domingo, 28 de agosto de 2016

O Açôr tonitruante e a luz na água lisa da barragem e as cores ... aaaaahhhh as cores

Serra do Açôr
(Agosto 2016)

Ribombante, troante, triunfante, conflitante, ressonante ... assim:



E a luz parcial sobre a água na barragem, assim:



O céu fechado, o som contínuo dos trovões e os relâmpagos a rasgar o horizonte. Estava ali, aos 1000 m de altitude, a olhar o céu a Sul, sobre o vale do rio Zêzere. Que visão!

Tinha chegado ali sob um céu azul. Tudo aquilo foi de repente. O céu desabava sobre o vale do Zêzere. Verifiquei a direcção do vento: Norte. A trovoada andava a Sul, logo, pensei, estou safo. Até dá para tirar uma fotografia, tendo a tormenta como cenário:



Estúpido pá! Não vês que, provavelmente, a trovoada é multicêntrica? Às tantas estás a olhar para Sul a ver o espectáculo e aparecem-te umas nuvens negras a Norte, pelas costas, e estás encurralado pá.

Cinco minutos depois da fotografia comecei a ser alvejado por gotas de chuva gigantes a velocidade tal que pareciam pedras. Pedalei dali para longe à velocidade que pude. A descer conseguia manter a bike a rolar acima dos 45km/h na direcção do céu mais claro, para Oeste, na direcção da barragem de Sta. Luzia.
Olhava em frente quase hipnotizado, fitando para o céu claro que sobrava, enquanto sentia nas costas (além da chuva) o céu negro e ouvia o ribombar.


Mas, apesar da aflição (e se me atinge um raio? Dois caíram nos montes à direita, por ali, não muito longe da estrada em que seguia) não conseguia ficar imune à beleza da paisagem, à luz extraordinária, à cores invulgares e aos contrastes.





A Norte, o Adamastor (Picoto da Cebola) estava ainda sob um céu tranquilo


Mas percebia-se que ia fechar, a luz quase extinta anunciava-o



Fui pedalando sob aquele som, bruummmm, bbbrrrruuummmmmm, brrruuuuuummm e a chuva pelas costas ia abrandando. Quando cheguei aos limites da barragem parecia que teria tempo para enxugar, antes de chegar a casa, a tormenta teria ficado para trás.



Enganei-me novamente, fintado pela tempestade. Como é que podia usar o senso comum e duas ou três variáveis (sentido do vento, cor das nuvens, abertas no céu ...) para avaliar um sistema caótico, como é o caso da tempestade. É a Física pá, agora querias olhar para o céu, molhar o dedo para verificar o sentido do vento e prever a evolução de um sistema caótico? Que asno pá.



Este é o mesmo sítio por onde passei na ida?


Meti-me pela mata que circunda a barragem ainda sob chuva mas, às tantas, inesperadamente parou. Deve ter havido um efeito exercido pela toalha de água da barragem sobre atmosfera, sobre as nuvens polarizadas da tempestade. É o meu palpite. Respirei fundo, abrandei e ainda deu para parar e apanhar umas amoras nas silvas do caminho.









quinta-feira, 25 de agosto de 2016

Serra do Açôr neblínica em Agosto

Serra do Açôr
Agosto 2016

A Sexta-feira de meados de Agosto amanheceu com céu branco e neblina a lamber as cumeadas dos montes mais altos do Açôr. Depois do calor abrasador dos últimos dias, este amanhecer era surpreendente. Olhei à volta e joguei o jogo do costume: isto não é nada, daqui a pouco a neblina vai levantar e o Sol vai aparecer. Claro que ao organizar esta ideia no cérebro, simultaneamente a ideia de que a neblina não iria levantar e, pior, aquilo ia dar em chuva, tomava corpo de um modo tão vincado como a primeira. É curioso, pensamos simultaneamente que a coisa vai melhorar, sabendo que não mas, no fundo, escolhemos a que preferimos, sabendo que é uma ilusão. Mas é mesmo assim. O cérebro busca o prazer (em sentido lato). Fazemos isto todos os dias. Optamos racionalmente por uma opção ao mesmo tempo que, lá atrás, uma voz longínqua a que não ligamos nos diz que nos estamos a enganar. No fundo, a decisão racional é a assumpção de que nos estamos a iludir mas não queremos saber disso para nada porque nos interessa a ilusão.


A ideia era subir à crista do S. Pedro do Açôr (que fiz o ano passado, em Setembro, aqui e aqui). Entre o Picoto da Cebola (onde estive há dois dias) e o S. Pedro fica o vale fundo onde nasce e corre o jovem rio Ceira. Cá em cima, de ambos os lados, estamos aos cerca de 1400 m e, lá em baixo, aos cerca de 700 - 800 m.

As pedaladas começaram brancas e neblínicas (a partir da Malhada Chã), sempre na expectativa que a neblina levantasse e as verdes e rugosas encostas do outro lado, do lado do Picoto da Cebola, surgissem à frente dos olhos quase verticais, e que a o planalto granítico da Estrela ao fundo, a fechar o horizonte, completasse o cenário da subida Mas não, foi ao contrário. Quanto mais subia, mais o nevoeiro cerrava. De vez  em quando, pelo vale do Ceira abaixo, havia umas abertas, o nevoeiro puxado pelo vento permitia uns vislumbres do vale. Mas depressa tudo fechava.

Mas foi uma subida belíssima. Silenciosa e fresca. O aroma das ervas secas molhadas era intensíssimo, inebriante, quase que alucinogénico. É um êxtase, sobretudo àquela altitude (o ar fino e húmido compõe o ramalhete) e naquelas condições neblínicas. Há vinhos que lembram este aroma.



No cimo a neblina transformou-se em chuva miudinha puxada a vento. Rapidamente fiquei encharcado. Agosto? Ontem 30 e tal graus? Hoje assim?

Ainda pedalei pela crista uns km com enganos na estrada à mistura e voltas-atrás. À volta tudo branco, as ervas curvadas pelo vento, os óculos embaciados (sem óculos a chuva picava os olhos) e isto parece mas é a serra da Estrela (lá é que tive experiências de dias assim no pico do Verão).

Devagar para não dar por ali um derrapanço e ficar estatelado no chão e, às tantas, ... um cruzamento!


A placa é muito bonita, num estilo grafitado. Estava sobre o Piodão, a 2 ou 3 km.

Um belo pretexto para uma fotografia da bike. Note-se a harmonia e equilíbrio das cores, as curvas sensuais, o trapézio estilizado do quadro, ... (e mais não digo que ainda me diagnosticam uma mania qualquer).



Em dias assim (sob esta luz) a cores transfiguram-se e há contrastes novos que não são existem sob céu limpo e aberto. Nota-se bem nas pedras e, por isso, gosto de olhar as barreiras.



O estradão foi ter a uma estrada asfaltada. Já estava à espera.
A ideia era continuar (tal com fiz o ano passado), cruzando a estrada asfaltada, e continuar  pela crista por terra em direcção Este, para os lados de Fajão, mas ia molhado e com frio. Além disso, com as mãos molhadas não conseguia utilizar o GPS (o écran táctil não respondia). Há por ali um labirinto de estradas e caminhos e o GPS pode ajudar a tomar decisões porque um erro com descida involuntária ao vale pode implicar uma subida violenta em altitude. Decidi descer pelo asfalto em direcção à Córnea e à Covanca. As placas lá estavam, encostadas às giestas, imutáveis. Para este lado assim.



Para o outro lado assim. O que eu gosto destas placas; tortas, ferrugentas, com nomes invulgares, inesperadas, no cimo das serranias ...


Já na descida, parecia que "o tempo estava levantar". Bela expressão esta que se usa na serra (se calhar no mar também).


Tinha que descer até ao fundo do vale, atravessar o rio Ceira e subir do outro lado até à altitude em que me encontrava agora.  A estrada para subir via-a claramente em frente, a serpentear pelo monte acima até uma clareira de luz que se abriu no nevoeiro.


Aqui de novo. É para além, para aquela crista lá em cima que vou.


Que vales estes!






Encravados no fundo dos vales, há vestígios (casas, currais, muros, agricultura...) de outros tempos. Tempos próximos, não muito longínquos: há umas dezenas de anos vivia-se aqui em quase isolamento.




Já perto do Ceira, alguma terras parecem ser ainda cultivadas




Um curral ainda operacional. Imponente, ali naquele topo na base da encosta para o Cebola




Rapidamente cheguei ao Ceira e agora só faltava subir a encosta que tinha visto lá de cima.


A subida é dura, a meio olhei para trás. A crista por onde tinha andado estava ainda sob as nuvens mas claramente o tempo abria. Lá em baixo a Covanca, onde passei depois de ter cruzado o Ceira.



O vale do rio Ceira visto deste lado





Feita a subida da Covanca estava no cruzamento que me levou há dias ao pico da Cebola. Olhei de novo para trás, para a crista por onde andei e para os montes que subi e desci e fica uma sensação de bem-estar.


Aqui não há nada que enganar, as placas apontam sempre para algum lado.




Olhei para a frente. Só me faltava apanhar a crista das eólicas lá em cima (à esquerda) e descer para a barragem de Sta. Luzia. Pelos vistos iria ainda meter-me no nevoeiro outra vez.














segunda-feira, 22 de agosto de 2016

Trezentos e sessenta graus no Picoto da Cebola (serra do Açôr) – o fortíssimo impacto do círculo quase-mais-que-perfeito

Serra do Açôr)
Agosto 2016

Pela manhã, quando o céu começou a clarear e a luz, entrando ainda tímida pelo ‘janêlo’ do quarto (manias de dormir com o janêlo aberto), dava cor às pedras da parede e às tábuas do tecto, entreabri os olhos e, enquanto a consciência voltava devagar à mente e tornava a ser eu, meteram-se-me no corpo as ganas para subir o Adamastor do Açôr. Não antecipo sensações (a respiração ofegante por ali acima, o suor a correr por todas as gelhas e dobras da pele, o Sol lá em cima e o rio lá em baixo, o sopro inesperado do vento e aahh sabe tão bem e logo a seguir mais um derrapanço no cascalho solto, caraças ...), nem faço planos detalhados: abalar de casa (deixa cá ver se não me esqueço dos pães com marmelada), pedalar devagar até à barragem de Sta. Luzia, olhar para as cumeadas lá em cima e ver como estão as coisas, logo a seguir parar na fonte para encher os cantis de água fresca e, a partir daí, começar s subir; isto é tudo o que tenho por certo.

Bom dia! diria o pastor representado aqui na escultura à saída do Cabril



Logo depois, uma cabra tresmalhada e os penedos do Vale Grande por detrás anunciam a barragem



e eu, seguindo o plano, pedalo devagar, tentando que o coração acelere, aumentando o fluxo sanguíneo [excepto no cérebro porque esse é um caso à parte (este é imune aos caprichos do coração e tem que ser assim, mas isso é outra história, uma bela história, aliás, mas seria demasiado longa para contar aqui, o problema da alocação de energia no tempo e sítio – os neurónios activos – certos; é que os vasos sanguíneos no cérebro têm uma intimidade, ou melhor, uma cumplicidade com as células vizinhas que não existe em nenhum outro órgão)], a lubrificar os mecanismos de ligação e libertação do oxigénio à  hemoglobina, optimizando a sigmóide que descreve a ligação, acidificando ligeiramente os músculos das pernas e pondo em acção o 2,3-difosfoglicerato. Por outras palavras, respirar fundo, ver a paisagem e inebriar-me com os aromas da manhã, pedalando nas calmas.



Do lado de lá dos penedos, a barragem. Mil vezes que passe, mil vezes me espanto.
Na linha do horizonte, ao fundo, a serra da Cebola com 3 picos. O pico do meio é o meu destino, o Picoto da Cebola (1400 m de altitude e ponto mais alto da serra da serra do Açôr) – o Adamastor do Açôr.



Tivesse eu chegado aqui ao entardecer e não pela manhã e a visão do Adamastor teria sido outra. Esta:





Cá de cima, dos penedos, é isto!


Com a água fresca da fonte (nos cantis) a correr garganta abaixo e o sangue bem quente a correr rapidamente por onde tem que correr fui-me aproximando do Adamastor. Por vezes, nos vales desaparecia da vista para reaparecer na curva da estrada quando chegava a algum topo.
Sobre a Malhada do Rei (onde caí há uns anos atrás e parti a clavícula) e lá está ele



É curioso que a distância às vezes intimida mas, para usar um lugar-comum, todo o caminho começa com a primeira pedalada, como que num ritual, encaixa-se o sapato no pedal, ouve-se o som do ‘cleat’ metálico a encaixar, click, e é um som familiar, motivador, é o som de partida, do início da viagem, click, encaixa-se o segundo pé, depois segura-se o guiador, olha-se em frente e vamos lá, segue-se outra, que se segue de mais outra pedalada e assim sucessivamente. É assim que se percorre o espaço entre dois pontos; onde estamos e onde queremos ir.  É, no fundo, apenas aritmética; 1 mais 1 igual a 2, 2 mais 1 igual a 3 e já estamos 3 vezes mais afastados do ponto inicial.

Muitas pedaladas depois, parei. Estava já na subida do picoto da Cebola. Desta vez comecei pelo lado da Covanca. É a subida mais curta: 3 km com uma inclinação média de 13,3 %. Um estradão arranjado, onde se pode ir de jipe 4x4. Mas a maior dificuldade são as mini-lombas contínuas e a gravilha solta que dificulta a tracção. Outra particularidade da subida é que a inclinação vai aumentando à medida que se sobe. De resto, estamos com o planalto da Estrela aos 2000 m no horizonte, o rio Ceira jovem cá muito em baixo, no vale, estamos sobre os falcões e outras rapinas que por ali pairam, vendo-as por cima, vendo também as cumeadas de eólicas por cima.



Olhei para trás. Tudo abaixo de nós excepto o céu. E pouco mais há a dizer.

Depois ... cheguei.

Chegar ali, ao cimo do Adamastor do Açôr, é tranquilizador, chego sem euforias, como se fosse a coisa mais natural do mundo. Num processo de feedback comigo próprio quase que me surpreendo com esta sensação. Não deveria estar eufórico e gritar: chegueeeeiiiiiiii? Não, chego como se sempre o tivesse feito.

Gosto de olhar o planalto da Estrela ali à minha frente. E gosto da minha ‘jersey’ com o prisma que dispersa a luz branca! (the lunatic is on the grass - Pink Floyd, Dark side of the moon).



Não há mais caminho por onde subir; é quase uma decepção.



Daqui, diz-se, avista-se cerca de um terço do território nacional. Desde a serra da Estrela e Espanha a Este até à Serra da Lousã e o mar a Oeste. Esta é a imponente cordilheira montanhosa que atravessa Portugal ao centro (Estrela-Açôr-Lousã). Desde o Caramulo e Montejunto a Norte até sei lá onde a Sul.

180 graus para Sul


180 graus para Norte



Círculo quase-mais-que-perfeito: trezentos e sessenta graus no picoto da Cebola.
Começa e termina a Este, com a visão imponente do maciço granítico da Estrela (o dedo no final indica-o). Na direcção Sudoeste fiz uma ampliação para se ver a barragem de Sta. Luzia, de onde parti e para onde regressarei.

A luz intensa disfarça contornos, anula os perfis das cumeadas, torna indistinto o horizonte mas ... é o que há.



Este: a Estrela, granítica, majestática, fria, dominante, quase.



Sul: nariz e serranias que nunca mais acabam.



Sul, outra vez: a barragem de Sta. Luzia, de onde vim, ao fundo e ao centro.



Norte: a cumeada de S. Pedro do Açôr (irei lá um dia destes), o Caramulo, indistinto no horizonte, por detrás e, mais ainda, outras serranias a Norte (Montejunto?) que mal se distinguem na luz imensa que banha o vale a olho nu e que na fotografia ficam ausentes.



Oeste: já a descer e a Serra da Lousã na linha do horizonte.
Aqui as linhas são oblíquas e isto pode acusar estranheza dado que o padrão do dia-a-dia nas vilas e cidades é constituído por linhas horizontais e verticais. Este é um aspecto central da paisagem.
Ainda hei-de desenvolver esta teoria: “de como as perspectivas oblíquas e em fuga nos perturbam os padrões espaciais da experiência comum”.
Ou: “prospectos para os estudo da perturbação espacial conducente à apreciação estética da paisagem”.
Ou: “afinal o seu cérebro não é infalível e surpreende-se com linhas oblíquas com laivos fractais



Descido o Adamastor, ter estado lá em cima é já passado e life goes on. Agora, há que apanhar a linha das eólicas, além à esquerda, que me levará à barragem.



A barragem anuncia o fim das pedaladas. Dali ao Cabril é um pulo.



Embora, bem vistas as coisas, a chegada e a partida permutem. Quer dizer, fui da barragem ao Adamastor mas isso foi pela manhã, agora, à tarde, venho do Adamastor para a barragem. Cheguei à partida e, portanto, como em quase tudo, do infinitamente grande ao infinitamente pequeno, as extremidades tocam-se.