Vários dias em Lisboa com reuniões de manhã à noite. Num dos almoços de trabalho (em mesa redonda) o parceiro do lado, sabendo, vá-se lá saber como (eu só falo de bicicletas e montanhas uma vez ou duas por hora), que eu gostava de pedalar pelas serranias, pediu-me sugestões sobre calções para ciclismo. Ele também pedalava. Quando demos conta os outros à mesa (que discutiam assuntos muito técnicos, profissionais e importantes relacionados com as reuniões ) olhavam-nos de soslaio; é que estávamos a discutir programas de máquina de lavar roupa para usar com equipamento de BTT (programa para roupa suave, claro) e detergentes (os de sedas e lãs, obviamente) e temperatura a 30 graus C no máximo e centrifugar a não mais que 100 rpm. Coisas elementares e úteis.
Às tantas, perguntou-me: e como é pedalar lá pela serra?
No hotel, à noite, comecei a dar-lhe uma resposta.
Então, cá vai um "flavour".
Floresta acima por um belo caminho:
Uma vez lá em cima, no planalto aos 950 m, as vistas para Sul, por sobre o vale da ribeira de Alge, encontram-se pelo túnel que a copa das árvores faz na zona da Catraia da Ti Jaquina. É um deslumbramento, ir por ali fora, no túnel escuro e, às tantas, os horizontes abrem. As lonjuras ali à nossa frente. É uma transição belíssima. Tantas vezes ali passei e como que reprogramo o meu cérebro para a surpresa. Vou por ali, sei o que vai acontecer mas, ao mesmo tempo, estou preparado para me surpreender como se fosse a primeira vez. Na minha cabeça como que há uma parte do cérebro que prepara a surpresa para uma outra parte. Não queria especular, afirmando que há duas mentes na minha cabeça (ou mais, e, às vezes, como que uma assistindo na plateia ao que se passa no palco da outra - e quase que aposto que isto se passa com muitas pessoas).
Pela EN236 neblínica. Gosto destes dias. A realidade à nossa volta é menos previsível. Por regra, pedalo serra acima com os sentidos ao rubro. Sobretudo se pedalar por caminhos. Os encontros imediatos do terceiro grau com veados e javalis ocorrem com mais frequência e a distâncias em que quase sentimos o bafo quente que exalam.
Aqui, a subida neblínica pela estrada nacional que liga Lousã a Castanheira de Pêra, atravessando a serra.
Em "cranks". Na expectativa de, uma vez saído do túnel das árvores, ver clareiras de luz no céu.
Como é normal nas minhas pedaladas, primeiro sobe-se, depois desce-se. É assim. Raramente pedalo em plano, excepto nos planaltos das serranias, geralmente em cumeadas que separam as lonjuras de Norte das de Sul e as de Este das de Oeste. Aí sim, de resto ou subo ou desço. Deve faltar-me o gene dos planos.
Já várias vezes tinha visto o caminho. Mais ou menos limpo (às vezes caminhos antigos na serram fecham com a vegetação reclamar o terreno). Uma zona onde nunca vi ninguém mas que parecia ir dar directamente ao cimo da Aldeia do Candal. Dos 1000 aos 600 m num pulo. Primeiro uma floresta que deve ser um refúgio para animais mais esquisitos, os que não querem ser incomodados. Depois um corta-fogo bem inclinado. Vou, não vou? Pronto vou só um bocado e depois logo vejo.
Correu tudo bem, fui indo, uma bela vista sobre o vale por entre as árvores, até ter encontrado o juvenil javali parado no meio do caminho a tentar perceber quem era eu.
Ia por ali fora e pareceu-me que qualquer coisa estava no meio do caminho. A PDI tirou-me acuidade visual e estava indeciso entre um tronco, uma pedra ou um pequeno javali. Parei. Percebi que era um jovem javali. Olhou-me. Depois de alguns segundos deu meia volta nas calmas e foi-se embora caminho abaixo, exatamente por onde eu queria ir. Os progenitores não deveriam andar longe. A minha descida foi abortada.
(a câmara GoPro usa uma grande angular e, por isso, o javali, que estaria a uns 10-20 m, parece muito mais afastado. Está no meio do caminho - uma pequena mancha preta - e aos 1m49s percebe-se que se move)
Além destas, há mais mil maneiras de pedalar pela serra. Seguem dentro de momentos.
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