali. Que comida boa! Já tinha experimentado o sushi e o sashimi em restaurantes bons. Um dos meus preferidos era perto do hotel. Algumas mesas e um longo balcão onde a maioria dos clientes (Japoneses, não vi por lá ocidentais) se sentava. À frente de cada lugar ao balcão havia uma pedra e uma colecção de pequenos frascos com molhos. A partir daí estávamos nas mãos dos cozinheiros que do outro lado do balcão à nossa frente iam preparando a comida, metendo as mãos em grandes panelas fumegantes, enrolando e espalmando até que nos colocavam (sem pedirmos) o conteúdo das mãos na pedra à nossa frente. Eu ia provando o que me punham à frente (sushi e sashimi e outras coisas) sem saber do que se tratava. Gosto destas experiências. Uma vez satisfeito, era só levantar e pagar.
Também experimentei, a convite dos organizadores locais do encontro em que participei, num jantar num local, soube depois, altamente selectivo, a comida tradicional Japonesa sofisticada. Selectivo não pelo luxo (embora fosse caríssimo) mas pelo carácter genuíno. Uma casa numa rua estreita (mal dava para duas pessoas se cruzarem) ladeada por casas de madeira com rés-do-chão e primeiro andar. Lugares secretos, elegantes e sofisticados que não aparecem nos guias turísticos, frequentados por locais endinheirados. Mesmo que eu quisesse voltar não o conseguiria fazer. E não apenas por causa dos nem sei bem quantos copinhos de saqué que bebi durante as horas que lá estive.
Nesta casa de "comeres" que encontrei depois de sair do Oubain-in, comi arroz, vegetais vários, frutos secos e galinha assada aos bocados. Uma ementa muito longe da que se liga ao Japão. Este era seguramente um sítio modesto (percebia-se pelo ambiente e pelos clientes) mas veio tudo com cuidado e foi servido com uma delicadeza que, via-se claramente, pretendia agradar aos clientes. Ali, numa mesa de madeira grosseira sentado num banco na berma de uma rua estreita a comida foi assim servida:
As pedaladas levaram-me para uma zona que me pareceu turística onde, suspeito, havia mulheres vestidas como Gueixas mas que era apenas um show off para turistas. Uma Gueixa tem uma graça e elegância nos movimentos e uma tranquilidade no olhar que aquelas não tinham.
Zarpei dali, passei por locais sagrados, no meio das ruas onde se viam pessoas a colocar oferendas, dedicados a um deus (os Shrines - não sei como traduzir isto - que diferem dos templos uma vez que estes são dedicados a uma religião). Por exemplo:
Procurei locais onde não houvesse sinais de turismo, ruas laterais e sem sofisticação. Às tantas, comecei a entrar no que parecia um bairro com ar bonito, as casas com varandins e guarda-chuvas à entrada e dei com umas raparigas muito bonitas. Mulheres jovens e belíssimas. Sorriram tímidas. Deram uma pequena corrida para se desviar de mim. Eu ri-me e meti-me com elas. Estavam vestidas com trajes tradicionais mas, claramente, não era para se exibirem para turistas. Por gestos, perguntei se podíamos tirar uma fotografia. Uma delas entrou na casa ao lado e saiu com uma mulher mais velha - percebi que deveria ser uma preceptora que as ensinava e treinava na cultura Gueixa e a quem teria ido pedir autorização ara tirara a fotografia. Sorri para esta também. Ela anuiu. As três raparigas imediatamente se alinharam muito juntas em pose. Pés juninos e bem alinhados, mãos escondidas, excepto a que vestia de cor de laranja. Meti-me no meio delas e a mais velha tirou a fotografia. Foram de uma amabilidade e simpatia extraordinárias. A tentação de lhes pedir que me mostrassem a casa assaltou-me mas recuei. Seria talvez pedir demais. Depois de uma troca de cumprimentos, entre gestos e sorrisos, despedimo-nos com uma vénia.
(embora belíssimas não posso aqui colocar a face das mulheres de modo que possam ser identificadas)
A chuva passou da morrinha para chuviscos. Com o aproximar da noite passaria a aguaceiros.
Deambulei ainda assim. Antes da noite não voltaria ao hotel. Este era um ponto assente do plano.
Passei por templos e "shrines". Dei com um que, soube depois, era o templo Zen mais antigo em Kyoto (datado de 1202), fundado pelo monge que introduziu o ramo Zen (Rinzai) do Budismo no Japão.
O Kennin-ji. Nos jardins aparecem as figuras geométricas que, de acordo com a descrição no local, na escola Zen representam todas as coisas do Universo: o círculo, o triângulo e o quadrado. Não tirei fotografias. Se o fizesse as imagens que daí resultariam só iriam estragar o momento, de redutoras e simplistas.
Tirei em outros. E neste foi uma grande surpresa quando, à entrada
estava uma caixa com este letreiro:
Entrei am alguns: no Nishi-Honganji, no Koshoji ...
Lugares de culto com belas pinturas, ainda que surpreendentes.
Noutros fiquei à porta ou visitei apenas o exterior e os jardins como, por exemplo, o templo To-ji do sec I.
Num deles podíamos trazer o bilhete da visita como recordação: pintado à mão. Eu trouxe. Foi só esperar que a Senhora que o pintava com muita calma o fizesse.
Percebi que os designados templos, muitos com 500-1000 anos, constituíam também fortalezas, espaços murados que delimitavam vários edifícios (uns de natureza religiosa, outros residências e serviços), jardins e lagos. Eram também espaços políticos de "lords" Japoneses, ou governadores militares que contratavam monges (a maioria budistas) prestigiados e influentes para potenciar a sua influência política e religiosa na região. Num dos templos visitei um edifício que servia como quarto de dormir do "Senhor" local. Uma espaço quadrangular grande e amplo despojado de qualquer mobiliário onde, no centro, se localizava o pequeno quarto constituído por dois quadrados concêntricos com paredes de papel pintado. Para visitar o quarto tive que me descalçar, percorrendo o espaço amplo que os delimitava. À medida que caminhava, devagar, o soalho por baixo dos meus pés fazia um ruído semelhante a um pardal a cantar. Por mais cuidado que tivesse o soalho cantava sempre. Esta era uma estratégia para que ninguém, durante a noite, se conseguisse aproximar do quarto central do "Senhor" em silêncio, sem ser percebido. Soube depois que o soalho era constituído por duas placas de madeira com pequenos cortes que, friccionando uma na outra sob a pressão dos pés, emitia tal som. Este é um belo exemplo da atenção às pequenas coisas, aos detalhes que encontrei nas mais diversas actividades em Kyoto.
Direita? Esquerda? De que lado bate o vento e sopra a chuva?
Segui já não me lembro por onde. Sei que pedalei por ruas largas e avenidas com carros.
Mas, passo a passo, pedalada a pedalada, a sorte levou-me para ruas mais interessantes em que percebia a vida normal afastada de pontos turísticos e de elegantes avenidas e casas ... cenas de um quotidiano não muito endinheirado.
Chovia abundantemente e a visão de um parque com lagos puxou-me para lá. Antecipava a tranquilidade da chuva caindo na superfície dos lagos e nas folhas das árvores. As árvores e os arbustos começavam a florir na Primavera de Kyoto. À entrada uma cena que não antecipei. Ensopados da cintura para baixo, ali andavam estes pares a fotografarem-se mutuamente com a mesma calma, sorrisos e elegância de movimentos como se estivesse Sol e uma brisa suave.
Também eu, sem guarda-chuva, parei por ali e fotografei a superfície dos lagos sem pressa. Uma imagem do Japão que imaginara: colinas cobertas de arvoredo, neblínicas, árvores frondosas e em flor em primeiro plano, pedras e água sob chuva. E uma grande tranquilidade que se abate sobre a paisagem. As pedaladas neblínicas, sobretudo nas serranias da Beira, são-me familiares.
A noite caía. As pedaladas teriam que me levar de volta ao hotel.
Por esta e por aquela rua
Por este e aquele beco. Uns elegantes
outros do tipo onde acontecem cenas de faca e alguidar (nunca me senti inseguro).
Terminaram as pedaladas e o dia em Kyoto. A cidade dos mil templos e das mil pedaladas. À noite, no hotel, encontrei colegas ocidentais que tinham visitado a cidade, alugando carros e contratando guias. Foram ao Nijo Castle, ao Kyoto Imperial Palace, ao restaurante não sei quê recomendado por não sei quem ... Então e tu? Eu? Eu andei por aí a dar umas voltas de bike.
Uau! és uma caixinha de surpresas. Seria como que um sonho pedalar por esses lugares. e conhecer essa cultura tão diferente da nossa. Fantástico!
ResponderEliminarOlá GM. Aproveito umas viagens de trabalho para dar uma pedaladas (o que às vezes não é fácil) e Kyoto foi uma das cidades mais interessantes que visitei.
ResponderEliminarJoão
Obrigada,João, por trazer aqui o Japão.
ResponderEliminarNão estava à espera que fosse tão rápido...
Ainda vou reler com mais calma, mas muito do que conta e mostra aqui vem ao encontro do que eu já pensava deste país tão extraordinário.
Ah e aquela caixa escrita também em português é o máximo!
Maria
Olá Maria,
ResponderEliminarmotivou-me a postar aqui a visita a Kyoto. Levou-me algum tempo. Foram pedaladas na memória pois já lá vão 4 anos. Eu é que lhe agradeço o estimulo.
João
Nuvens ameaçadoras
Eliminare ainda estou
a meio caminho de Quioto
MB
Who cares, anyway?
You love biking and singin'in the rain...
M
Lindo, lindo!
ResponderEliminarBela escolha!
Adoro Umebayashi.
Ele e Sakamoto são os meus compositores favoritos: ouvimos um tema e vêm-nos logo as imagens dos filmes à memória.
Parece que vem aí chuva para o fim de semana, João.
Vai ter que preparar o equipamento do Outono/Inverno.
Mas vai pedalar sur les feuilles mortes...que inveja!
Maria
Olá Maria,
EliminarNa moda ciclista, versão mountain bike, ao contrário de outras modas, há o Outono e há o Inverno. Há pedaladas Outonais sur les feuilles mortes e há as Invernais sobre gelo e contra vento muito frio. Com a chuva os riachos vão tornar a correr pela serra, as neblinas vão encher os vales pela manhã ... Gosto deste tempo.
João