Agosto 2017
A paisagem poderia
ser a da memória. A memória das cumeadas do Açôr. Dos horizontes longínquos. Mas
não, foi o que se podia ver.
Somos peritos a
preencher os espaços em branco. Olhamos e o cérebro preenche os espaços que faltam
face ao padrão armazenado na memória. Muitas vezes, se distraídos, vemos apenas
com a memória. Acontece na leitura e na paisagem. E, chegado a este topo, onde
já tantas vezes passei tempo a olhar o horizonte, em dias límpidos e céu azul,
seria “normal” que num dia como o de hoje - baço, com horizonte indistinto,
montes apagados da paisagem pelo ar baço sob o céu pardo, e tendo na memória o
recorte do horizonte que não vejo, o planalto da Estrela para Este, o cume da
serra da Lousã para Oeste, o Caramulo para Norte, etc, - a minha memória
reconstruísse a paisagem, preenchesse o horizonte. Mas não. Vejo o que me
rodeia, sem reconstrução. Estou treinado para isso. Sempre fiz este tipo de
jogos. Há anos que o faço. Dá-me gozo fintar a mim próprio, perturbar o cérebro,
autoperturbar-se. Por exemplo, trabalhei durante muitos anos num local em que
um dos acessos se fazia por um longo corredor com paredes revestidas com azulejos
do séc. XVII. Mas não eram as paredes que mais me atraíam. No chão os ladrilhos
desenhavam um padrão cúbico cuja tridimensionalidade poderia ser vista de duas
maneiras. Quando só, caminhava pelo corredor com os olhos pregados no chão,
alternando a visão tridimensional em cada passada. Tique taque, tique taque,
tique taque, como nos ponteiros de um relógio, ver de uma maneira, ver de
outra, ver de cima, ver de baixo, em cada passada, em cada segundo eu via o
chão a três dimensões de duas maneiras distintas a partir do mesmo padrão a
duas dimensões.
No Verão volto à
serra do Açôr. Ao imenso Açôr. Às pedaladas sob céu azul, azulíssimo em todo o
horizonte. Sob calor. À medida que se pedala pelas serranias acima, os braços e
as pernas brilham; o suor reflectindo a luz do Sol. Mas, desta vez, o céu é
pardo. Do marco geodésico onde estou, a cerca de 1100 m, os contornos das
serranias diluem-se na distância. Os incêndios dos últimos dias (a toda a
volta: da Lousã, a Vila de Rei, ao Fundão e a Castelo Novo) deixaram o ar
pesado, turvo por micropartículas suspensas que apagam a paisagem.
Olho e vejo o que
me rodeia. Naturalmente, sem qualquer esforço e sem pensar nisso (penso agora),
evito que a memória preencha os espaços em branco. O treino permite-me ver
sempre de modo novo. E isto, parecendo uma trivialidade, uma Lapalissada, é
incomum.
(em baixo a
albufeira da barragem de Sta. Luzia apenas com “uma pinga d’água”)
Pare Este, onde
imponente se deveria erguer o planalto central da Estrela, desenhando a linha do horizonte, há um céu
baço.
(paragem para as
primeiras amoras. Estas silvas rasteiras a esta altitude carregadas de amoras
(à esquerda) é uma coisa nova. Não me lembro de por aqui as ver em anos
anteriores)
Para Sul.
Este é o caminho
(por assim dizer) que me levará lá abaixo, à barragem.