ou o som das gotas de água que caem nas teclas do piano
Depois da chuva, apenas dois dias de chuva após tantos dias secos, a floresta aos mil metros de altitude cobriu-se de neblina e silêncio, como que num prolongado suspiro de alívio. Nem uma gota de água se ouvia pingar, ou um piar longínquo, um murmurar das folhas das árvores, nada, o silêncio enchia a paisagem. Aqui, o som dos martelos nas cordas do piano de Satie seria ensurdecedor.
Um silêncio que não o das estrelas ou o do mar porque aqui, na floresta, há uma comunicação, uma expressão, qualquer coisa que flui por entre as árvores e que me atinge.
Em funções essenciais da célula, o meu genoma e o das árvores à minha volta é semelhante. Pelos vistos partilhamos até mecanismos de regulação do sistema imune inato contra diversos agentes patogénicos. Somos primos afastados. Ambos vivos, não fantasmas por entre a neblina.
Pedala-se no sentido na claridade, no caminho por entre as árvores, sem nunca a atingir. Porque nada há a atingir. Não há um centro e uma periferia. Um sentido, sequer.
No dia seguinte, a meia encosta: a brand new day !
A continuaciondepois da subida à Torre, já na descida, pedalando pela estrada, quando passava pelos Piornos, os caminhos graníticos cobertos urze do lado esquerdo, do lado do planalto que se estende até Manteigas, foram um chamamento irresistível. O vento trazia-me o som doce de cítaras e sonoras flautas tocadas por musas incautas, de cabelos de ouro, correndo e acendendo o desejo ... bem, quer dizer, a continuacion, nem dei conta. Quando dei por mim ia já no planalto a rodar no chão que conheço bem. Conheço-o de outros tempos, dos tempos em que por ali havia rebanhos, centenas de cabras e ovelhas e cães da serra grandes com coleira de picos que, percebendo-nos a km de distância, vinham ter connosco, mandando-nos dali para fora (com modos de cão da serra com coleira de picos, bem entendido). Tempos em que me perguntavam: mas o que é que vais fazer para a serra? E, na altura, seguindo o conselho de Pitágoras (tout n'est pas à dire), nada explicava porque estava seguro que às minhas palavras seria devolvido um olhar de estranheza e perplexidade (mas o que raio é que este gajo está a dizer, a falar das pedras e do vento e das raízes e do céu à noite ...?)
Agora há por ali um estradão de terra.
Percorrendo-o, dei com um dos "casais" usados para a pastorícia a grande altitude; uma pequena casa de pedra com coberto de colmo para os pastores e um curral adjacente. Em ruínas. Lembro-me destes planaltos acima dos 1400 m de altitude cobertos de ovinos a pastar.
Depois de velejar por ali, pelo planalto, estradão que não gerava preocupações de maior, uma travagem aqui, outra ali mas sem stress, mais ou menos plano, à bolina, por entre pedregulhos em equilíbrios impossíveis, o caminho estreitou-se e comecei a descer.
Logo depois, num passe de magia, ainda mal refeito da tensão que apanhei na descida, desviando-me de regos e pedras, travagens bruscas, equilíbrios para manter o centro de gravidade na bike, vi-me a percorrer caminhos por soutos a meia encosta.
Estava na hora de repor a glicémia com umas belas de uma castanhas. Frescas e boas, acabadas de sair dos ouriços (o cleat the metal do sapato de encaixe é um excelente extraidor de castanhas de ouriços, poupando assim os dedinhos às picadas).
Estando por ali, a olhar e a cheirar, às tantas, como acontece em tantos outros sítios na serra, chega aquela sensação estranha: se calhar é melhor ir andando, o Sol já vai baixo. Vem ao cimo a ideia de ter que ir embora.
Sigo? Por ali?
Vamos lá
Faltava ainda descer umas centenas de metros em altitude para o vale do rio Zêzere e tornar a subir para tornar a descer.
A cerca de 15 ou 20 km da chegada, ao aproximar-me da terra onde nasci, nas fraldas da Estrela, na periferia da cova da Beira, o Sol ia já muito baixo. Escondia-se por detrás da Estrela. A Gardunha, no horizonte, tinha ainda os cimos alumiados. A noite apanhou-me no caminho.
(cadeia montanhosa da serra do Açôr-serra da Lousã vista da Torre, serra da Estrela)
O magnífico Açôr.
Já este ano pedalei até ao cimo dos três gigantes do Açôr (Picoto da Cebola, S. Pedro do Açôr e Colcurinho). Estão por aí as fotografias. Também já este ano fiz a travessia do Açôr até ao Trevim (no horizonte), na serra da Lousã. Ainda hei-de pôr aqui as fotografias. Hoje, grande parte, sobretudo as encostas Norte - à direita - estão negras, ardidas.
(como toda a gente que anda de bicicleta sabe, quando andamos de bicicleta fazemos parte da paisagem)
visto da magnífica Estrela
(desfiladeiro de Loriga, 900 m de desnível, o maior da Estrela)
onde, mesmo nos dias mornos, ao anoitecer, corre o vento fino, finíssimo e frio que corta a pele e varre o planalto acima do 1900 m.
A continuacion les presentaremos otra galeria de fotos en próximo post
A las cinco en punto de la tarde tinha pedalado até meia encosta. Saíra tarde. O Sol põe-se às 6 mas não resistira ao apelo do cheiro da terra molhada, da mata húmida, dos vapores que a terra libertava, das plantas mortas no chão, dos arbustos e das árvores. Que se lixe, é tarde mas vou à mesma. Logo verei.
A las cinco en punto de la tarde a noite caía e com a noite um nevoeiro denso assentou por ali arraiais.
Pedaladas numa solidão intensa, um silêncio abafado pelo nevoeiro, o corpo contraído pela atenção.
It was dark and I did not go home. A perfect day
I took the road to nowhere
A escuridão caía rapidamente. A que a noite trazia era previsível. A que o nevoeiro acentuava não. Não iria haver lusco-fusco. Contava com isso mas a transição iria ser rápida; agora é dia, 5 minutos depois será noite. O apelo da serra tinha apagado a meia dúzia de neurónios que me iam alertando para a necessidade de voltar para trás. Mais abaixo não há nevoeiro, volta para trás enquanto podes. Mas, depois, parava, olhava à volta e ficar por ali mais uns momentos era uma apelo irrecusável. Via a situação como um privilégio.
Mas estava tenso. O silêncio intensíssimo, indescritível, quebrado aqui e ali pelo agitar das folhas, por um ramo que caía, um som de folhas pisadas (ou não?, animais por ali?), e não via a ponta de um chavelho à frente do nariz. Cada vez mais escuro e eu sem luzes na bike.
O que vais fazer pá? Voltar para trás? Pelo estradão de terra? Ainda há alguma luz mas e os buracos, as pedras, os paus ... ainda dou um malho ... talvez a melhor hipótese seja tentar atingir a EN236. Conheço-a bem, cada curva, o piso asfaltado é mais seguro ... mas isso quer dizer que tens que subir mais uns 2 ou 3 Km pá, só a consegues apanhar lá mais acima e subir 2 ou 3 Km leva tempo e nesta altura cada minuto conta e, além disso, quanto mais acima mais cerrado estará o nevoeiro, ah, é verdade!, hoje há Lua cheia, pois é, a Lua levanta-se ao começo da noite, posso apanhar mais nevoeiro mas a luz da Lua fará do nevoeiro um céu cheio da luz difusa e, mal desça alguns Km, o nevoeiro dissipa-se (ah ah ah ah ah diz-me a meia dúzia de neurónios que formam a estrutura que gera o bom-senso) e ainda vou fazer uma descida da serra belíssima sob a luz da Lua cheia. É isso. Continuo a subir e apanho a EN236 no cimo da serra.
Pedalei em força, o mais rapidamente que pude. Tenho que ter cuidado, os animais nestas condições andam mais à vontade e eles andam por aí. Posso chocar com algum. Grito, se me aparecerem à frente da roda, grito: sssshhhhôôôôôôô.
Levantou-se vento. De vez em quando, ao passar por baixo de ramos dos altos cedros, o vento sacudia os ramos carregados de gotas de água em cima de mim. Uma chuveirada que me agradava.
Cheguei ao cimo. Estava a cerca de 1000 m de altitude e a 18 Km da vila. A estrada de alcatrão molhada tinha um brilhozinho que me permitia ver uns metros. Talvez 2 ou 3 comprimentos da bike. Fui indo. Percebi que o equilíbrio em cima da bike nas curvas no meio da escuridão é instável, como que uma vertigem. O diabo é se há animais no meio da estrada. A pé? Com este sapatos com encaixes de metal nunca mais lá chego. Com alguma sorte passa um carro, vem devagar, concerteza, e eu aproveito a luz mas nada, nem um. Quem é que se iria meter na serra com uma noite de lobos destas? Seguia contraído, devagar, sempre a travar, curva à direita, ah pois é agora estou a passar junto aos carvalhos grandes, curva à esquerda, pois, agora aqui é o riacho e a fonte que alguns, erradamente, chamam de fonte fria. Um peso no peito e o nevoeiro que não se ia embora. Parecia que não vinha ali, que estava num filme. Tudo me parecia irreal. Apenas os "imbalanços" ao curvar na bike me diziam que estava ali. Às tantas, faço uma curva e uma grande alvoroço; 2 ou 3 veados, cada um a correr para seu lado, apanhados de surpresa, no meio do nevoeiro e da noite, aparece-lhes ali um vulto silencioso, lento mas suficientemente rápido para quase chocar com eles ao desfazer a curva. Os veados têm trilhos na serra (percebi isto há algum tempo: eles vão fazendo trilhos que depois usam para se deslocar) que, por vezes, cruzam a estrada asfaltada. Um deles derrapou à frente da roda dianteira da bike, correndo numa direcção para logo dar meia volta e fugir para o outro lado. Subiram todos pela barreira do lado direito. Eu levei um choque adrenalínico brutal, nem parei, foi tudo num instante, tive um arrepio pelo corpo todo, pêlos eriçados, caraças tinha que acontecer. Nem percebi bem o que se passou. Ver os corpos grandes ali à minha frente, em movimentos rápidos, nem sequer sei se travei ... na memória tenho apenas "fotografias" do que se passou, não tenho o "filme". Ou melhor, tenho o filme dos acontecimentos mas com espaços em branco. Como num sonho, em que não ligamos acontecimentos numa sequência temporal.
Mais abaixo já não havia nevoeiro. Pelo menos esta parte do plano estava a correr bem. Mas da Lua nada. O tecto denso do nevoeiro sobre a serra impedia que qualquer fiozinho de luz o penetrasse. Mas via melhor. Foi quando comecei a sentir frio. Até ali o meu cérebro não se preocupou com frio, tinha outras prioridades (fazemos isto no dia a dia: uma coisa que nos preocupa é tamponizada por outra de maior gravidade, há uma hierarquia na consciência que, provavelmente, imposta pela Evolução, é útil à sobrevivência). Sentia o frio nas mãos e nos pés.
Cheguei ao Candal, a única aldeia na EN236. Luz (durante 100 m).
Só faltavam 11 km até à vila.
Direita, esta é a curva do depósito de água, esquerda ... direita ... ao aproximar-me da vila, quando comecei a ver as luzes ao longe, percebi que tremia quase descontroladamente, e não era (apenas) do frio. Começaram a doer-me os maxilares, devo ter vindo a cerrar os dentes todo o caminho, os ombros e as mãos, colados no guiador, contraídos. Tive que me abanar, respirar fundo, berrar ... para regressar ao estado basal. Já antes tinha descido a serra de noite e sem luz mas nunca em modo tão potencialmente dramático.
Onde ontem (Sábado), a las cinco de la tarde, era assim,
hoje (Domingo) ali, ali perto, a la una de la tarde, era assim
Tinha parado. O caminho atravessa a floresta. Estava uma brisa fresca mas boa. Já levava mais de uma hora a pedalar serra acima. Cada vez mais me detenho pelas coisas mais insignificantes, para as ver com mais tempo; um pau, castanhas, musgo, um espelho de água, pedras, nuvens sobre os cumes, insectos, a brisa, o horizonte ... Em fundo, ouvia-se o som dos milhões de folhas a oscilar na brisa (como num farol se ouve o mar à noite) e, de vez em quando, um ruído mais perto, mais intenso; ouriços com castanhas que caíam dos castanheiros.
Eu ali, encostado à bike, sem fazer nada, apenas ali a olhar à volta. Às tantas, na encosta em frente, a uns 50 m, logo ali, uma manada de veados, talvez uns 8 ou mais, jovens, correndo pela meia encosta mas mantendo a distância para o local onde eu estava. Acho que de início não devem ter dado por mim. Tirei o telemóvel, tentei ligá-lo mas não ligava, punha o dedo, tirava o dedo e nada. Eles ia correndo, afastando-se. Lá ligou, já eles iam longe. O movimento dos gamos e veados é de uma beleza e elegância extraordinárias. Fiquei ali especado. Ao tempo que os não via. Com o tempo seco que tem ido não têm aparecido. Devem, talvez, repousar mais, poupando energia. Não andam tanto por ali, graciosos, como é seu hábito.
(fizeram a meia encosta à frente e em cima num percurso de 180 graus. Apareceram pela esquerda e foram-se pela direita)
Que momento ! Eles a olharem-me de esgelha, a medir-me, tentando progredir pela meia encosta mas prestando atenção aos meus movimentos. Depois, de novo, apenas o som do vento nas árvores em fundo e ouriços com castanhas a cair. Mas ..., espera, um ruído que não é de ouriços, folhas a serem pisadas, ali do outro lado, ali do lado de baixo do caminho, dois gamos pequenos muito jovens. Não deram por mim. E nesta altura tinha ainda o telemóvel na mão. Clique.
(Ao centro em baixo. Ampliando vê-se claramente um deles, entre a árvore grande mais perto e uma pequena ao fundo, a caminhar para a esquerda)
Liguei o vídeo. São dois. Estão em baixo, ao centro. Ampliando vêm-se bem. Tranquilos. Não deram por mim. Às tantas, assobio e começam a correr.
Foram-se. A brisa intensificou-se, como se os levasse, os ajudasse a correr, os empurrasse para longe.
Também eu me fui dali. Passei ainda na Fonte Fria. A água, geralmente limpa, estava parada. Folhas a boiar, reflexos baços, a fonte não parecia fria mas mortiça e morna.
O duende da fonte, que por lá já antes o tinha visto, apareceu de novo
Depois, sentado nos degraus de pedra da fonte, comi uma banana e vim-me embora; tinha umas postas de salmão para grelhar para o almoço. Vim na brisa também, a navegar à bolina.