quarta-feira, 29 de agosto de 2018

The South Face: os ganchos do vale do rio Ceira ao cume da serra do Açôr

Agosto 2018

Lá ao longe, do vale do rio Ceira jovem (uns verdes 2 ou 3 km) ao S. Pedro do Açôr, os ganchos em piso de cascalho e terra (assinaladas as hairpins no caminho que serpenteia serra acima).


Uma subida à Açôr; início no vale fechado com a água do Ceira a cantar entre as pedras, depois por entre pinheiros e o aroma quente da caruma para, pouco a pouco, pedalada a pedalada, os horizontes se abrirem e por baixo da respiração ofegante conseguir ainda libertar um suspiro de prazer. É uma subida difícil, daquelas em que tem que se pedalar com o corpo todo. Não doem as pernas mas os rins. Os braços com os músculos tensos brilham na tarde de Verão cobertos de suor.
Vai-se ali ombro a ombro com a serra. Ganha-se altitude em cada pedalada. Uma espreitadela por cima do ombro e o vale lá ao fundo é lá ao fundo.



Às tantas, já aos mil metros, surge no horizonte, ou melhor irrompe no horizonte a Serra da Estrela. Em frente, no colo à esquerda dos aerogeradores, a nascente do rio Ceira.


Aos 1400 m, no S. Pedro do Açôr, não há mais serra para subir. Encontrei de novo o Sr. Armindo da freguesia da Malhada Chã que, no Verão, ali passa os dias a vigiar as serranias, detectando focos de incêndios. É o terceiro ano que me vê chegar de bike serra acima. Falamos do horizonte e olhe além, depois de Oliveira do Hospital, e o ano passado nunca vi uma coisa assim, meteu-se ali pelo vale do Piodão e uma hora depois já ia na Vide. E a mata da Margaraça também ardeu? Foi tudo. Olhe para isto. Ardeu tudo.


(O Piodão em baixo, em frente o Colcurinho, ao fundo no horizonte a serra do Caramulo)

No Agosto anterior falou-me da disputa entre a Malhada Chã e o Sobral de S. Miguel pela nascente do Ceira. E olhe o meu avô passou lá uma noite assim, com a espingarda entre as pernas (e agachava-se como se dormisse com os braços para a frente, entre as pernas). É que o rio corre para o lado de cá (a Malhada Chá é do lado de cá) e Sobral Valado é para ou lado de lá. Falei-lhe de um carreiro que conhecia dali até à nascente do Ceira. Disse-lhe do interesse de muitas pessoas em visitar estas serranias. Confessou-me então que a junta está a pensar "compôr" o carreiro, alargando-o e também a marcar a nascente com um muro de xisto. Olhe ainda há pouco tempo passou por aqui um rapaz que também subiu em bicicleta e foi por aí, por esse lado e num instante chegou ao caminho lá mais abaixo (atirou o Sr. Armindo em jeito de despedida). Tinha barba, perguntei. Que sim e que teria uns trinta e tal anos. Lembrei-me do Tiago, um  habitué destas (e outras) serranias com quem fugazmente me tenho cruzado. Ele foi por ali? Vamos lá então. Até pró ano Sr. Armindo. Até pró ano e saúde para cá nos encontrarmos. Encontros extraodinários estes. Vamos lá então. Nem sabia o que me esperava. Entre outras cenas, um mortal em frente por cima da bicicleta completado com um aterranço de bruços. Felizmente sem problemas.



(o carreiro em primeiro plano. Em frente, no horizonte, o planalto central da Estrela)

Ia o dia a meio. O vento ali era morno. Tinha dito para ninguém esperar por mim. Estava numa das serranias mais intensas e belas que conheço. Com bons caminhos aos 1200m. So, here we go. Vamos para os lados de Fajão (eh pá, depois tens que subir aquela porra toda, desde a ponte de Fajão até lá acima, para seguires para a barragem de Sta. Luzia. Que se lixe, não quero pensar nisso. Isso é o futuro, agora estou aqui. Mas vai ser um futuro do caraças e ao fim do dia com o cansaço ... ). Entre a voz da razão e a do prazer do momento optei pela última. E segui. Perdi-me (ia sem GPS), ainda andei com a bike às costas numa rampa ou duas mas as horas solitárias a pedalar por aquelas cumeadas levam-nos à essência de alguma coisa; tempo? beleza? Aprende-se a olhar.

O ventou, com o caminhar do dia, alevantou-se mais forte. As rapinas (falcões e outras que não distingui) planavam por ali, uma vezes avistadas por baixo mas muitas vezes por cima, tal a altitude a que estava sobre os vales. E avistar uma ave de rapina a planar olhando para baixo em vez de levantar os olhos para o céu não é um acontecimento trivial.


O Açôr imenso para Oeste até à serra da Lousã (no horizonte ao centro).



(O Açôr para Este)




Na descida para a ponte de Fajão, a meia encosta revela a ruína dos incêndios de Outubro passado.



Desci até ao Ceira (a velocidade pouco recomendável), atravessei a ponte, subi, subi, subi, e cheguei à estrada que me levaria à barragem de Sta. Luzia, de onde tinha partido no início do dia.



A chegada prenunciava uma nova partida mas havia ainda uma noite pelo meio.

sexta-feira, 10 de agosto de 2018

... e foi o segundo dia de pedaladas na Estrela

Serra da Estrela
(Finais de Julho de  2018)


Acendem-se-me, literalmente, acendem-se-me uns neurónios que rapidamente ficam malucos a disparar correntes eléctricas fraquinhas, muito fraquinhas, zzzzzzzzzzzzzzz andam por ali às voltas em rodopios caóticos e, às tantas, talvez uns milissegundos depois, as paisagens, a luz, os aromas úrzicos e o arrepio de pele vêm à tona, tornam-se memórias no meu cérebro. E as memórias são realidade, fazem parte do presente quando as recuperamos.

A memória foi desengatilhada pela visão do mar de neblina



um mar aos 1600 m de altitude com margens de granito e urze.


Ondas! Acho que são ondas de neblina.



As pedaladas tinham começado cedo. Ir à montanha. Um plano simples. Pedalar montanha acima. Depois, logo se veria para onde o vento me sopraria.


A lagoa do Covão do Curral


Nesta lagoa, que se anicha numa depressão sobranceira ao magnífico vale onde, lá no fundo, corre jovem, muito jovem, o rio Alva, joguei futebol. Há muitos anos. Era um dia de Inverno e a superfície da lagoa estava gelada. Portanto, como se compreende, um sítio ideal para uns adolescentes na posse das suas elevadas, elevadíssimas, faculdades cognitivas jogarem futebol.

Hoje, pela tarde, o vento sobre a superfície criava a ilusão de evaporação - isto dito de um modo técnico-desapaixonado. Poderia ter dito que a superfície espalhava um pedaço fractal de céu.


E foi o final do segundo dia. Dois dias de pedaladas na montanha. Na montanha sente-se o ar fino, fluido e agudo que não se sente nas serranias a menor altitude por onde costumo pedalar.

sexta-feira, 3 de agosto de 2018

Na Estrela cadente mas com paragens amiúde, claro, ah e o Miguel Youtuber

Serra da Estrela
finais de Julho 2018

Tem que se pedalar mantendo uma cadência constante. Constante e espevitada. Nem para limpar os olhos do suor ou enxotar as moscas  - e aqui aplica-se uma das leis fundamentais do mountain biking: se pedalas a uma velocidade inferior à que as moscas conseguem voar estás lixado pá to say the least pá, elas vão andar à tua volta, pousando nos lábios, nas orelhas e noutros orifícios cobertos de suor - se pode alterar a cadência, quanto mais parar.
Mas a cadência é fluída, dinâmica, não monótona-repetitiva; é mais ou menos como a música do Philip Glass, sobre o ritmo base vão-se introduzindo pequenos traços melódicos dos quais só se dão conta um pouco depois de terem entrado na cadência em fundo. Assim, as pedaladas cadentes, como que uma mad rush

(Philip Glass, mad rush)

Portanto, da Covilhã até às Penhas da Saúde fui cadente. Só então comecei a parte amiúde (bela palavra esta), isto é, a parar com frequência para olhar e tirar umas fotos.
Já acima dos 1500 m, o arzinho mais fresco e limpo, a agrestura (não existe a palavra mas poderia existir) da paisagem onde, mesmo sem lhes tocar, se percebe a rudeza do granito e das zimbreiras. E, nos dias de Sol, como era o caso, a luz intensa que se mete pelos olhos adentro até ao cérebro como relâmpagos. Os Cântaros, o Relvão, os Covões, os horizontes ... O esgar na face dos primeiros Km deve ter sido substituído por um sorriso - digo eu que estou agora aqui sentado confortavelmente.

O azul e o amarelo à passagem pela barragem das Penhas (lago do Viriato)


de soslaio, percebia a mancha azul


Um pouco mais de azul, isto é, um pouco mais acima, na passagem pelo Relvão, ouvi - pois, os rebanhos aqui ouvem-se e só depois se vêem - um rebanho. Um som que ainda tenho na memória de há décadas atrás, quando por aqui calcorreava os covões e cântaros.
Agucei a vista e lá estavam.


A distância na serra ilude; o que parece logo ali, dada a imponência geológica, é longe, muito longe.

Ali, do lado de cá da moreia (os pedregulhos por ali espalhados) do grande glaciar que moldou o belíssimo vale glaciar do Zêzere que, aliás,  começa logo ali à esquerda:

(uma fila de ovelhas à esquerda que se dirigem para o local onde o pastor, ao centro apoiado num cajado, reuniu já o resto do rebanho)

Bebida a água da fonte que, um pouco adiante, jorra eterna (pelo menos conheço-a assim há décadas), feita a curva em que se avista o Cântaro Magro, o Covâo da Ametade (onde nasce o Zêzere) e o vale glaciar, passado o túnel e atingidos os 1800m de altitude, parei com as vistas para Sul, sobre a lagoa da barragem do Covão de Ferro (tomando a casa do lado esquerdo como referência percebe-se a imensidão do que nos rodeia) 


Já para não falar da ilusão da distância que o Cântaro Magro, logo a seguir, induz.


Visto do lado de baixo, o alinhamento dos cântaros (da esquerda para a direita: gordo, magro e raso) dá um "flavor" da imensidão, comparando com o radar na Torre que se avista por cima da cabeça do emplastro da fotografia.



Mas foi um pouco antes que, à beira da estrada, distingui ao longe um vulto. Eh pá aquilo é um gajo com uma bicicleta com alforges. Vai uma bolacha - atirou ele quando me aproximei. Aquilo era claramente um convite-provocação para parar. Bom, só ali conversámos durante meia hora. O Miguel tinha vindo a pedalar desde Lisboa, e - contou-me - tinha um canal Youtube com 40 mil seguidores. O Miguel era um youtuber (onecyclistinlisbon). Estava ali porque os seus seguidores tinham votado favoravelmente a viagem à Estrela relativamente à viagem a Granada (também de bike). O seu compromisso era fazer a reportagem para os seguidores. Perguntou-me sobre a zona e ouviu-me palrar meia hora sobre a serra (a parte do lado da Covilhã porque mais estava para vir relativamente ao outro lado). Seguimos juntos até à Torre. Levei-o ao lado Nordeste e falei-lhe sobre a cordilheira à nossa frente: a Estrela-Açôr-Lousã. Contei-lhe dos caminhos que já por ali percorri de bike e do picoto da Cebola e do Trevim no horizonte e das travessias que fiz e, e, e, e, e,  ... e o Miguel ouvia e eu tentava abreviar para não lhe pregar uma grande seca mas, para meu espanto, o Miguel insistia em querer saber pormenores e onde ficava o Piodão e olha além que barragem é aquela (Sta. Luzia) e, e, e, e, e, e ... como diria a minha filha: um nerd pior que eu.
Percebia-se que ele, como eu, estava habituado a pedalar solitário. Depois daqueles momentos partilhados foi natural cada um ir para seu lado. Ele foi comer umas sandes de presunto a um dos tascos da Torre, enquanto que eu desci um pouco para o lado de Seia. Na despedida, perguntou-me se podia por lá no canal youtube dele parte da nossa conversa. Ja tinha percebido que ele ia gravando a paisagem e a conversa. Claro que sim, serão os meus 15 minutos de fama.

Na passagem (de novo) junto ao Cântaro Magro parei para comer uns bolinhos de côco. Tirei os sapatos e fiquei ali durante ... 15, 30 60 min? Não sei bem.
Lá ao fundo, a raia, a zona de fronteira entre a Beira e Espanha (esta já na linha do horizonte) com os montes onde se erguem Monsanto e Sortelha.


Não sabia ainda que no dia seguinte voltaria ali. Voltaria cadente como se o não tivesse feito na véspera, isto é, hoje. E que desceria um pouco pelo lado de Seia para me deparar com um mar de neblina que cobria a Beira-Alta. O relato e as fotografias do dia seguinte ficam para amanhã, quer dizer para um destes dias.