Serra da Lousã
Finais de Setembro de 2017
É o tempo da brama. Ao final do dia, o bramar dos machos ecoa pelos vales. Possante. Sobretudo ao final do dia, quando a luz do Sol se mete pelos vales e incide rasante nas cumeadas. Pelo menos é quando os ouço com mais nitidez. De súbito aquele som enche os vales, ergue-se sobre o silêncio que se instala com o por-do-Sol. Por vezes também os ouço durante o dia mas sem sentir o arrepio pelas costas acima provocado pelo bramar dos começos da noite. Começa lento e baixo, vai aumentando, atinge o auge e depois decresce de intensidade. Depois, fica o eco. Como uma estrela cadente que se aproxima como um risco de luz e que explode antes de morrer. O timbre não é tão grave como se poderia esperar. Não é nem um trompete nem um contra-baixo, é mais um saxofone tenor.
A serra está seca, os riachos ruidosos do Inverno estão mortos. Num ou noutro apenas um fiozinho de água. E penso muitas vezes onde vão os veados beber. Devem andar cheios de sede. E são muitas centenas, milhares até. Sobretudo nesta altura da brama, em que procuram as fêmeas para acasalar. Com a actividade física adicional ainda devem ter mais sede. As perseguições (deles) e as fugas (delas), os encontros, as lambidelas, o roçar de cabeças, o levantar e baixar e colocar em posição, e por aí fora, faz sede. Tenho evitado as únicas fontes que, na serra, ainda jorram. Os animais também as procuram e encontros imediatos do terceiro grau com javalis sedentos podem ser "desagradáveis". No dia do incêndio de Pedrogão, um javali jovem, provavelmente sedento, aproximou-se da
fonte onde eu estava; a mãe vinha logo ali.
Ia a pensar nisto enquanto pedalava serra acima. O dia estava densamente neblínico. Quase que não via um palmo à frente do nariz. Abria a boca, experimentando a sensação da humidade. Sente-se a humidade na ponta da língua. Os veados devem fazer o mesmo, pensei. Ou, às tantas, chupam as folhas da vegetação húmida.
Levava a comida do costume, pão com marmelada e banana mas, à medida que subia por caminhos de terra, fui comendo medronhos e castanhas. Começa a altura deles e delas (dos medonhos e das castanhas). Nos medronheiros reparei que só havia frutos vermelhos acima da minha altura (1,80m), abaixo estava tudo rapado. Ah, pois é! Os veados vêm aos medronhos. O chão junto aos medronheiros pisado suportava a ideia. A partir de hoje apanho só os mais altos, deixo-lhes os outros.
A primeira parte da subida foi feita por entre pinheiros e num silêncio abafado. Pelos pinhais que cobrem as encostas mais baixas da serra. O chão atapetado de caruma e o o ruído das rodas pisando-a era o som mais intenso que ouvia. De vez em quando um chilreio, um assobio; aves que por ali andavam.
Às tantas, olhei para o lado e tive uma sensação de
dejá vue. Caraças, como é possível?
Pintei isto à dezenas de anos. Uma floresta. Era novo e foi uma altura em que pintava muito, ou melhor na medida em que tinha dinheiro para tintas, papel e pincéis. Em vez de estudar, que era o que andava ali a fazer, pintava. Mudámos de milénio e só agora, pela primeira vez, passo na floresta que tinha na cabeça e que pintei no anterior milénio.
Ia ganhando altitude, esperando que o Sol abrisse. Mas nada. Ao contrário, o nevoeiro, mesmo quando a mata permitiria ver mais longe, tapava ainda mais a paisagem.
Por ali fora com os sentidos em alerta; olhava à volta, ouvia e interpretava os ruídos, cheirava ... não queria apanhar um susto com algum encontro inesperado.
Fui subindo até que cheguei à floresta das grandes coníferas (cedros e abetos com carvalhos e castanheiros lá pelo meio).
Aqui, nesta floresta e neste ambiente, perdem-se a dimensões do espaço (as do tempo ainda se vão primeiro). Tudo invulgar. Parece haver só uma dimensão a toda a volta. Não há para a frente ou para trás, para cima ou para outro lado. É preciso estar lá para perceber.
Meti-me um pouco por ali adentro e, de repente, estava a levar com chuva em cima. Caíam-me gotas
de água em cima. O chão todo molhado.
Fora das árvores, no caminho largo que atravessa a floresta, tudo seco, a bike a levantar o pó à medida que pedalava.
Lá dentro chovia.
Sob o céu, fora das árvores, apenas nevoeiro. Não chovia.
Ia na expectativa de, a todo o momento, ver um vulto furtivo por entre o nevoeiro. Esgueirando-se por entre as árvores, por detrás da cortina de neblina.
Sabia que os veados andavam por ali. De vez em quando ouvia sons de folhas pisadas, outras vezes, mais de meia-dúzia, sentia um cheiro intenso. Um cheiro semelhante ao que se sente quando se está perto de um rebanho de ovelhas ou de cabras. Um cheiro de que gosto. Orgânico, fundo. O cheiro dizia-me que tinham por ali passado momentos atrás. No chão os cascos impressos na terra, frescos, confirmavam que por ali andavam. Não os vi. Via as folhas dos carvalhos a agitarem-se ligeiramente, ouvia o som da chuva que caía sobre as folhas no chão da floresta, parecia-me ver um vulto e logo percebia que era um tronco cortado, um ramo ao vento ou talvez tivesse visto. Devemos ter-nos cruzado nos caminhos mas o ambiente invulgar fazia-me perder referências de espaço, de orientação e, até, do entendimento dos dias normais.
Eles facilmente me pressentiriam. As rodas da bike fazendo o caminho sobre as folhas caídas, pisando-as ruidosamente, assinalavam a minha presença. Era como se levasse uma campainha.
Nem no estradão passaria despercebido. Não seria um fantasma para eles como parecia que eles eram para mim (cheiro-os, ouço-os, vejo as pegadas mas não os vejo).
Talvez ainda por ali andassem, por entre o nevoeiro, imóveis, observando-me. Talvez me vissem como um fantasma que se afastava na paisagem, diluindo-se no nevoeiro
Pedalava inquieto; chovia apenas de um e de outro lado do caminho. Até no caminho, sob a copa das árvores, o chão estava molhado, enquanto que nas zonas sem árvores encontrava-se seco.
E que colecção de cores, com o véu de neblina em cima ! Nas árvores, nos arbustos e no chão. O que eu gosto deste chão. Um chão virgem, vivo, dinâmico, aparentemente caótico.
Sob os grandes cedros a chuva era tão intensa que fazia poças de água no chão. Mas apenas sob a árvore. Impressionante.
Logo ao lado, afastando-me, saindo de baixo da árvore, tudo seco.
A fronteira é clara no chão. Seco do lado esquerdo (a parte clara) e molhado do direito (a parte escura).
O nevoeiro era intenso. Condensava no guiador da bike, formando pequena gotas de água, nos óculos ... e nas folhas das árvores. As folhas das árvores, aos milhares, serviam de antenas de condensação da água da atmosfera (na forma de aerossol, nevoeiro), facilitando a formação de gotas que, pela gravidade, caíam para o chão. Milhares de folhas, cada uma com muitas (dezenas, centenas ?) gotas de água, davam origem à chuva, simulavam uma bela chuvada. Ouvia-se, via-se e sentia-se. Extraordinário. As árvores colhiam a água da atmosfera, devolvendo-a ao solo. Assim, as árvores colhem a água e devolvem-na ao solo, regando as plantas que nascem por ali e ... elas próprias. As folhas, especializadas em colher a energia da luz do Sol (fotossíntese), para unir átomos que formam moléculas mais complexas que, por sua vez, alimentam animais ... colhem também a água que vai alimentar as suas raízes. As folhas são impermeáveis e a água de que precisam para a fotossíntese vai chegar-lhes mas através das raízes, numa longa viagem pelo tronco acima (só possível porque a água é uma substância cheia de segredos - por exemplo, quando se detecta água em Marte ou em Europa associa-se a sua presença à vida). Eu conheço um dos segredos da água.
Pela primeira vez este ano, que vai seco, seco, devido ao nevoeiro, a floresta estava húmida. Havia poças de água no chão. Pensei que os animais deviam estar satisfeitos.
Fui subindo, esperando que a partir de certa altitude o céu se abriria em azul. Antevia a visão do vale imerso em nevoeiro (como já noutras ocasiões aconteceu). Cheguei a Cabeço Marigo, aos mil metros e os palmos que via à frente do nariz eram sempre os mesmos, muito poucos.
Talvez no Trevim, no cume da serra. Duzentos metros mais acima (em altitude). Talvez aí tivesse a visão que antecipara quando comecei a subir a serra: ao Sol, sob céu azul, acima das nuvens que cobririam o vale. Mas já não tinha tempo para ir até ao Trevim. Pedalei por ali, no planalto. Sem grandes subidas conseguia uma maior velocidade, sentindo mais intensamente o ar fino e húmido. A certa altura, levantou- se um vento vindo de baixo que trazia o nevoeiro dos vales que em golfadas dobravam o planalto, passando para o outro lado da serra. A paisagem transformava-se de minuto a minuto, ora fechada e cinzenta ora aberta e azul. Voltei para trás, estava na hora de descer e, quando passava de novo no Cabeço Marigo, viam-se já os cumes da serra sob o céu azul.
O Sol dissipava rapidamente o nevoeiro.
Mais abaixo, a luz entrava também pela floresta, deixando ver o que o Outono traz.
A memória das pedaladas serra sombria acima, horas atrás, dissipava-se tão rapidamente quanto nevoeiro com o Sol. A serra neblínica varrera-se-me da memória, ficara nas fotografias.