terça-feira, 27 de agosto de 2019

65 graus Norte

Agosto 2019

Este blog começou a pedalar a Sul, ao Km zero na Patagónia Chilena.  O nosso Norte é o Sul, como dizem por lá, pelo Sul. Têm até mapas planisférios com os continentes de pernas para o ar com o pólo Sul em cima. Foram umas belas pedaladas sem saber bem para onde, sem mapas, sem GPS - o tipo que me alugou a bike aconselhou-me apenas a seguir a linha do caminho de ferro para Sul de modo a sair da vila; depois que seguisse - sem saber o que me esperava, sem condições mas com o peito cheio e um brilhozinho nos olhos. Mas isso foi a Sul.

Passados todos estes anos pedalei a Norte, a roçar o círculo polar Ártico. Não foi uma aventura. Foram apenas umas pedaladas sob um ar fino e frio da manhã, à volta de uma vila piscatória. Mas foram umas belas pedaladas.
A toda a volta a natureza em força. Nem me atrevo a fazer descrições.
O vento arrefecido pelo glaciar varre o vale com uma força incrível. A água que corre do glaciar e reflecte a luz branca e limpa.


A água, agora líquida, que já foi gelo.


O gelo transparente como nunca o tinha visto.



Fica a memória para reforço sináptico. Os neurónios (aqueles que não morrerem) hão-de agradecer ... um dia. Vendo-as (as fotografias) vou consolidando a memória. Seja na mesma rede neuronal ou noutra, caso os neurónios da primeira se desconstruam (to say the least).


Na véspera tinha chegado ao pôr-do-Sol e subido ao farol.


Exactamente ao pôr-do-Sol. Um pôr-do-Sol com umas enganadoras cores quentes sobre o mar gelado.


Hey, that's my bike !


Mar e gelo fora, em frente 2500 km e estaria no Pólo Norte. Mas era hora de voltar para Sul.


sexta-feira, 16 de agosto de 2019

Nas terras altas do Açor

Agosto 2019


Chegara na véspera. O tempo? Quase imprevisível. Quase porque não bastava ler os sinais à volta, olhando o céu -  intensidade e direcção do vento, tipo de nuvens, temperatura, intensidade da luz ... e por aí fora - para fazer uma boa previsão com um par de horas de antecedência. A aplicação no telemóvel dava 15 % de probabilidade de chuva. Nestas coisas, vai-se em frente. Avisado fazer uns treinos, aguardar para um dia mais solarengo, programar a coisa, partir pela manhãzinha para ter tempo ?... sim, mas ... que se lixe (to say the least). Vai-se em frente. De modo que, já ia a tarde adiantada, e debaixo de um céu quase ameaçador, meti as precauções no bolso e pus-me a caminho do Picoto da Cebola, do cume da serra do açor aos 1400 m, do adamastor do Açor.

Ainda ia a ajeitar-me em cima da bike e, poucos km depois da partida, fazia a curva que abre os horizontes para Este, para o picoto da Cebola (o pico do meio na tríade à esquerda), para o planalto central da Estrela (ao centro na linha do horizonte) e, logo ali, para a barragem de Sta. Luzia.


Olhei para trás para parte do caminho que já tinha feito


para logo descer até à água e olhar de novo o Cebola.


Cantis cheios na fonte e vamos embora que se faz tarde. Ia resistindo à tentação para parar e fotografar porque àquelas horas os minutos passam rapidamente mas, às tantas, já depois ter passado no Vidual de Cima, caí (de bom grado) na tentação - um ciclista não é de ferro, como é bem sabido.


A partir da barragem, aos 650 m, o caminho é em subida constante - tirando a descida ao vale onde fica a Malhada do Rei - até ao Picoto, ao 1400 m. Há que imprimir um ritmo, há que ir indo, há que deixar que o vento nos leve. De outro modo, parando aqui e ali com muita frequência, perde-se o élan (que bela palavra, acho até que é a primeira vez que a uso aqui no tasco). E para perder o élan já me bastam algumas chatices de outra índole (aqui está outra bela palavra).
A continuación, acerquei-me do Adamastor e, na decida para a Malhada do Rei, uma brevíssima paragem para olhar o cume, levantar os ísquios do selim (para dizer isto de uma forma elegante) por um instante e, clique, uma fotografia.




O clique seguinte foi tirado já acima dos 1000 m, na cumeada que se vê lá em cima è esquerda (na fotografia anterior), quase na base do Picoto. Dali, e olhando para Oeste, via claramente vista a serra da Lousã a marcar a linha do horizonte; a serra azul sob nuvens com ar tempestuoso.


E o Sol ia baixando e o que tinha ainda para pedalar.

Depois ... cheguei. Longas pedaladas. Estava dobrado o Adamastor do Açor. A história da subida final não se conta. Uma subida cuja inclinação se acentua com a aproximação ao cimo. Cada pedalada mais difícil que a anterior. O rio e as povoações metidas nos vales (Covanca, Malhada Chã) que vão ficando mais pequenas, as aves de rapina planantes que são avistadas olhando para baixo, os aerogeradores com pás de 30 m que parecem pauzinhos frágeis, e pedala-se até não haver mais caminho para pedalar. Dali avista-se um terço do território Nacional.


Comme d'habitude (e uma vez que a carga no telemóvel não permitia um videozinho) uma fotografia para Oeste (o maciço central da Estrela em frente).


Outra para Sul. A serra da Gardunha no horizonte à direita, na direcção das Minas da Panasqueira logo ali em baixo. Um pouco à esquerda (no horizonte) Monsanto e, logo atrás, Espanha.





Pare Este. A Serra da Lousã (de novo mas 400 m mais alto) na linha do horizonte ao centro. Em dias limpos ver-se-ia o mar.



Voltando um pouco atrás na rotação, na direcção Sudoeste, vislumbra-se a imensa barragem de Sta. Luzia, de onde partira  (ao fundo e ao centro), quase imperceptível na paisagem. Visto daqui, apenas um pequeno espelho de água entre penedos.



Para Norte, as cumeada Norte do Açor (que percorri em Agostos anteriores e que por aí estão descritos) que separam vale do rio Ceira, em primeiro plano, do vale do rio Alva, do outro lado. Depois o olhar percorre o imenso vale até à serra do Caramulo, as serranias azuis na linha do horizonte.



Faltava regressar. O plano era seguir pela cumeada, mantendo-me aos 900 m para, sobre a casa do guarda, descer que nem um doido até à barragem. Uma trajectória across the Universe, pelo menos através de um bocadinho do Universo que, pelos vistos, a maioria dos físicos acha que é infinito.

O Sol caía para os lados dos penedos de Fajão. Na descida haveria de ver belos céus com luz candente mas fica para depois, para mais tarde. Acabou-se-me o tempo.




Colocarei aqui algumas fotografias de mais um bocadinho do Universo.





segunda-feira, 5 de agosto de 2019

Plano simples: Gondramaz and beyond

Julho 2019


Os primeiros Km foram feitos pela linha de caminho de ferro desactivada. Um crime que foi cometido contra as populações desta zona: retiraram carris, solipas, ...  tudo na perspectiva da electrificação da linha. Depois deu bronca, desacordos, autarcas a puxar cada um para seu lado, não houve o amén político e ficou apenas o caminho por onde passava o comboio. Um instante a dúzia ou coisa assim de km até Miranda do Corvo. Dali, do vale, avistavam-se as encostas pelas quais teria que pedalar, serra acima, até ao Gongramaz. Era cedo e o Sol dissipava as últimas neblinas que cobriram a serrania durante a madrugada. Sabe bem olhar para cima, para a serra, ver as neblínicas encostas que me esperam, antecipar o esforço, a sombra de belos e frondosos castanheiros - há anos que por ali não subo mas resiste a vaga memória de belos e frondosos castanheiros - as curvas inclinadíssimas, quase paredes, o ritmo, o ritmo é fundamental, a visão do vale cá em baixo que vai ficando mais longe, mais baixo, a brisa que vai soprar, o suor nos olhos ... mas, por ora, estava no vale.



Nada que enganar; virar à direita, primeiro o Cadaixo e logo a seguir Gondramaz


Algumas hortas, numa delas ...  uma nora ainda funcional (couvinhas regadas pela manhã com a água do poço), curva para aqui, cortada para ali e a subida aí estava.





Dos 150 aos 650 m de altitude não foi um pulo. Já na encosta encontrei este "equipamento" (as autarquias e as juntas de freguesia usam este termo modernaço para se referir às obras que fazem para usufruto público): um miradouro. Plataforma de madeira, corrimões de metal e madeira ... uma bela vista sobre o vale que tinha percorrido na hora anterior.


And the climb must go on


A estrada empinou acima dos 10 % de inclinação inibindo as paragens para fotografias. Subidas doc atano com paragens meio não é uma boa ideia; perde-se o ritmo e a coisa começa a ficar penosa. Há que encontrar o "path" que nos eleva, os pensamentos que apagam o tempo, a paisagem da memória que nos empurra serra acima, o ânimo que nos leva em direcção ao azul.


Às tantas, numa curva do caminho - quase sempre as surpresas surgem numa curva do caminho: o Gondramaz.



Chegado. Metade do plano cumprido. Faltava beyond.






O beyond começou à saída. Quer dizer, à saída para cima, para a serra, para o cume, pelo caminho empedrado por entre carvalhos e castanheiros. O Sol aberto viria depois.


E, para abreviar a história, seguiram-se pedaladas duras por ali acima: Sol intenso, terra e pó, calor, moscas (uma das regras centrais do BTT é pedalar a uma velocidade superior aquela a que as moscas voam pois, de outro modo, está-se mesmo a ver o filme) ...

O Gondramaz ficava para trás, quer dizer para baixo, ali à meia encosta; via apenas os telhados cor de laranja ao Sol na mancha verde à volta. Lá mais ao fundo o vale que tinha percorrido horas atrás.




Como quase sempre são horas a pedalar pelas serranias sem ver ninguém. Dos apoiados em quatro patas também não vi mas pressenti-os. Hora de calor, Sol e terreno aberto não são as melhores condições para ver os belos veados e javalis. Nalguma subidas junto à mata senti o odor intenso.

A cumeada ali à frente. Sabia que logo ali à frente, mal terminasse o caminho por entre os pinheiros, se abririam as vistas para Sul.


Sabia mas era como se não soubesse pois me surpreendo sempre. Uma última visto de olhos par trás, para Norte


e, logo depois, após ter passado a pequena mata, as vistas para o outro lado da serra, para Sul.


As pedaladas seguintes levaram-me ao longo da cumeada, ali aos 800 m de latitude; lonjuras de um lado e do outro, Sul e Norte, brisa moderada e é assim que eu gosto de pedalar.

Depois de subir havia que descer. Já tinha marchado a banana e uma porcaria de uma barra. Estava esfomeado, tinha ainda outra barra mas que se lixe, não vou comer esta merdelhice a não ser que me dê um badagaio. Além disso tinha a minha teoria do modelo de jejum. Como é sabido, o jejum (pode ser o jejum intermitente para o qual há já evidências científicas fortes) controlado tem efeitos benéficos para a saúde (promove a autofagia, induz reprogramação metabólica ... mas isto é outra história). Ora, pedalar em esforço durante umas horas sem ingestão de comida simula o jejum de pelo menos um dia em circunstâncias normais. Uma teoria simples mas provavelmente correcta. Quando chegar a casa logo como - decidi. E, nestas coisas, não há nada como tomar uma decisão. Evitam-se chatices, dúvidas, pensamentos libidinosos (por assim dizer) sobre a barra que levamos no bolso de trás e que nos aconchegaria o estômago e etc. Por outro lado, deve salientar-se que a circunstância de ir a descer em alta velocidade por entre árvores e pedras ajuda a esquecer a vontade de comer, sobrepondo-se a vontade de chegar numa peça só.





Não me enchendo a barriga, os odores cédricos intensos na floresta enchiam-me o cérebro.


A altitude atenuou-se rapidamente. Quase a chegar ao vale, numa curva, (é nas curvas do caminho que ...) senti um odor intenso. Veados? Aqui junto casa e à luz do dia não pode ser !





É interessante a harmonia das formas e dos movimentos nos animais.  Se decompostas em traços provavelmente sairiam gatafunhos grotescos mas, em conjunto, completam uma bela visão.

sexta-feira, 2 de agosto de 2019

O cilcista extraordinário foi à Volta e fez um videozinho ou De como encher chouriços durante 15 minutos - à atenção dos Srs. jornalistas

Agosto 2019


Com a Volta a Portugal a passar-lhe à porta, o ciclista extraordinário sentiu-se compelido a ir para a berma da estrada e apoiar os cavaleiros do asfalto, por assim dizer. O ciclista extraordinário deu umas pedaladas serra acima, escolheu um local com curvas e uma boa sombrinha debaixo de uma bela árvore. Apenas o ciclista extraordinário estava por ali, mais ninguém. Encostou a bike à árvore, preparou o telemóvel e pôs-se à espera. Previra que demorariam uns 10 a 15 minutos. Na primeira meia hora o lista extraordinário apenas viu passar carros e motas da polícia, mais de 15. Ia berrando para os motards policiais "já lá vêm?" mas apenas obtinha, quanto muito, uns esgares de soslaio, ao que o ciclista extraordinário respondia (baixinho, não fossem eles ouvir) com uns termos tabernáculos.
O ciclista extraordinário foi-se entretendo a olhar para os passarinhos, as folhas no chão, os troncos das árvores. Às tantas apareceram. O ciclista extraordinário apontou o telemóvel e começou o videozinho. Eram uns 4 ou 5. Depois carros e mais carros. Então o ciclista extraordinário percebeu que se tratava de uma fuga e resolveu manter o videozinho, esperando, pensou ele, 1 minuto ou 2 pelo pelotão. O ciclista extraordinário estava para ali com o telemóvel na mão e o pelotão não aparecia. Cinco, seis, sete minutos e nada. Como qualquer bom reporter o ciclista extraordinário começou a encher chouriços. Mas encheu chouriços como devem ser enchidos. Não se pôs a repetir lentamente, como se fosse disléxico, o que tinha dito anteriormente, ou a falar com tal veemência de uma banalidade qualquer como se estivesse a descrever um dos segredos do Universo e coisas afins, tal como fazem os senhores jornalistas. Não, o ciclista extraordinário aproveitou a oportunidade para mostrar duas aldeias serranas, apontando-as com o dedo à frente do telemóvel, mostrou o enquadramento do local onde se encontrava, os montes, as copas das árvores, a cor do céu e, sobretudo, assobiou. Não umas foleirices de músicas que a televisão mostra nos programs da Volta a Portugal. O ciclista extraordinário assobiou, entre outras e não necessariamente por esta ordem, Strangers in the night, oh rama oh que linda rama, Summer time (de Gershwin), o concerto para clarinete em A maior de Mozart, uma valsa de Strauss (devidamente acompanhada pelos balanços das imagens), What a wonderful day (Louis Armstrong), entre algumas improvisações. Como se vê um enchimento de chouriços como deve ser. Não as palermices que os reporters da TV fazem quando ficam pendurados à espera.


(ouvir com som muito alto)