sábado, 24 de outubro de 2020

A raposa

 Outubro 2020

Tinha subido a serra até ao planalto, até cerca de 1000 m de altitude. Dez graus à saída de casa, dia claro com luz filtrada por um céu baixo, a posição do Sol marcada por um clarão branco no céu, aragem suave, neblina densa metida nos vales. A serra tranquila. Eu, nem por isso, pedalei furiosamente serra acima quase sem dar conta, a cabeça à roda à procura de soluções para tarefas que se avizinham, a mind wandering tão necessária. Numa paragem imposta pela beleza de uns carvalhos e castanheiros que lançavam os ramos ainda com umas folhas quase mortas sobre um riacho recém formado pelas chuvas recentes, apareceram dois ciclistas.


Regressei à terra e fiz o resto da subida à conversa. Eles desceram para o vale a Sul e eu continuei um pouco mais. O nevoeiro estava cerrar, a serra a transformar-se e eu gosto disso.



De tão denso o nevoeiro molhava os lábios. Andei por ali, na mata de grandes cedros parecia que anoitecia, os troncos altos e escuros contra a luz branca e difusa ... que beleza.



Às tantas ... um tronco, uma pedra, o super-homem? Não! Uma raposa. Parei. Perscrutei as redondezas e dei com o olhar dela em mim. Observando-me.



(ao centro, junto ao tronco morto)









Um encontro imediato do terceiro grau. Cara a cara. Cérebro a cérebro. Ela observava-me. Puxei do telemóvel devagar e disparei umas fotos. Lembrei-me de fazer um vídeo.

Afastava-se, olhando para trás. Então pá, vens ou não? Fui. Liguei o vídeo do telemóvel e saltámos troncos, contornámos arbustos, subimos a mata, ela muito ágil, eu de sapatinhos com sola de carbono e com cleats de metal, um olho no chão, outro no ecrã, quase aos trambolhões por ali fora, seguindo-a ... um longo vídeo. De súbito, a merda do telemóvel desligou-se. Fuck. Ela ficou por ali, como que perplexa. Liga lá essa merda outra vez. Liguei e fiz o vídeo em baixo. Uns pouco segundos para nos despedir-mos. 


Tempo de voltar. Isto é, tempo de descer. Where´s the bike? Ah, está ali.




segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Lado B do post anterior

ou seja, por outras palavras, rain drops keep falling on my head.

Miss Warwick? Please, the stage is yours:


E agora ficava aqui a ouvir a belíssima Dionne mas fica para outra vez. A voz luminosa da Miss Dionne Warwick não assenta bem num céu branco e neblínico de onde caem os pingos da chuva ou sequer da floresta húmida e outonal. Não muito mas já um pouco Outonal. Isto é, os verdes ainda predominantes mas os laranjas, amarelos e castanhos a ganhar terreno.

Portanto, a chuva keep falling, transformando a serra, acentuando aromas, arrefecendo o ar, trazendo à terra o líquido mais estranho neste planeta: a água.

Depois da última fotografia do post anterior, ainda com o sabor da laranja nos lábios, subi à Cerdeira. Tinha lá estado uma semana antes e ouvira claramente ouvido um macho que na ribeira, ao fundo da aldeia, ali bramava desvairadamente. Debalde, era já muito tarde. A brama parece ter horas. Um pouco depois do por-do-Sol e acabe-se-lhes o pio. Calam-se. É a luz a controlar os relógios moleculares dos veados.



Um pouco antes tinha subido mais um pouco. Aos cerca dos 800m. Pela milésima vez apetecera-me percorrer a floresta do Terreiro das Bruxas. 










Um pouco mais - há sempre a vontade de ir um pouco mais além - e pedalei ainda até aos 1000 m.  A esta altitude a neblina começava a instalar-se para a noite. Fui com atenção, perscrutando por entre as árvores na expectativa de um encontro imediato do terceiro grau com os nossos primos de 4 patas e belos par de cornos. Um movimento, um ruído de galhos quebrados , um vulto rápido que passa ... e eles passam rápidos e fugidios como já tantas vezes aconteceu.
Lá ao fundo, junto aos cedros. Sim? Não, é um tronco caído.


Houston, do you read me Houston? Preparar para a descida. Por aqui está um friozinho que requer o uso do equipamento de reserva. Corta-vento, touca, lenço ao pescoço ... e um cubo de marmelada para pôr a insulina a correr nas veias.


E daqui segui para a Cerdeira, lá em baixo.

E, enquanto estava em comunicação com Houston, percebi que um velho amigo se aproximara. Levantei os olhos devagar. Lá estava, sobre uma pedra coberta de caruma, olhando-me.