domingo, 28 de outubro de 2018

"O baloiço" do cimo da serra

O Baloiço da Serra da Lousã
(Outubro 2018)


Dantes eram as aldeias de xisto. Antes destas os poços da neve. Agora, o baloiço. O baloiço está a tornar-se no ex-libris da serra da Lousã.




Olhe fáxavor, como é que se vai para o baloiço? Ouço isto com frequência quando pedalo na EN236 ou em estradões por onde alguns artistas se metem de carro. Não respondo a estas perguntas de modo directo; "Olhe segue por ali e, depois, na segunda à esquerda, ...". Não, primeiro tento dar uma ideia tridimensional/orográfica da serra;"Neste momento sobe o lado Sul da serra e o baloiço fica nesta direcção (aponto com o braço). Ora, o baloiço fica no planalto e, portanto, terá que continuar a subir. Uma vez no planalto, apanhando a EN236 - e olhe, é fácil perceber porque, se reparar bem, os soutos de castanheiros e carvalhos marcam o fim da subida e, aliás, nesta altura do ano estão belíssimos. Mas voltando ao caminho, uma vez lá em cima, porque a orientação da EN236 é Oeste-Este, terá que ir atento ao cruzamento para o Trevim, para Norte, num local em que a estrada é ladeada por pinheiros grandes e altos e donde se avista o vale da ribeira de Alge, Uma vez aqui, se tiver tempo, páre o carro e meta-se por uma caminho a Sul que encontrará paisagens muito bonitas e, com alguma sorte, se for em silêncio, pode encontrar veados ...

Quando noto os olhos dos meus interlocutores a piscar, a boca num esgar de sorriso forçado e a repetir "obrigado, obrigado, obrigado" percebo que já exagerei e que me estão despachar e a coisa fica por ali. Em situações raras, sobretudo com estrangeiros que andam por ali a passear, fico para ali meia hora a falar sobre a serra. Eles perguntam, ficam curiosos e eu vou por ali fora em roda livre, descrevendo paisagens, pintando cenários do que podem encontrar, incutindo curiosidade para explorar isto e aquilo ... em suma, uma conversa impressionista.

Portanto, aqui fica o percurso (comentado e ilustrado) para o baloiço a partir da Lousã. Quando me perguntarem, aos mais despachados, indico o endereço da net.
Vila da Lousã, à saída, junto parque: Km zero.  Apanhar a "estrada da serra", a EN236, em direcção a Castanheira de Pêra, a vila que fica do outro lado da serra. Após 18Km atinge-se o planalto aos 900 m. Uma curva à esquerda marca o fim da subida:



Um pouco antes, durante a subida, e olhando para trás, pode ver-se o sítio do baloiço. Mas há que dar uma grande volta até lá chegar: a mancha amarela na base do Trevim (o cume da serra aos 1200 m de altitude) que se encontra coberto por nuvens.

Aos 22 km, antes de começar a descer para Castanheira de Pêra, deixar a EN236 e cortar à esquerda para o Trevim. O local está assinalado com placas. Não há nada que enganar.
Como é costume nas serranias da beira, há histórias e lendas que se contam sobre a serra. Quem nunca ouviu falar de lobisomens e fadas da floresta. Ali, naquele sítio, dizem que, de vez em quando, em dias de céu baixo, aparecem por ali dragões de Komodo. Crendices!. Lendas sem qualquer fundamento. Já por lá passei mil vezes e nunca vi nenhum. Bom, mas, portanto, quando se avistarem as placas, e caso não esteja nenhum dragão de Komodo a interromper a estrada (!!!), é virar à esquerda para o Trevim.


Ali:




A estrada para o Trevim está em mau estado mas é bonita. Em parte é ladeada por grandes abetos que


à vezes ficam esparsos e deixam ver o cume, o Trevim (o cone no horizonte, lá atrás)


Nalguns sítios o piso está muito mau e o melhor é não tirar os olhos da estrada. Para quem circula de carro, obviamente. A pé ou de bike pode olhar-se a floresta que começa a abrir sobre o imenso vale e, às vezes, há surpresas; o contorno das árvores sobre a luz do horizonte, um vulto (pássaro, veado ?) que passa, a brisa que sopra do vale e, se a imaginação tiver asas, quem sabe, talvez até uma fada da floresta ...



Aos 24 km os horizontes abrem. Avista-se o Trevim em frente e, a Sul (à esquerda), o vale da Beira até à serra do Caramulo.



O baloiço é ali em baixo à esquerda, em frente à última eólica que se avista daqui. À esquerda antes de começar a subida final para o Trevim. Já agora, tendo aqui chegado, vale a pena subir mais uns 3 Km e visitar os Poços da Neve.



Um videozinho feito em dia de vento com o dedo no baloiço (o som é o da ventania)




O baloiço. No baloiço a sensação é a de baloiçar sobre o vale 800 m mais em baixo, sobre o abismo.











Estava na sessão fotográfica e, de súbito, nuvens vindas de Sul e puxadas a vento (já tinha dado por elas porque as de Sul, ao contrário das de Norte, são imprevisíveis mas fiz de conta que não iria acontecer o que aconteceu) apareceram sobre o Trevim,


trazendo uma chuva dura e fria que batia na face com a força de pedras de granizo. Arrefecera bastante. Lá fiz a ginástica acrobática do costume para tentar vestir o impermeável sob aquela ventania e chuva. É quase tão extraordinária a facilidade com que se veste um impermeável em casa como a dificuldade sob temporal. Enfia-se a primeira manga e, depois, por tentativa e erro, tenta acertar-se na segunda que, sob a ventania, parece uma vela rasgada que ora se enrola ao pescoço ora rodopia em todas as direcções. Entretanto, vai-se levando com a invernia em cima. Mas, quando, depois de muitas tentativas e erros, se corre o fecho do impermeável é como se encontrássemos um abrigo numa cabana com a lareira acesa. Ali estamos sob a chuva e a ventania mas a sensação é de conforto. Entretanto, o baloiço baloiçava empurrado pelo vento. Era hora de pedalar dali para fora.

Coordenadas do baloiço tiradas do Google Earth:

40° 04' 37.40'' N
8° 11' 29.71'' W
elevação 1001 m

sábado, 20 de outubro de 2018

O musgo húmido e luminoso ou a fluorescência da clorofila

Outubro 2018
Serra da Lousã - vale da ribeira da Fórnea

Richard Feynman costumava contar que, um dia, alguém o provocou, dizendo que ao buscar explicações para os fenómenos naturais perdia a beleza e o encanto inerentes a esses fenómenos. Ao contrário, disse ele, há uma beleza e elegância na percepção e no conhecimento dos mecanismos que suportam fenómenos naturais. Também acho.

Após as primeiras chuvadas, na floresta para os lados da ribeira da Fórnea, havia inúmeras teias de aranha rentes ao chão sobre o musgo intensamente verde. O Sol andava escondido mas, de vez enquanto, projectava raios intensos por entre as grandes árvores, atingindo o chão e iluminando o musgo. Belíssimo.
A clorofila, nas folhas das árvores e no musgo, utiliza a energia da luz do sol para sintetizar moléculas que nos são muito úteis (por exemplo, oxigénio). Sob a luz do Sol, a clorofila excita-se momentaneamente e, ao regressar ao estado fundamental, além de passar a energia a outra molécula de clorofila, pode, quando a luz do Sol é muito intensa, também emitir fotões (luz). Isto é, a clorofila é fluorescente. As folhas verdes além de reflectirem a luz podem também iluminar-se! Belíssimo.







Um fiozinho de luz no musgo desenhava o contorno dos troncos das árvores.


As teias da aranha. Belíssimas. Mas como é que se formam as teias? Por exemplo, como é que se forma uma teia que atravessa um rio ou de um ramo para outro a vários metros de distância? Aprendi há pouco tempo qual é a estratégia usada pela aranha. A aranha tem que sintetizar uma proteína para fazer o fio (a seda) e, simultaneamente, lançá-lo à brisa, esperando que atinja um suporte. Feita a primeira ponte, pode então começar a tecer o que falta. A aranha precisa da brisa para lhe soprar a seda! Se a coisa corre mal a aranha, muitas vezes, recolhe o fio de seda e come-o - não pode desperdiçar a proteína. Belíssimo.



À saída, isto é, ao iniciar a subida, o céu estava enigmático. Prenúncio de chuva, de Sol ...?



Subi a serra pelos caminhos do vale da Fórnea. Esperava encontrar a ribeira e os riachos caudalosos  (as chuvas caíram nestes dias) mas apenas  um fiozinho de água, tímido e hesitante, dava uns ares de que alguma coisa por ali corria. Nas partes mais sombrias o chão molhado e pesado dificultava as pedaladas mas apenas isso. Hei-de vir ver os riachos furiosos, rasgando a floresta. Hei-de vir, um dia destes.



sexta-feira, 19 de outubro de 2018

O dia tem que começar de alguma maneira

Outubro 2018
Serra da Lousã - Vale da Ribeira de S. João


como, por exemplo, a pedalar nestas mist covered mountains that are a home for me (many  thanks, Maria).



Bem que podia, e vinha mesmo a calhar, colocar aqui o Mark Knopfler a fazer gemer e a rasgar a guitarra mas, há pouco, durante um intervalo, passaram-me pelos ouvidos estas músicas. Indeciso sobre qual delas aqui colocar, resolvi, num rasgo de extraordinário discernimento, pôr as duas.


Tragédia e tristeza à parte (a música é alusiva ao golpe de estado que derrubou Salvador Allende no Chile em 1973 e implantou a ditadura) uma do mestre Argentino.

Chove em Santiago - Astor Piazzola (violino de Antonio Agri)



A outra é dos anos em que descobri que havia música para além do António Calvário e da Madalena Iglésias.
Genesis - Firth of Fifth (e, ao 5min 45 s, entra, sem darmos conta, a guitarra se Steve Hackett) do album Selling England by the Pound


A primeira nada tem a ver com o que se passa no Brasil, qué isso cara,  e a segunda nada com o Brexit, obviously!

terça-feira, 16 de outubro de 2018

Videozinho na floresta depois da Leslie

Domingo, 14 de Outubro de 2018
Serra da Lousã


A Leslie, tempestade tropical, passou ao largo da Figueira da Foz, a cerca de 60-70 Km em linha recta da floresta de coníferas aos 800 m de altitude na encosta NW da serra da Lousã. A noite de Sábado foi tempestuosa. As árvores na encosta da serra, agitadas num turbilhão caótico, produziam um ronco um pouco mais grave e mais intenso do que é habitual em noites de vendaval e invernia. Tinha lá estado no início da tarde; uma ventania forte instalara-se sob céu azul e Sol aberto.

No domingo pedalei de novo serra acima até ao mil metros para, depois, descer pela floresta. Ninguém. Nenhum vento, uma neblina pouco densa e uma claridade que vinha de um Sol difuso que se punha compunham um ambiente tranquilo.



E estava mesmo à espera ... Quando atingi o planalto ao mil metros, mal saí da EN236 e entrei nos caminhos, atravessando um pinhal de pequenos pinheiros, numa zona em que há clareiras que permitem ver todo o vale ... lá estavam. Primeiro vi dois. Logo ali, 20 m à minha frente. Viram-me e afastaram-se, correndo, mas sem o ar assustadiço e atabalhoado com que muitas vezes fogem. É extraordinária a velocidade, a elegância e a graça com que os veados saltam e se movem por entre arbustos e pedras. Jovens e belíssimos. Logo a seguir um outro. Acho que era uma fêmea.
Desci rapidamente por um estradão. O Sol a baixar dispersava a luz sob as nuvens em amarelos e laranjas.



Não percebi porque raio andaram para ali a cortar cedros (como aquele que se vêem lá atrás) àquela altitude.



Cheguei à floresta de coníferas. Felizmente, apenas uma árvore aqui e outra ali caídas e partidas ao meio. A maioria com muitos ramos partidos. O chão pejado de ramos e folhas. Pedalei pelo grande estradão que atravessa a floresta. Fiz um videozinho. Está uma bela merdice mas é o que se arranja, pedalando só com uma mão no guiador da bike, o telemóvel na outra e tentando evitar os obstáculos sem dar com os quatro costados no chão.




domingo, 7 de outubro de 2018

Kyoto. Cidade do mil templos e das mil pedaladas

Kyoto
Março de 2014

A Cidade dos mil templos. Fundada há 2000 anos e capital imperial do Japão durante metade desse tempo. Actualmente um dos principais centros científicos/académicos do Japão. Cosmopolitismo e tradição interligados. Os Japoneses misturam as coisas, desde a arquitectura aos costumes, de um modo que a um Ocidental distraído parece aberrante. Custou-me perceber que o segredo está nos detalhes, nas pequenas coisas.

banda sonora introduzida pós-post: 

(In the mood for love - Shigeru Umebayashi)


Um dia por minha conta depois de vários lá no complexo do International Conference Center, um edifício monstruoso rodeado por lagos e jardins muito belos onde em 1997 foi assinado o protocolo de Kyoto sobre alterações climáticas baseadas em evidências científicas (já lá vão mais de 20 anos e continuamos à deriva num ciclo vicioso de consumismo e aparente bem estar a toque de caixa do mantra elevado à categoria de inquestionável: "crescimento económico").
Há ali a impressão, nos lagos e jardins rodeados de colinas (como tive mais tarde nos templos que visitei), que o tempo corre mais devagar. E, pensando agora nisso, parece-me que o despojamento que se encontra nos jardins (então os jardins Zen !), na paisagem e nos templos (sem show offs) nos faz pousar o olhar devagar em cada detalhe, dando a impressão da dilatação do tempo.



E o dia começava depois de uma noite com jantar oferecido e "abrilhantado" por Gueixas que, com muito talento, tocavam, cantavam, dançavam e teatralizavam cenas da vida japonesa. Muito bonito. A condição das Gueixas nada tem a ver com prostituição (uma ideia comum no Ocidente) mas com arte, cultura e tradição.

(com o Nokia fraquito era difícil tirar fotografias de jeito)

Comi por lá uma sopa (no banquete oferecido) que toda a gente achou fantástica e eu, que me mando de cabeça para experimentar as coisas mais esquisitas, achei uma ideia idiota: sopa com gotículas de ouro. Pequenas gotas de ouro a boiar no caldo ! Ainda estive para explicar a quem estava fascinado com aquilo que o ouro não seria absorvido no intestino e que sairia no dia seguinte pelo outro lado da canalização. Dado o enlevo dos que sorviam a sopa e da elegância do local, abstive-me de fazer comentários.


Uma dia que começou com Sol aberto em ruas largas e templos e terminou com chuva em jardins e vielas.
Kyoto é uma cidade moderna, grande, com um sistema de metro extremamente eficaz (quer dizer, depois de começarmos a perceber qualquer coisa sobre os caracteres japoneses pois não há sinalização em qualquer outra língua). Para mim a maneira mais fácil de me orientar era habituar-me à música das palavras. Para ir para o Centro de Congressos, em Kokusai Kaikan, entrava em Shiyakusyomae e mudava em Karasuma Oike. Já conhecia a música: Kokusai Kaikan, Shiyakusyomae, Karasuma Oike com vogais fortes e abertas, com acentuação na última sílaba. Esta acentuação na última sílaba (por exemplo, Kyoto lê-se kyotÔ) dá força às palavras e determinação ao discurso em japonês. Quase que falam como se insultassem mas, ao contrário, funciona como uma força para a interacção que se pretende.


Mas o dia era para pedaladas.
Mochila e mapa no cesto da bike alugada no hotel. Hey that's my bike !


O meu plano era o costumeiro: um sítio ou dois de referência e depois logo se vê. Perguntei no hotel sobre o templo Rokuon-ji e o seu Kinkaku (pavilhão dourado, do qual tinha visto fotografias).  Ah, bem, pois o templo fica na zona Noroeste numa colina a cerca de 20 km - disse-me o tipo no hotel, olhando-me cose esperasse a minha desistência. Quer que chame um táxi?, acho que esteve quase a perguntar.  Ora, 20 km numa cidade com orientação por mapa em papel aberto à frente do guiador é muito mais fácil do que sair de um oásis no Saara e dar com o próximo.
Sigo pela Oike, cruzo 4 grandes avenidas, entre cada uma há cerca de 10 quarteirões e subo para Norte na Nijo. Nada de especial.


Apanhei a grande avenida Oike logo ali. Carros, muitas pessoas, semáforos, cruzamentos e, no entanto, pedalar por ali era tão seguro como um passeio à beira rio; os peões davam prioridade aos ciclistas ! Avenidas bem organizadas: peões por ali, bicicletas por aqui e carros por além.




Mas, a mesma fluidez e segurança se sentia em ruas secundárias nos bairros que atravessei.


Cheguei a Rokuon-ji.  Prendi a bike num estacionamento para bikes. Percebi que nos últimos km tinha saído do centro da cidade e que tinha subido uma colina suave. Começara a ter vistas para montes cobertos de árvores na periferia da cidade.


Na entrada, um desenho. Muita gente (japoneses sobretudo) a visitar o templo. A localização do pavilhão dourado (à esquerda, no lago) era óbvia. Para além disso, WC era o único local assinalado que entendia (merecedor também de uma visita, seguramente, pois a massagem permanente - digamos assim -  do entre pernas no selim provoca sensações sobre as quais não me vou adiantar, referindo apenas que, entre elas, está a da micção).


Kinkaku, o pavilhão dourado no meio do lago. Não se pode visitar. Muito bem, pensei. Nós por aqui temos a mania que tudo é visitável e devassável por hordas de turistas e fotografável e facebookável. Agradou-me aquela reserva. Não sou um tipo religioso mas se o pavilhão é usado por monges para meditação pois então os turistas só vão perturbar. Um templo budista Zen do século XIV ou XV. Dourado porque revestido por uma película de ouro.
Às tantas, por entre as árvores, na curva do caminho: Kinkaku. Silêncio. Quero dizer, para além do som da água, das aves e do vento, não se ouviam vozes em som alto, apesar dos vários visitantes (dos templos mais visitados no Japão) que por ali andavam, desde crianças a idosos, passando por ciclistas!




Contornei o lago e não percebi se o acesso ao pavilhão era por ponte ou por barco.


Espreitei os templos mas não entrei. A área murada era extensa e havia vários templos ligados por carreiros e jardins. Ao longo dos séculos vários templos tinham sido adicionados ao complexo, outros desaparecido em incêndios.

À saída, resolvi continuar pela periferia da cidade, rente às colinas cobertas de arvoredo. E ainda bem porque dei com um templo, o Oubai-in, que, não tendo a exuberância do anterior, foi onde me deixei andar sem pressas, deambulando e descobrindo recantos, pequenos detalhes, como se lá morasse e não estivesse apenas de visita.


O Oubai-in.
À entrada, estava este jardineiro.


Levei uns minutos para perceber que, com uma elegância e delicadeza extraordinárias, como se fosse um samurai, manuseava uma foice e uma espátula em miniatura para cortar algumas pequeníssimas ervas que, pensei eu, deveriam ser consideradas invasoras. Estive ali uns 20 minutos a olhar para ele - que se agachava ou sentava - e nem uma vez ele olhou para mim. Aproximou-se, sem sequer levantar a cabeça, olhar fixo no chão atento ao seu trabalho. Acho que nem deu conta que eu ali estava, tão concentrado estava em cortar os pequenos pedúnculos de uma erva.


Percebi que era um trabalho muito importante. Não o seria no meu país, nem no resto da Europa. Ali é.


(as ervas cortadas eram colocadas na caixa à sua frente)



No interior não havia o apelo do registo em fotografia do que ia vendo, experimentando, saboreando ... Mas, em todo o caso, ainda tirei duas ou três.



Os edifícios eram ligados por passadiços de madeira, sobre os jardins.  De vez em quando, havia algumas pessoas sentadas por ali, nas pedras ou nos alpendres, em silêncio.






Em dias de chuva, como começara a ser o caso, era possível circular abrigado sobre os alpendres. Fiquei por ali muito tempo.


Dois templos vistos, faltavam mil novecentos e noventa e oito. O céu pôs-se sombrio, a fome começou  instalar-se e virei para Sul, saindo da periferia de Kyoto e começando a entrar na cidade. Às tantas vejo uma pequena casa de madeira, ar modesto mas muito bonito, com um pequeno alpendre decorado com vasos de flores e uma mesa de madeira. É seguramente um sítio para comer, pensei. A mesa cá fora é o sítio ideal. Encosto a bike e sento-me ali. Que comida boa! Já tinha experimentado o sushi e o sashimi em restaurantes bons. Um dos meus preferidos era perto do hotel. Algumas mesas e um longo balcão onde a maioria dos clientes (Japoneses, não vi por lá ocidentais) se sentava. À frente de cada lugar ao balcão havia uma pedra e uma colecção de pequenos frascos com molhos. A partir daí estávamos nas mãos dos cozinheiros que do outro lado do balcão à nossa frente iam preparando a comida, metendo as mãos em grandes panelas fumegantes, enrolando e espalmando até que nos colocavam (sem pedirmos) o conteúdo das mãos na pedra à nossa frente. Eu ia provando o que me punham à frente (sushi e sashimi e outras coisas) sem saber do que se tratava. Gosto destas experiências. Uma vez satisfeito, era só levantar e pagar.
Também experimentei, a convite dos organizadores locais do encontro em que participei, num jantar num local, soube depois, altamente selectivo, a comida tradicional Japonesa sofisticada. Selectivo não pelo luxo (embora fosse caríssimo) mas pelo carácter genuíno. Uma casa numa rua estreita (mal dava para duas pessoas se cruzarem) ladeada por casas de madeira com rés-do-chão e primeiro andar. Lugares secretos, elegantes e sofisticados que não aparecem nos guias turísticos, frequentados por locais endinheirados. Mesmo que eu quisesse voltar não o conseguiria fazer. E não apenas por causa dos nem sei bem quantos copinhos de saqué que bebi durante as horas que lá estive.
Nesta casa de "comeres" que encontrei depois de sair do Oubain-in, comi arroz, vegetais vários, frutos secos e galinha assada aos bocados. Uma ementa muito longe da que se liga ao Japão. Este era seguramente um sítio modesto (percebia-se pelo ambiente e pelos clientes) mas veio tudo com cuidado e foi servido com uma delicadeza que, via-se claramente, pretendia agradar aos clientes. Ali, numa mesa de madeira grosseira sentado num banco na berma de uma rua estreita a comida foi assim servida:



As pedaladas levaram-me para uma zona que me pareceu turística onde, suspeito, havia mulheres vestidas como Gueixas mas que era apenas um show off para turistas. Uma Gueixa tem uma graça e elegância nos movimentos e uma tranquilidade no olhar que aquelas não tinham.


Zarpei dali, passei por locais sagrados, no meio das ruas onde se viam pessoas a colocar oferendas, dedicados a um deus (os Shrines - não sei como traduzir isto - que diferem dos templos uma vez que estes são dedicados a uma religião). Por exemplo:

Procurei locais onde não houvesse sinais de turismo, ruas laterais e sem sofisticação. Às tantas, comecei a entrar no que parecia um bairro com ar bonito, as casas com varandins e guarda-chuvas à entrada e dei com umas raparigas muito bonitas. Mulheres jovens e belíssimas. Sorriram tímidas. Deram uma pequena corrida para se desviar de mim. Eu ri-me e meti-me com elas. Estavam vestidas com trajes tradicionais mas, claramente, não era para se exibirem para turistas. Por gestos, perguntei se podíamos tirar uma fotografia. Uma delas entrou na casa ao lado e saiu com uma mulher mais velha - percebi que deveria ser uma preceptora que as ensinava e treinava na cultura Gueixa e a quem teria ido pedir autorização ara tirara a fotografia. Sorri para esta também. Ela anuiu. As três raparigas imediatamente se alinharam muito juntas em pose. Pés juninos e bem alinhados, mãos escondidas, excepto a que vestia de cor de laranja. Meti-me no meio delas e a mais velha tirou a fotografia. Foram de uma amabilidade e simpatia extraordinárias. A tentação de lhes pedir que me mostrassem a casa assaltou-me mas recuei. Seria talvez pedir demais. Depois de uma troca de cumprimentos, entre gestos e sorrisos, despedimo-nos com uma vénia.

(embora belíssimas não posso aqui colocar a face das mulheres de modo que possam ser identificadas)

A chuva passou da morrinha para chuviscos. Com o aproximar da noite passaria a aguaceiros.
Deambulei ainda assim. Antes da noite não voltaria ao hotel. Este era um ponto assente do plano.

Passei por templos e "shrines". Dei com um que, soube depois, era o templo Zen mais antigo em Kyoto (datado de 1202), fundado pelo monge que introduziu o ramo Zen (Rinzai) do Budismo no Japão.
O Kennin-ji. Nos jardins aparecem as figuras geométricas que, de acordo com a descrição no local, na escola Zen representam todas as coisas do Universo: o círculo, o triângulo e o quadrado. Não tirei fotografias. Se o fizesse as imagens que daí resultariam só iriam estragar o momento, de redutoras e simplistas.

Tirei em outros. E neste foi uma grande surpresa quando, à entrada



estava uma caixa com este letreiro:


Entrei am alguns: no Nishi-Honganji, no Koshoji ...




Lugares de culto com belas pinturas, ainda que surpreendentes.


Noutros fiquei à porta ou visitei apenas o exterior e os jardins como, por exemplo, o templo To-ji do sec I.



Num deles podíamos trazer o bilhete da visita como recordação: pintado à mão. Eu trouxe. Foi só esperar que a Senhora que o pintava com muita calma o fizesse.


Percebi que os designados templos, muitos com 500-1000 anos, constituíam também fortalezas, espaços murados que delimitavam vários edifícios (uns de natureza religiosa, outros residências e serviços), jardins e lagos. Eram também espaços políticos de "lords" Japoneses, ou governadores militares que contratavam monges (a maioria budistas) prestigiados e influentes para potenciar a sua influência política e religiosa na região. Num dos templos visitei um edifício que servia como quarto de dormir do "Senhor" local. Uma espaço quadrangular grande e amplo despojado de qualquer mobiliário onde, no centro, se localizava o pequeno quarto constituído por dois quadrados concêntricos com paredes de papel pintado. Para visitar o quarto tive que me descalçar, percorrendo o espaço amplo que os delimitava. À medida que caminhava, devagar, o soalho por baixo dos meus pés fazia um ruído semelhante a um pardal a cantar. Por mais cuidado que tivesse o soalho cantava sempre. Esta era uma estratégia para que ninguém, durante a noite, se conseguisse aproximar do quarto central do "Senhor" em silêncio, sem ser percebido. Soube depois que o soalho era constituído por duas placas de madeira com pequenos cortes que, friccionando uma na outra sob a pressão dos pés, emitia tal som. Este é um belo exemplo da atenção às pequenas coisas, aos detalhes que encontrei nas mais diversas actividades em Kyoto.


Direita? Esquerda? De que lado bate o vento e sopra a chuva?


Segui já não me lembro por onde. Sei que pedalei por ruas largas e avenidas com carros.


Mas, passo a passo, pedalada a pedalada, a sorte levou-me para ruas mais interessantes em que percebia a vida normal afastada de pontos turísticos e de elegantes avenidas e casas ... cenas de um quotidiano não muito endinheirado.





Chovia abundantemente e a visão de um parque com lagos puxou-me para lá. Antecipava a tranquilidade da chuva caindo na superfície dos lagos e nas folhas das árvores. As árvores e os arbustos começavam a florir na Primavera de Kyoto. À entrada uma cena que não antecipei. Ensopados da cintura para baixo, ali andavam estes pares a fotografarem-se mutuamente com a mesma calma, sorrisos e elegância de movimentos como se estivesse Sol e uma brisa suave.


Também eu, sem guarda-chuva, parei por ali e fotografei a superfície dos lagos sem pressa. Uma imagem do Japão que imaginara: colinas cobertas de arvoredo, neblínicas, árvores frondosas e em flor em primeiro plano, pedras e água sob chuva. E uma grande tranquilidade que se abate sobre a paisagem. As pedaladas neblínicas, sobretudo nas serranias da Beira, são-me familiares.



A noite caía. As pedaladas teriam que me levar de volta ao hotel.

Por esta e por aquela rua


Por este e aquele beco. Uns elegantes



outros do tipo onde acontecem cenas de faca e alguidar (nunca me senti inseguro).



Terminaram as pedaladas e o dia em Kyoto.  A cidade dos mil templos e das mil pedaladas. À noite, no hotel, encontrei colegas ocidentais que tinham visitado a cidade, alugando carros e contratando guias. Foram ao Nijo Castle, ao Kyoto Imperial Palace, ao restaurante não sei quê recomendado por não sei quem ... Então e tu? Eu? Eu andei por aí a dar umas voltas de bike.