(Setembro 2017)
A par do Binómio de Newton e da Vénus de Milo. Talvez meio passo à frente. Ou melhor, meio casco.
Tinha parado no vale aberto por trás do cabeço da Ortiga, com vistas para o Trevim, para comer o pão com marmelada que trazia no bolso da camisola. Já lá iam uma hora e tal a pedalar serra acima. As torradas com doce de cereja (com caroços, obviamente - gosto de enrolar os caroços na língua) que tinha comido ao pequeno almoço já tinham dado a glucose que tinham para dar. Durante a subida as pedaladas tinham-me levado por caminhos estreitos por entre mimosas, por picadas inclinadas e poeirentas, estradas de terra a meia-encosta e, pouco antes de ali chegar, por uma floresta cheia de sombras. Gosto de parar neste sítio. Vistas largas. Para um, outro e outro lado da serra, sobre o vale e, para cima, a visão do Trevim. Aos 900 e tal metros já se sente o ar mais fino, há um sabor bom, um aroma a montanha.
Deixei a bike e o capacete no caminho à sombra de um pinheiro. Ao dar uns passos com o cantil da água numa mão e o pão com marmelada na outra reparei que logo ali, um pouco à frente, rente aos arbustos e sobre os pinheiros pequenos, parecia planar uma ave. Vi mesmo alguma coisa? Havia qualquer coisa de estranho. Por isso duvidei. O planar era demasiado estável e lento para uma ave.
Fui espreitar, aproximando-me ao largo, em semicírculo. Com cuidado. De novo, um pouco mais à frente, mas muito perto, vi o que desta vez parecia ser uma cauda. Fiquei imóvel. Lentamente pousei o cantil e o pão no chão. Olhei em redor, tentando encontrar um pau. Porra, nada. Não me mexi. Estava na expectativa. Que caraças é que vai aparecer por entre os arbustos? Se fosse um cão teria que ser pelo menos do tamanho de um serra da Estrela. Silêncio. Eu imóvel. Nada na mão, nada na manga. Sem dar por mim (não havia vento) em leve trote, elegante, soberbo, afastando-se do local onde eu estava, surgiu de entre a vegetação um macho. Uma armação impressionante. Grande, imponente, magnífico, sem pressas, majestático, como quem percorre o seu território. Ali. Logo ali. E eu imóvel. Em silêncio. Não deu por mim. Foi indo, possante e leve ao mesmo tempo. Já vi muitos veados na serra. No dia anterior tinha feito vários avistamentos. Vários fêmeas que se assustavam à minha passagem. Setembro-Outubro é a época da brama. As fêmeas andam inquietas e os machos muito mais tentando atraí-las. No final elas escolhem. É sempre assim, as fêmeas escolhem os parceiros. Desta vez, o encontro imediato, a poucos metros, foi tranquilo. Eu imóvel e o belo macho passou calmo sem me pressentir, como se eu não ali estivesse. Afastou-se, subindo o monte, saltando (quase que voando) sobre as pedras e os arbustos. Que elegância. Então, e só então, levei a mão ao bolso de trás da camisola, tirei o telemóvel e apontei para o local onde se encontrava, já um pouco longe. Clique, clique, clique. Acho que aí ele pressentiu alguma coisa. Espevitou-se e num galope mais esforçado afastou-se. Atravessou o estradão das eólicas.
Ei-lo.
Claramente, tinha dado conta que eu estava por ali. Fui ao seu encontro. Fugiu a galope. Atravessou o estradão e desapareceu encosta abaixo. Como é possível galopar por ali?
Que par de cornos ! Foi a última coisa que vi.
Peguei na bike, pedalei pelo estradão, tentando vê-lo, serra abaixo. Sem sucesso. Sumira-se por ali abaixo. Rapidamente deve ter chegado aos pinheiros lá ao fundo.
Fiquei ali especado a olhar o horizonte: o planalto da serra da Estrela na linha do horizonte ao centro e, á direita, o cone quase perfeito do picoto da Cebola, o cume da serra do Açôr onde tinha estado umas semanas atrás (3 posts mais abaixo)