segunda-feira, 27 de maio de 2019

Um dia inteiro e limpo (antes do outro, do original) no Açor

Serra do Açor
(Abril 2019)


Na véspera das pedaladas, pelo anoitecer, fui a pé até à barragem. Subi ao penedo do lado Sul, ao miradouro, e olhei o Adamastor (o picoto da Cebola, cume da serra do Açor). "Amanhã, por Osiris ou por Afrodite, as pedaladas hão-de levar-me lá". O céu caudaloso deixou-me todavia uma pequena preocupação a dançar na cabeça. Caso chovesse, umas molhas em cima do pêlo ali pelas serranias àquela altitude e a solo fariam mossa.
Até então, a uma semana da comemoração do dia inicial inteiro e limpo, os dias de Abril tinham ido farruscos; ventanias, chuva e frio.

(à esquerda, dos 3 picos o Picoto da Cebola é o do meio. Ao centro na linha do horizonte o maciço central da serra da Estrela)

O dia seguinte abriu inteiro e limpo, o primeiro depois de muitos cinzentos. Foi tudo rápido. Impaciente, logo de início pus-me a pedalar em força (erro crasso), passei rapidamente pela barragem, parei à pressa na fonte para encher os cantis (dois, pelo menos, que a sede vai apertar até lá acima), subi ofegante até à casa do Guarda e, em vez de virar à direita para o estadão das eólicas, segui em frente e, só aí, com o Adamastar à vista, parei para respirar. Estava já aos 900 m de altitude, sob o vale do rio Ceira e com a ponte de Fajão à vista. Dores nos músculos, nos tendões, nos joelhos ... (falta de aquecimento inicial e a idade não perdoa e blá, blá, blá ...  que se lixe e vamos mas é embora que se faz tarde - o que eu tenho que pedalar para lá chegar).

(o picoto da Cebola é o cone que se vê ligeiramente à direita na linha do horizonte)

Nada a fazer senão continuar. E continuar forçando os músculos com uma bela subida. Voltei atrás para o estradão das eólicas. Iria a direiro em vez de fazer a meia encostas como planeara de início. Uma a uma as dores foram desaparecendo e a procissão ia ainda no adro. Mais um pouco e Fajão, avistado por entre paredes de xisto, ia ficando longe e cada vez mais em baixo. Para Norte céu limpo. Haveria ainda de descer para, de novo voltar a subir. E o céu foi limpando, algumas nuvens a Este dissiparam-se, e a luz encheu as serranias intensamente.


Pouco me detive até ao cume do Adamastor. Não quis parar, não quis tirar fotografias, queria apenas pedalar pelas cumeadas sem qualquer objectivo, sem pensar em disparar o telemóvel, apenas interessado em pedalar contra o vento,  deixar vadiar o olhar, sentir os odores e a distância.
O estradão das eólica fez-se rapidamente. À medida que nos aproximamos, o Adamastror vai-se erguendo imponente, vai-se agigantando, tapando parte do céu.



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( aldeia de Ceiroco que surge na série de televisão "Benvindos a Beirais" como sendo Beirais!)

Fajão estava para trás, escondido na encosta dos penedos de Fajão em forma de bossa ao fundo do vale por ponde serpenteia o jovem rio Ceira (nascido por ali, um pouco acima)



Estava já sobre Ceiroco quase no sopé do Adamastor. Tinha pedalado bem mas faltava dobrar o cabo. Que as musas me acompanhassem !



No sopé, no cruzamento da Covanca, corta-se à direita para o estradão e sabe-se que, a partir daí e até lá acima será o que o cabo da Boa Esperança foi para Bartolomeu Dias, um cabo das tormentas. O estradão sinuoso e ondulado formando pequenas ondas dificultam a subida, a gravilha solta faz derrapar a roda e a inclinação dá a ideia de que aquilo não vai dar a lado nenhum. A road to nowhere. Eu nunca penso em chegar lá acima, apenas pedalo, uma e outra vez, quase em transe. Às vezes, nas serranias pedalo por caminhos tão inclinados (um dia, num grupo com parceiros, todos a soltar umas imprecações tabernáculos, subindo a custo, alguém mediu a inclinação: íamos numa inclinação de 30%) que tenho que me deitar sobre a roda da frente da bike para evitar que levante e me estatele de costas com mortal encarpado à retaguarda. Há uma disciplina intrínseca que nos mantém ali, e nos move. Nem sequer passa pela cabeça desistir ou pensar que não se é capaz. Depois de tantos anos a pedalar entro facilmente neste estado de pouca lucidez. Não é uma subida em êxtase, olhando a paisagem; "olha lá está o belo vale do rio Ceira e que extraodinárias estão as encostas cobertas de flores, já para não falar do fantástico maciço da estrela coberto de neve ..." Por vezes espreito e vejo tudo isto mas na maior parte do tempo as paisagens que se me atravessam na mente são interiores; são as que tenho inscritas na memória. Vêm-me ideias, revejo situações, vou em mind wandering, tomo decisões sobre aspectos da minha vida sem perceber que as tomei e, mais tarde, nas situações em que a decisão se efectiva, ao contrário do que gostamos de pensar, não foi o resultado de uma análise racional. A decisão já estava no cérebro em resultado do mind wandering. E, pelos vistos, nós fazemos isto com frequência.

Cheguei. Pus-me a olhar. Quando olho as lonjuras nada fixo. Não vejo detalhes, apenas a paisagem inteira. Fico a olhar para lado nenhum. Depois de muito tempo a olhar, por vezes, dou conta de detalhes; umas casas ao longe, árvores e pedras, estradas, aves que por ali planam ...  Em muitos outros aspectos da vida faço o mesmo; só me interessam as coisas na globalidade, passo à frente de detalhes e pormenores, interessam-me os conceitos e a global picture. Às vezes perguntam-me de que cor é o cabelo de alguém com quem estive, como é o nariz, se usa barba, se usa óculos,  etc. e muitas vezes não sei dizer. Tenho que tentar descontrair para tentar recordar os detalhes. Sei outras coisas que não me perguntam.

Tinha feitos os últimos metros pelo estradão ladeado de torgas sem disso ter dado conta. 



Uns farrapinhos de neve no maciço da Estrela e as encostas cobertas de torgas a perder de vista.´


Encosta-se a bike ao marco geodésico do picoto aos 1400 m como quem pede um café faxavor numa esplanada qualquer.  Com a maior naturalidade. Afinal apenas subi o que havia para subir. Enquanto lá não penso em nada. Às vezes quando, aqui em casa, vejo as fotografias quase que tudo me parece irreal porque não me lembro de quase nada, de detalhes.



Do Picoto, diz-se, avista-se cerca de um terço do território Nacional. Já o fiz anteriormente e postei-o aqui mas, de novo, fiz um videozinho a 360 graus no Picoto. Começa a Este, no planalto da Estrela. Depois viro para Sul, percebendo-se a serra Gata e Espanha e, logo depois, a serra da Gardunha. Seguem-se as terras para os lados das portas de Rodão (e talvez a serra de S. Mamede). A luz inunda a terra e os contrastes perdem-se. Continuando a rodar amplio a barragem de Sta Luzia de onde parti e, depois, para Oeste a serra da Lousã (que também amplio). Para Norte surge a Serra do Caramulo (nova ampliação para mostrar o cone do Caramulinho) e por detrás as serranias ainda mais a Norte.






Não posso ficar ali todo o dia. Life must go on somewhere else. Às vezes, muitas vezes, descer é uma desilusão. 



Horas e muitas pedaladas depois estava de novo nas margens da barragem de Sta Luzia. Local de partida. Entretanto, as nuvens tinham voltado e coberto parte do céu a Este.





O dia terminava. O penedo do lado Norte da barragem reflectia o Sol poente, em contraste com a noite que já se instalava nos vales.





quinta-feira, 9 de maio de 2019

A realidade um palmo à frente do nariz

Maio 2019


(a música de Einaudi pode servir para adicionar à música espectral do videozinho em baixo. A ideia é ouvir ambos ao mesmo tempo)


(Ludovico Einaudi - Questa Volta)


Nota: Carregar no "play" e ver o videozinho até ao final implica usar de modo irreversível 2 min 47 s da vida. Serão 2 min e 47 s que não mais poderão ser usados em qualquer outra actividade (isto se os físicos, entretanto, não chegarem à conclusão que o tempo é reversível). É uma escolha arriscada (como todas as escolhas irreversíveis). Se a seguir se quiser tomar um café serão outros dois minutos da vida, e não estes, que terão que ser usados. O mesmo se aplica nos casos em que se queira dar um beijo, respirar fundo, atravessar a rua, ler uma mensagem, fazer meia dúzia de cliques num telemóvel,  pensar na morte da bezerra, olhar para o céu, discutir com o filho da puta que atirou o saco de lixo para o meio dos arbustos da berma da estrada, fazer uma festa ao cão, beber um cálice de Tawny, etc.

Pode, evidentemente, ver-se apenas parcialmente. Por exemplo, 30 s. Mas, paradoxalmente, neste caso perder-se-iam 2 min e 17 s do videozinho que mostra a realidade um palmo à frente do nariz.




domingo, 5 de maio de 2019

Gondramaz aldeia do xisto e a raposa que foi ao pão

Serra da Lousã
Fevereiro 2019


Às tantas, estava pedalar por caminhos por onde nunca o tinha feito. Meia encosta, por volta dos 600 m de altitude, depois de uma bela e dura subida atingira um caminho plano, ladeado de pinheiros e vistas para o vale até à serra do Buçaco. Durante a subida encontrei uma casal, talvez por volta dos 70, que apanhava caruma. Um cão de palmo, dos que não se vêem mas se ouvem tal o ladrar estridente, mal me viu, transformou-se num tigre dente de sabre como, aliás, acontece com todos os cães, independente do tamanho e do temperamento, quando vêem uma bicicleta. Eles chamavam-no sabendo de antemão que o tigres dente de sabre não obedecem a ordens, sobretudo ordens vindas de quem, no ambiente bucólico pinhal, apanha caruma para um saco. No caminho estava estacionado o veículo que os tinha transportado até ali e que, likely, serviria para levar os sacos com caruma. O bucolismo da história estava mesmo a pedir um burro ou uma carroça ali estacionada. Não, era uma moto 4! Extraordinário. Tinham uma moto 4.

Tendo decidido pedalar por caminhos nunca dantes pedalados, dei de caras, quer dizer de rodas, com a fonte. Uma fonte ali num caminho remoto, pedregoso, onde ninguém passa. Uma fonte que, pela sofisticação estrutural (digamos assim) me dizia que aquele tinha sido uma caminho importante, uma caminho usado pelas povoações serranas nas deslocações inter-aldeias (digamos assim outra vez).


Com a água da bica jorrava também um tufo de ervas


Um caminho de árvores abraçadas



estas últimas à beira de um riacho (não passaria despercebido pois ouvira o cantarolar da água muito antes de lá ter chegado)



e vistas sobre as serranias cobertas de pinheiros; uma visão que se tornou rara em muitas das serranias da Beira depois de anos de devastação pelo fogo.




Por ali fora, aragem morna, aromas a querer inundar a serra, como que uns arrufos de Primavera e, às tantas, como de costume, numa curva do caminho por entre ramos de carvalhos e castanheiros, lá estava: a aldeia de xisto do Gondramaz. Desde que saíra de casa eu levava um plano: ir ao Gondramaz.




À entrada da aldeia, do lado de quem vem da serra pelo caminho empedrado com xisto,



ladeada por muros de pedra antigos.



 surge na curva do caminho (há sempre outra curva no caminho) a fantástica casa sobranceira ao vale.




Muitas vezes passo pelas aldeias de xisto como raposa por vinha vindimada. "Não me vou meter por ali abaixo, sigo". Algumas aldeias na serra ficam em encostas íngremes. Desta vez, meti-me por ali abaixo (é que depois há o vir por ali acima).


Passei no Beco do Tintol (de novo, com algum pesar, como raposa por vinha vindimada) e segui.


Pelos vistos bem encaminhado por um marketing eficaz.


Cebolas? Não posso levar na bike. Noutra situação teria entrado com "quidado"  e comprado cebolas.


Mais um pouco por ali abaixo e virei na esquina do largo dos petiscos (terra com nomes como deve ser - toponímia?)



O beco estreitou um pouco e, às tantas, vejo um vulto a subir na minha direcção. Assim que me viu fugiu em sentido inverso. Baixo, quatro patas, escuro, duas orelhas a decorar um focinho - não levo óculos mas lentes quando pedalo e, com as lentes, vejo mais ou menos bem entre o 1 e 3 metros, o ideal para ver onde ponho a roda da frente da bike e traçar uma trajectória, mais perto ou mais longe a acuidade é o que se pode arranjar, to say the least. Um cão, tudo levava a crer que seria um cão pequeno. Mas algum coisa não encaixava. O meu cérebro não encaixava o vulto que vi nos padrões de cães armazenados na memória (é assim que funcionamos) e, além disso, deve ter detectado um padrão que coincidia com outro animal (a visão não estava a ajudar). Talvez o comportamento fugidio do animal, talvez uma cauda desproporcionada ..., aliás, acho que também é assim (coleccionar padrões) que na Inteligência Artificial se "ensina" a máquina (ou o robot para ficar mais claro). Nisto, continuando por ali abaixo, ouço uma voz feminina: "anda cá, toma, bichinha anda cá". A rua abria-se num pequeno largo. Primeiro vi a mulher, dobrada a apanhar alguma coisa. Logo atrás, o vulto canínico.


"Bichinha toma, anda cá, bichinha, bichinha". Com a naturalidade e o à-vontade de quem dá milho às galinhas, a senhora atirava pedaços de pão à raposa. "Bichinha, bichinha, toma, anda cá".  Ela, a raposa, de volta, desconfiada mas sem arredar pé, de um lado para o outro, percorrendo todo o largo. De vez em quando abocanhava um pedaço. Depois fugia (de modo pouco convincente).


Curiosamente, só agora dei conta que junto ao balcão, por trás da senhora, está uma escultura que parece ser um cão.

Eu ali, tentando passar despercebido, telemóvel na mão, não querendo perturbar, mantendo-me no beco sem entrar no largo mas ... como seria previsível a raposa estava nervosa com a minha presença. De vez em quando saltava para cima do muro à esquerda, depois voltava para mais um pedaço de pão, afastando-se novamente. A cena não durou muito; no instante em que me preparava para fazer um videozinho a bicha pirou-se. Falei com a senhora: "sim, ela vem cá muitas vezes, damos-lhe pão e pedacinhos de carne, é uma amiga nossa, depois volta lá para a vida dela, para os montes".

E vamos embora que se faz tarde. Back home, que é como quem diz, mais umas belas pedaladas a meia encosta, cerca dos 800m altitude, pelo caminho que desenha as curvas da serra, as concavidades dos vales, com vistas sobre o imenso vale até à serra do Caramulo.  E, no caminho, verei Gondramaz ao longe.

(Gondramaz ao centro e em cima na encosta mais ao longe)

E o caminho levar-me-á à floresta de coníferas do Terreiro das Bruxas.




Mas, logo à saída do Gondramaz, parei junto a um riacho para o brunch: uma banana e água da fonte. Com os olhos a percorrer os fios de água, as ervas envolventes, os raios de Sol que se esgueiravam por entre as copas, percebi alguma coisa invulgar. Pus-me a gravar um videozinho enquanto caminhava riacho acima. Não se nota mas trata-se de um pequeno rego (um canal) proveniente de uma "presa" (tanque que aprisiona a água). Tudo feito com muros de pedra que, com o tempo, se foram desmoronando ao mesmo tempo que se cobriam de vida. Seguramente um canal para rega feito pelos habitantes de há 50, 70, 100 anos?