(Abril 2019)
Na véspera das pedaladas, pelo anoitecer, fui a pé até à barragem. Subi ao penedo do lado Sul, ao miradouro, e olhei o Adamastor (o picoto da Cebola, cume da serra do Açor). "Amanhã, por Osiris ou por Afrodite, as pedaladas hão-de levar-me lá". O céu caudaloso deixou-me todavia uma pequena preocupação a dançar na cabeça. Caso chovesse, umas molhas em cima do pêlo ali pelas serranias àquela altitude e a solo fariam mossa.
Até então, a uma semana da comemoração do dia inicial inteiro e limpo, os dias de Abril tinham ido farruscos; ventanias, chuva e frio.
(à esquerda, dos 3 picos o Picoto da Cebola é o do meio. Ao centro na linha do horizonte o maciço central da serra da Estrela)
O dia seguinte abriu inteiro e limpo, o primeiro depois de muitos cinzentos. Foi tudo rápido. Impaciente, logo de início pus-me a pedalar em força (erro crasso), passei rapidamente pela barragem, parei à pressa na fonte para encher os cantis (dois, pelo menos, que a sede vai apertar até lá acima), subi ofegante até à casa do Guarda e, em vez de virar à direita para o estadão das eólicas, segui em frente e, só aí, com o Adamastar à vista, parei para respirar. Estava já aos 900 m de altitude, sob o vale do rio Ceira e com a ponte de Fajão à vista. Dores nos músculos, nos tendões, nos joelhos ... (falta de aquecimento inicial e a idade não perdoa e blá, blá, blá ... que se lixe e vamos mas é embora que se faz tarde - o que eu tenho que pedalar para lá chegar).
(o picoto da Cebola é o cone que se vê ligeiramente à direita na linha do horizonte)
Nada a fazer senão continuar. E continuar forçando os músculos com uma bela subida. Voltei atrás para o estradão das eólicas. Iria a direiro em vez de fazer a meia encostas como planeara de início. Uma a uma as dores foram desaparecendo e a procissão ia ainda no adro. Mais um pouco e Fajão, avistado por entre paredes de xisto, ia ficando longe e cada vez mais em baixo. Para Norte céu limpo. Haveria ainda de descer para, de novo voltar a subir. E o céu foi limpando, algumas nuvens a Este dissiparam-se, e a luz encheu as serranias intensamente.
Pouco me detive até ao cume do Adamastor. Não quis parar, não quis tirar fotografias, queria apenas pedalar pelas cumeadas sem qualquer objectivo, sem pensar em disparar o telemóvel, apenas interessado em pedalar contra o vento, deixar vadiar o olhar, sentir os odores e a distância.
O estradão das eólica fez-se rapidamente. À medida que nos aproximamos, o Adamastror vai-se erguendo imponente, vai-se agigantando, tapando parte do céu.
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( aldeia de Ceiroco que surge na série de televisão "Benvindos a Beirais" como sendo Beirais!)
Fajão estava para trás, escondido na encosta dos penedos de Fajão em forma de bossa ao fundo do vale por ponde serpenteia o jovem rio Ceira (nascido por ali, um pouco acima)
Estava já sobre Ceiroco quase no sopé do Adamastor. Tinha pedalado bem mas faltava dobrar o cabo. Que as musas me acompanhassem !
No sopé, no cruzamento da Covanca, corta-se à direita para o estradão e sabe-se que, a partir daí e até lá acima será o que o cabo da Boa Esperança foi para Bartolomeu Dias, um cabo das tormentas. O estradão sinuoso e ondulado formando pequenas ondas dificultam a subida, a gravilha solta faz derrapar a roda e a inclinação dá a ideia de que aquilo não vai dar a lado nenhum. A road to nowhere. Eu nunca penso em chegar lá acima, apenas pedalo, uma e outra vez, quase em transe. Às vezes, nas serranias pedalo por caminhos tão inclinados (um dia, num grupo com parceiros, todos a soltar umas imprecações tabernáculos, subindo a custo, alguém mediu a inclinação: íamos numa inclinação de 30%) que tenho que me deitar sobre a roda da frente da bike para evitar que levante e me estatele de costas com mortal encarpado à retaguarda. Há uma disciplina intrínseca que nos mantém ali, e nos move. Nem sequer passa pela cabeça desistir ou pensar que não se é capaz. Depois de tantos anos a pedalar entro facilmente neste estado de pouca lucidez. Não é uma subida em êxtase, olhando a paisagem; "olha lá está o belo vale do rio Ceira e que extraodinárias estão as encostas cobertas de flores, já para não falar do fantástico maciço da estrela coberto de neve ..." Por vezes espreito e vejo tudo isto mas na maior parte do tempo as paisagens que se me atravessam na mente são interiores; são as que tenho inscritas na memória. Vêm-me ideias, revejo situações, vou em mind wandering, tomo decisões sobre aspectos da minha vida sem perceber que as tomei e, mais tarde, nas situações em que a decisão se efectiva, ao contrário do que gostamos de pensar, não foi o resultado de uma análise racional. A decisão já estava no cérebro em resultado do mind wandering. E, pelos vistos, nós fazemos isto com frequência.
Cheguei. Pus-me a olhar. Quando olho as lonjuras nada fixo. Não vejo detalhes, apenas a paisagem inteira. Fico a olhar para lado nenhum. Depois de muito tempo a olhar, por vezes, dou conta de detalhes; umas casas ao longe, árvores e pedras, estradas, aves que por ali planam ... Em muitos outros aspectos da vida faço o mesmo; só me interessam as coisas na globalidade, passo à frente de detalhes e pormenores, interessam-me os conceitos e a global picture. Às vezes perguntam-me de que cor é o cabelo de alguém com quem estive, como é o nariz, se usa barba, se usa óculos, etc. e muitas vezes não sei dizer. Tenho que tentar descontrair para tentar recordar os detalhes. Sei outras coisas que não me perguntam.
Tinha feitos os últimos metros pelo estradão ladeado de torgas sem disso ter dado conta.
Uns farrapinhos de neve no maciço da Estrela e as encostas cobertas de torgas a perder de vista.´
Encosta-se a bike ao marco geodésico do picoto aos 1400 m como quem pede um café faxavor numa esplanada qualquer. Com a maior naturalidade. Afinal apenas subi o que havia para subir. Enquanto lá não penso em nada. Às vezes quando, aqui em casa, vejo as fotografias quase que tudo me parece irreal porque não me lembro de quase nada, de detalhes.
Do Picoto, diz-se, avista-se cerca de um terço do território Nacional. Já o fiz anteriormente e postei-o aqui mas, de novo, fiz um videozinho a 360 graus no Picoto. Começa a Este, no planalto da Estrela. Depois viro para Sul, percebendo-se a serra Gata e Espanha e, logo depois, a serra da Gardunha. Seguem-se as terras para os lados das portas de Rodão (e talvez a serra de S. Mamede). A luz inunda a terra e os contrastes perdem-se. Continuando a rodar amplio a barragem de Sta Luzia de onde parti e, depois, para Oeste a serra da Lousã (que também amplio). Para Norte surge a Serra do Caramulo (nova ampliação para mostrar o cone do Caramulinho) e por detrás as serranias ainda mais a Norte.
Não posso ficar ali todo o dia. Life must go on somewhere else. Às vezes, muitas vezes, descer é uma desilusão.
Horas e muitas pedaladas depois estava de novo nas margens da barragem de Sta Luzia. Local de partida. Entretanto, as nuvens tinham voltado e coberto parte do céu a Este.
O dia terminava. O penedo do lado Norte da barragem reflectia o Sol poente, em contraste com a noite que já se instalava nos vales.