Serra da Lousã
(Fevereiro 2018)
e a cabeça não pensava noutra coisa desde que, cá em baixo, antecipara a floresta coberta de neve. Um olho para cima, na neve, outro para baixo, nas pedras do caminho, como na história da burra e o cigano, e em força e a direito até ao cume, a pedalar serra acima. Havia que subir mil metros em altitude e o tempo não abundava. A direito pela floresta húmida e escura, onde nem no Verão a luz entra e onde o ciclista extraordinário se inebriou com os aromas dos cedros.
Mas o Sol fintou as expectativas do ciclista extraordinário. O ciclista extraordinário aproximava-se da neve sem nunca a atingir. A subida íngreme não ajudava o ciclista extraordinário que progredia lentamente, tão lentamente que a energia da radiação electromagnética libertada após o encontro de dois átomos de hidrogénio com formação um átomo de hélio na estrela mais próxima do nosso planeta, e depois de ter viajado ceca de 8 min pelo Universo, colidia com as molécula de água organizadas em flocos de neve, tornando-as livres, fluidas, liquidas, libertando-as de cristais onde estavas amarradas. O ciclista extraordinário olhava por entre os óculos e o capacete e, por essa fisga, conseguia distinguir árvores brancas mais acima, talvez um ou dois km mais acima. Quando o ciclista extraordinário lá chegava, por causa daquela coisa electromagnética, as árvores brancas estavam mais acima, as dali já o não estavam. Quase, quase lá em cima, a temperatura baixa, cerca de 2 graus C, opunha-se frontalmente à energia do Sol, impedindo-a de derreter a neve. Quer dizer, pelo menos parcialmente. No chão dos caminhos a neve derretera mas nos cedros, nos arbustos e nos pinheiros não.
Houve um momento em que o ciclista extraordinário chegou a essa fronteira, a do derrete, não derrete. Nessa fronteira, como quase em todas as fronteiras, aconteciam coisas extraordinárias e inesperadas que deixaram o ciclista extraordinário muito feliz. Por exemplo, arbustos gelados e brancos e, logo ao lado, arbustos verdes e luminosos.
e as agulhas dos pinheiros com uma camada fina de gelo de um dos lados, apenas de um dos lados. E o ciclista extraordinário abriu a boca por baixo das agulhas e provou as gotas de água que corriam e pingavam das agulhas. E soube-lhe muito bem.
E, enquanto o ciclista extraordinário estava nisto, a fronteira ia-se mudando para mais acima. Em 5 minutos movia-se uns bons 5 metros. Olha! aquele arbusto que estava branco já está verde!
E, ali debaixo dos pinheiros, o ciclista extraordinário teve um momento de enlevo poético e começou a pensar como era extraordinário que, devido a uma radiação que tinha sido criada a cerca de 150 milhões de Km no núcleo de uma estrela, o ciclista extraordinário levava com pingas no capacete da neve que caia dos pinheiros, já mais água do que neve e que, pela mesma razão, o ciclista extraordinário conseguia beber uma pingas que escorriam pelas agulhas dos pinheiros.
Aos mil e cem metros de altitude o ciclista extraordinário teve a sensação de ter passado a fronteira, a situação era mais sólida, mais estável.
Caminho enlameado, pedregoso e castanho ladeado por árvores e arbustos brancos e hirtos. E o ciclista extraordinário sentia-se muito bem a pedalar por ali, a arfar, o bafo expelido que se condensava, formando vapor, um friozinho bom. Um céu ora branco ora azul.
O ciclista parou. Nada de extraordinário parar. A não ser que se pare num sítio extraordinário.
Olhou à volta, comeu uma banana, bebeu água do cantil, tirou umas fotografias e, depois, vestiu o casaco adicional que levava no bolso do que vestia. Havia que preparar para a descida, mais um ou dois Km e estaria no cume. O ciclista extraordinário levava um casaco que comprara ainda no século passado. Um casaco azul da Giordana. Foi o primeiro casaco muito bom que o ciclista comprou. Depois de tantas molhas e frio no pêlo o ciclista decidira que era altura de comparar um bom casaco. Ainda se lembra que custou 15 contos, uma exorbitância, uma fortuna para o ciclista extraordinário. Mas aquece, deixa respirar e corta o vento. Hoje, embora já meio esfarrapado e sem as qualidades originais, o ciclista extraordinário continua a usá-lo. Muito Sol e chuva passou já por este casaco. Quando o veste, o ciclista extraordinário tem a sensação de se cobrir de uma segunda pele, tão familiarizado está com ele.
Definitivamente hirtos.
Na descida, e devido à limpidez da atmosfera - que a chuva de véspera removera de poeiras - o ciclista extraordinário deparou-se com o vale Norte da serra da Lousã, o vale que se estende até Vila Nova de Poiares, Penacova, serra do Buçaco do lado esquerdo e serra do Caramulo em frente. Até onde a vista alcança, e ao contrário das fraldas da serra onde o ciclista extraordinário se encontra, as cores predominantes são o castanho e o preto. Foi aqui que começou um dos grandes incêndios de Outubro passado. Vê-se bem a extensão da destruição que provocou. As povoações no meio da imensa mancha castanha deixam perceber bem quão encurraladas estiveram pessoas e animais. E as fotografias que o ciclista extraordinário tirou mostram apenas uma parte do rasto de destruição. Para a direita, pelas fraldas da serra do Açôr até à Estrela, o cenário é semelhante.