(Serra da Lousã)
As aldeias de xisto são hoje um ícone da serra da Lousã. Hoje, porque há 40 anos eram lugares rurais, com gente e vidas vividas e morridas duramente. Praticamente abandonadas nos anos 60 e 70 do século passado umas são hoje locais turísticos, integradas na rota das Aldeias do Xisto, outras, muito bonitas, foram reabilitadas por pessoas de vilas e cidades próximas (ainda me lembro que aqui há uns anos uma casa de pedra em ruínas nestas aldeias custava 14 contos mas que, com a moda, rapidamente passaram para 2000 contos) para segunda-habitação, e outras ainda (e vou tentar ser polite) são guetos de meninos da mamã da Alemanha e da Holanda que decidiram ser hippies a tempo parcial (ah pois, é que ser caçador -recolector é muita nice mas um cartãozinho de crédito para as emergências dá muito jeito) e escolheram algumas aldeias da serra da Lousã para a brincadeira. Um dia falarei destes tipos com os quais interagi amigavelmente no início mas que percebi que eram uns arrogantes de merda (chateiam-me as pessoas com pensamento pouco plástico que, com um olhar baço, falam como se conhecessem os segredos do Universo e que quem pensa de outro modo é porque ainda não viu a luz e coitados de nós incrédulos só resta recebermos o olhar de piedade deles) e que, sobretudo, transformaram alguns lugares em guetos onde se passam esquemas manhosos e onde não se é benvindo. Por fim, duas ou três das aldeias são lugares em ruínas, abandonados, como é o caso do Franco e das Silveiras.
A aldeia do Franco de cima (nos vales há sempre uma de cima e outra de baixo a de cima fica mais acima e a de baixo ... bom, acho que já se percebeu), de que de que já aqui falei, descobri-a após ter tido umas conversas com um vizinho que era lá daqueles lados e que me contou que, quando novo, ia com o pai pela serra acima, do lado de Vilarinho, e que passavam a ribeira e tal e iam por ali e davam a volta subindo pelo outro lado e lá fui tirando umas pelas outras de modo a fazer um plano para, de bike, me lançar na descoberta do caminho para o Franco.
Ao contrário das outras aldeias da Serra da Lousã, a Silveira de Cima, juntamente com a Silveira de Baixo e a Cerdeira, faz parte de um sub-grupo remoto, afastado de estradas e numa encosta de difícil acesso. No seu apogeu, os nove lugares da Serra da Lousã dividiam-se em 3 sub-grupos, partilhando uma Capela, festas conjuntas e outras aventuras. Os outros são: 1) Candal, Catarredor e Vaqueirinho e 2) Talasnal, Chiqueiro e Casal Novo.
Embora estas últimas estejam na moda, a Cerdeira é mais genuína. Na Cerdeira vive a Kerstin Thomas . A Kerstin é uma escultora Alemã que vive ali com o marido e os dois filhos isolados há décadas. Estes, os filhos, foram colegas e amigos das minhas filhas desde o primeiro ciclo. Cruzamo-nos muitas vezes na estrada da serra, eu de bike e Kerstin na sua mini-carrinha. Olá, Olá. Hei, Hei. Adeus, Adeus. Outras vezes cruzamo-nos no LIDL a bisbilhotar as cangalhadas que por lá há. Nos últimos anos (10?) a Kerstin tem organizado os Elementos à solta- Art meets Nature. Encontro de música, teatro, escultura (peças distribuídas pelos caminhos da aldeia... )... É uma iniciativa surpreendente, belíssima e extraordinária naquele cenário rude e isolado, das pedras, do vento, da água que corre, da luz intensa durante o dia e da escuridão à noite.
Mas, voltando à Silveira de Cima, há registos de, por volta de 1970, haver por ali ainda uma dúzia de habitantes. Poucos anos depois: zero.
Sim, parece que sim.
Ah, lá está! Vista claramente vista.
No BTT fica-se com a impressão que se conquista alguma coisa quando o que se busca não é óbvio e requer "uma certa determinação em pressionar com persistência e energia os pedais da bicicleta, rangendo às vezes os dentes. Em linguagem que se entende, requer força nas canetas. Ter custado chegar ali amplifica o prazer da descoberta.
Não me surpreende isto. Os mecanismos de recompensa no cérebro são bem oleados nas pedaladas. Tem que se pedalar bem pedalada a libertação da dopamina.
Mais umas pedaladas e estava na Silveira de Cima.
Era como se, na curva do caminho, tivesse dado de caras com Machu Picchu. As ruínas e as serranias em volta.
O local era magnífico, sobranceiro a dois ou três vales mas sem imponência desnecessárias, apenas a suficiente para se perceber que aquelas pedras não eram apenas pedras, eram o registo, a memória das pessoas que ali viveram.
que a Francisca do fundo do povo se encontrava às escondidas com o António que morava para o lado dos lameiros aqui nesta loja da tia dela, a tia Jacinta, onde entretanto nasceu uma árvore,
sempre na expectativa da chegada da tia Jacinta que se faria anunciar com o bater do pau nas pedras deste caminho (cumplicidades de mulheres !).
É impressionante que as pedras desta parede parecem estar num equilíbrio instável e, no entanto, a parede mantém-se de pé. Está assim, provavelmente, há 40 anos.
Para ali chegar (e também para de lá sair) tive que fazer uso de uma técnica muito sofisticada a que recorremos no BTT quando tudo o resto falha. Em linguagem técnica há que inverter as posições relativas entre nós e a bike relativamente ao centro da Terra. Isto assim:
Esta na hora de deixar Machu Picchu, quer dizer, a Silveira de cima mas, como a manhã ia adiantada, tive que decidir se continuava a subir ou se, dado o adiantado da hora, descia, tentando atingir a EN236. Uma das leis fundamentais do BTT é que na dúvida sobe-se. Foi fácil a decisão.
À saída dei com isto: alguém colocou uma telha a servir de bica no fio de água que corre entre as pedras
Estava aos 800 m de altitude, subindo até lá em cima poderia descer pela encosta Norte da serra.
Na subida, ao atingir o caminho pedalável, mais acima, dou com estas placas. Bem me parecia que as ruínas da Silveira tinham sido limpas. As Aldeias de Xisto, aparentemente, querem colocar Machu Picchu na rota do turismo.
OK, siga. Até lá acima. Depois desço pelo outro lado. Mas páro com frequência.
É um contraste formidável entre a encosta Sul nua que acabara de subir e a Norte da serra coberta pela floresta.
Daqui abre-se o vale limitado pelo Caramulo e pela Estrela. Imenso
Neste sítios tenho tendência a ficar para ali, parado a olhar.
O tempo flui e eu não dou conta (os físicos nunca mais resolvem esta controvérsia sobre a irreversibilidade do tempo, que chatice).
Até tive tempo para, num rasgo de criatividade ao nível de, por exemplo, um discurso de Cavaco Silva, montar o cenário para a fotografia da sombra a segurar o pau que segurava a bike.
Olhei com mais cuidado e vi o planalto da Estrela nevado, na linha do horizonte, ali ao centro da fotografia.
A certa altura, lá tenho que tomar a decisão: horas de ir por aí abaixo rapidamente.
O caminho era bom
Rapidamente chegaria à Lousã, lá em baixo. Meti-me por um estradão pelo meio da floresta. Estava um cheiro aromático de uma intensidade que esmagava. Raramente senti o aroma dos cedros e abetos tão intenso. Talvez porque te, estado a chover e hoje era o primeiro dia quente e de Sol aberto. Fui atento, na expectativa de encontrar veados mas não os vi nem ouvi. No dia anterior tinha tido um encontro com eles a cerca 10 metros na curva de um caminho, belíssimos, elegantes, um deles, o segundo que se atravessou, era um macho jovem castanho dourado com uma armação formidável. O primeiro não vi bem, com o susto.
Às tantas, uma clareira entre as árvores deixou ver, de novo, o planalto da Estrela ao longe, coberto de neve. Já não me lembrava da Silveira. Aqui era outra encosta, que é como quem diz: aqui há outras paisagens e outras coisas que não podem ser apenas um pano de fundo à memória da Silveira. Há outras coisas para a memória.
Na descida, a imagem do pão de leite com marmelada que levava no bolso estava a desconcentrar-me. Previdente, resolvi parar para o comer, aumentando, assim , a segurança na condução da bike pelos caminhos de calhaus abaixo até à Lousã.
Escolhi um sítio bonito e com boa música (música corrente, por assim dizer) para o pic-nic e, até, num rasgo de criatividade (era o segundo apenas num dia !) resolvi fazer o vídeo do riacho ali ao pé. Uma coisa assim à David Attenborough (ah que delícia ver na Odisseia os programas do David Attenborough ao pequeno almoço às sete da manhã - e a minha mulher a dizer-me que desligue aquilo ou que tire o som porque àquela hora não consegue ver os elefantes ou a migração do gnus ou a epopeia dos pinguins ou as aranhas da Amazónia ou a estratégia das orcas para apanhar a sardinha ...), com a câmara a forçar a passagem entre os arbustos.
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