(serra da Lousã)
Sábado de manhã, a caminho do mercado, olhei para a serra e ... tenho que me despachar ... só pensava em pedalar pela serra acima ... pela neve.
Vinte minutos depois, já tinha a molhada de grelos, a couve, os coentros, as laranjas e as maçãs bravo esmolfe, as cebolas, umas batatinhas com belíssimo aspecto, os figos secos e uns sargos de mar mais uma posta de corvina. Faltava o bolo de Ançã e uns pães de leite mas na zona da padaria estavam pelo menos umas 5 pessoas. Ora, se cada uma fosse aviada em 3 min de conversa (pois, é que o mercado é um local de convívio) isso daria mais uns 15 min. Como a raposa que não chega à latada das uvas pensei: faz bem quebrar a rotina do pão com marmelada. E corri para casa.
Tinha que subir pela N236. Atolar-me-ia na lama e na neve caso subisse por caminhos de terra. A bike não está com pneus adequados para a neve.
A neve apareceu logo à saída da vila, no vale da ribeira de S. João. A GNR tinha colocado uma placa de trânsito proibido para a serra mas os carros passavam, borrifando-se para a placa.
Acelerei na expectativa das pedaladas lá mais para cima
mas, logo a seguir, parava novamente para tirar fotografias. Era o plano detalhado do costume: arranca-se por ali acima a pedalar e depois ... logo se vê. Perfeito. Pelo menos tem resultado ... a maioria das vezes.
Estava a parar de 200 em 200 m. Aqui, onde páro muitas vezes, ao olhar a paisagem para os lados do Trevim (coberto por nuvens) atravessou-se-me na memória uma série televisiva de há muitos anos, Twin Peaks, onde me lembro de ver paisagens parecidas. E pronto, os Km seguintes foram feitos com a música que Angelo Badalamenti compôs para a série, com aqueles sons da guitarra baixo a ressoarem na minha cabeça, pooooong, pong, poooong.
Isto está a ficar nostálgico. Mas que esta paisagem lembra Twin Peaks, lá isso ... A memória, sempre a memória. Sabe-se hoje que há uma base física para a memória mas, em todo o caso, a memória é um caso sério para o entendimento do cérebro.
E mais uma fotografia com a bike para "memória futura" (como se a memória não fosse sempre para o futuro).
Quando cheguei ao Candal, a 11 km da vila e a única aldeia serrana na N236, a neve tornara a paisagem na que, provavelmente, era a de há muitos anos atrás, quando os grandes nevões eram mais frequentes. Eu conheço o Candal verde e amarelo e laranja e castanho, mas não branco.
Muitas árvores não aguentaram o peso da neve. Este é um aspecto crítico para as árvores; o peso da neve. As árvores vergam e partem. As mimosas em flor curvavam-se até ao solo.
Ali, debaixo de uma árvore, encontrei um sítio mais ou menos limpo e sem neve para tirar uma selfie e me incluir na história
É curioso, conheço tão bem esta estrada, tantas vezes aqui pedalei e, no entanto, a neve trasnformava-a, fazendo com que perdesse os pontos de referência (uma pedra, uma árvore, outra coisa qualquer) que, sem ter anteriormente dado conta, me permitia inconscientemente identificar os locais. A estrada que tão bem conheço com a neve transformara-se num local novo.
As árvores partidas e caídas na estrada, sob o peso da neve, também ajudavam ao irreconhecimento (que palavra é esta?!)
Alguns carros, apesar das árvores caídas, insistiam em furar por ali fora. Furavam, furavam até que, como nos filmes da máfia em que o carro da vítima é bloqueado por outro dois, caía uma árvore à frente e outra atrás, emboscando-os.
Até de bike era preciso uma certa ginástica, quanto mais de carro!
A partir daqui, o mundo passou a preto e branco
A preto e branco e frio
A preto e branco e frio e belo
Há que reconhecer, todavia, que a protecção impermeável do meu capacete dava um leve toque de .... "cromaticidade" ao ambiente (a pose, de pernas abertas à futebolista foi completamente espontânea, não foi ensaiada).
Agora, ao ver as fotografias, aqui na sala à lareira, sei que falta qualquer coisa. Acho que dão a impressão de um ambiente estático e "soft", tranquilo. Nada disso, quando ali, enquanto pedalava, era tudo dinâmico e rude e mais não sei bem o quê. Era tudo muito intenso.
Ouvi várias vezes árvores a partir e a tombar. Vi até duas a cair a poucos metros da estrada. O ruído foi assustador. Começava estridente e intenso, depois percebia-se que os ramos batiam nas outras árvores e partiam-se os ramos uns nos outros e tudo acabava com um som cavo da árvore a embater no chão.
Fui subindo, já não havia carros. Tinham passado uns jipes dos baldios e dos bombeiros. Nunca tinha feito um "single track" destes. Evitava a todo o custo meter os pés na neve pois, apesar da protecção de neoprene que levava sobre os sapatos, a neve molharia os pés por baixo, pelos encaixes.
A certa altura, vi uma árvore que, curvada sob o peso da neve, parecia um cogumelo gigante
É que estava tudo tão bonito!
Muitas árvores não aguentaram o peso da neve. Este é um aspecto crítico para as árvores; o peso da neve. As árvores vergam e partem. As mimosas em flor curvavam-se até ao solo.
Ali, debaixo de uma árvore, encontrei um sítio mais ou menos limpo e sem neve para tirar uma selfie e me incluir na história
É curioso, conheço tão bem esta estrada, tantas vezes aqui pedalei e, no entanto, a neve trasnformava-a, fazendo com que perdesse os pontos de referência (uma pedra, uma árvore, outra coisa qualquer) que, sem ter anteriormente dado conta, me permitia inconscientemente identificar os locais. A estrada que tão bem conheço com a neve transformara-se num local novo.
As árvores partidas e caídas na estrada, sob o peso da neve, também ajudavam ao irreconhecimento (que palavra é esta?!)
Alguns carros, apesar das árvores caídas, insistiam em furar por ali fora. Furavam, furavam até que, como nos filmes da máfia em que o carro da vítima é bloqueado por outro dois, caía uma árvore à frente e outra atrás, emboscando-os.
Até de bike era preciso uma certa ginástica, quanto mais de carro!
A partir daqui, o mundo passou a preto e branco
A preto e branco e frio
A preto e branco e frio e belo
Há que reconhecer, todavia, que a protecção impermeável do meu capacete dava um leve toque de .... "cromaticidade" ao ambiente (a pose, de pernas abertas à futebolista foi completamente espontânea, não foi ensaiada).
Agora, ao ver as fotografias, aqui na sala à lareira, sei que falta qualquer coisa. Acho que dão a impressão de um ambiente estático e "soft", tranquilo. Nada disso, quando ali, enquanto pedalava, era tudo dinâmico e rude e mais não sei bem o quê. Era tudo muito intenso.
Ouvi várias vezes árvores a partir e a tombar. Vi até duas a cair a poucos metros da estrada. O ruído foi assustador. Começava estridente e intenso, depois percebia-se que os ramos batiam nas outras árvores e partiam-se os ramos uns nos outros e tudo acabava com um som cavo da árvore a embater no chão.
Fui subindo, já não havia carros. Tinham passado uns jipes dos baldios e dos bombeiros. Nunca tinha feito um "single track" destes. Evitava a todo o custo meter os pés na neve pois, apesar da protecção de neoprene que levava sobre os sapatos, a neve molharia os pés por baixo, pelos encaixes.
A certa altura, vi uma árvore que, curvada sob o peso da neve, parecia um cogumelo gigante
Foi o local escolhido para uma paragem sem ensopar os pés na neve. Estava a chegar aos mil metros de altitude. A coisa estava a começar a ficar difícil. Tirar as luvas para as fotografias arrefecia e molhava as mãos. Calçar de novo as luvas não era como beber o gin que neste momento tenho ali ao lado e que vou bebericando. Os pés também já estavam molhados. A neve nos "cleats" dos sapatos (quando parava era inevitável não pisar a neve) quase impedia o encaixe nos pedais (tinha que bater com força no pedal com o cleat para sacudir a neve). Algumas vezes já pedalava sem conseguir encaixar um dos pés.
Comi a banana que ia no bolso de trás, enquanto ainda tinha sensibilidade para abrir fechos nos bolsos traseiros do blusão.
Fiz contas à vida e, com a determinação e a estupidez que me caracteriza, decidi continuar e subir até ao planalto.
Tirando a protecção do capacete, obviamente.
Obviamente.
Enquanto as árvores com folhas vergavam as outras, as nuas, mantinham, na medida do possível, a postura, estoicamente.
A neve fazia uns muretes ao longo dos ramos e ficava tudo assim muito bonito.
Depois, os carros deixaram de passar, tornando as pedaladas por ali em isolamento mais interessantes.
Estava a chegar ao planalto. A neve atingia uns 30 cm
Não tinha pneus para andar ali na neve. Até no single track já patinava. Ainda me passou vagamente pela cabeça como seria, na volta, descer por ali, sem tracção.
O mundo a preto e branco passou a gradientes de cinzento. Começara a instalar-se uma neblina que tornava tudo à volta difuso. Parecia que tinha os óculos embaciados.
Estava a uns 500 m do planalto, do fim da subida.
200 m.
A tempestade de neve da noite anterior foi violenta. Via-se bem pelos cedros da floresta, pintados de branco de um lados do tronco.
Às vezes, olhamos para a frente e fica sensação de que vamos para a zona da neblina e que visibilidade vai diminuir mas, às tantas, olhamos para trás
e percebemos que afinal já lá estamos, imersos na neblina.
Tudo belíssimo.
Cheguei. Tenho fotografias desta parte da floresta no Outono com os amarelos, os castanhos, os laranjas. Por exemplo, aqui.
Encostei a bike.
e fiquei por ali olhar à volta
e para cima
A certa altura, a luz baixou, começou a ficar o céu de chumbo
abateu-se uma "grande calma". Era como se estivesse a ver um filme e, de súbito, as imagens começassem a passar em câmara lenta.
Eu sabia o que era. Lembro-me da sensação de quando era mais novo, na serra da Estrela. Vinha aí um nevão.
A neve começou a cair em pedaços pequenos mas, rapidamente, começaram a cair flocos grandes. Ah ! à tanto tempo que não vejo um nevão destes. E eu no meio dele.
Olhei para a bike. Está aqui muita neve. Vai cair muita mais. Horas de voltar.
O telemóvel desligou-se (soube mais tarde que, aparentemente, os iphones são muito sensíveis ao frio). Enfiei o balaclava, calcei o segundo par de luvas, fechei todos os fechos e peguei na bike.
Olhei para o céu e via riscos de flocos na direcção dos meus olhos. À volta a paisagem estava ainda mais desfocada pela cortina dos flocos de neve. Andava por ali sozinho. Não tinha visto ninguém e já não passavam carros há muito tempo. Ao mesmo tempo que achava aquele momento extraordinário pensava no single track (rodados dos carros na neve) que rapidamente iria desaparecer e que, portanto, tornaria a descida muito difícil.
Ainda fiquei por ali uns instantes. Estava ali no meio do nevão. estava muito frio. Sentia-me bem. Havia ali um entendimento da essência das coisas difícil de descrever.
A bike estava OK e isso dava-me segurança. Comecei a descer muito devagar (mais lentamente que na subida), a bike entrava facilmente em peão. Nunca fui ao chão. Os primeiros km foram difíceis. A neve colava-se aos óculos. Baixei os óculos para a ponta do nariz, tentando que me protegessem do spray das rodas. Levava lentes de contacto e a falta dos óculos obrigava-me a fechar os olhos com frequência. Parei duas ou três vezes para sacudir a neve do casaco. A neve colava-se à bike e ao casaco. O frio nos dedos das mãos e dos pés passou a dor. Mais abaixo; à cota dos 700 m já não nevava. Foram 18 km a descer.
Amanhã vai estar bom tempo, a neve vai manter-se mas o acesso será muito mais fácil e poderei ir até mais lá acima, ao Trevim - pensei.
E fui. Mas isso fica para outro post.