(Dezembro 2017)
Há cerca de 10 anos plantei um castanheiro. Foi, tanto quanto me lembro, uns meses após o último grande incêndio que devastou estas serranias. Na altura, após o fogo, as encostas vieram por aí abaixo em enxurrada. Logo depois do fogo chovera a potes, em torrente. Pedras e muros antigos que delimitavam as pequenas parcelas de terreno em socalco foram arrastadas por "barrocos" que se transformaram em rios furiosos. Inacreditável. Inacreditável ver a horta onde tanto esforço tinha posto, os muros centenários, árvores inteiras numa vertigem turbulenta aos trambolhões arrastados pela água. Com as pedras que por ali se plantaram fiz muros, desenterrei cerejeiras e figueiras soterradas, cuidei das videiras e a coisa foi indo, tudo foi florescendo por entre as pedras. Depois vieram as silvas, os fetos e as giestas. E lá fui indo à força de braços (ali nem um pequeno tractor chega, tal os desconchavo do caminho de acesso), enxada nas unhas, sacos de estrume às costas, cuidando, estrumando, cortando, podando, roçando. Arranjei a mina. As cerejeiras floresceram, a figueira também e a tangerineira o mesmo, os pessegueiros nem por isso e as oliveiras rebentaram. Um dia, junto ao muro deitado abaixo, plantei um castanheiro. Este ano, pela primeira vez, o castanheiro tinha ouriços. Vi-os no Verão. O castanheiro, já mais alto que eu, ia dar castanhas. Deu. Assadas. Que puta de ironia. Gosto de castanhas assadas, o castanheiro que plantei deu castanhas pela primeira vez, assadas. Em Outubro passado, o fogo apareceu por baixo, pelo vale, poupou a aldeia (uma sorte pois tições de palmo e meio iam caindo pelos quintais mas, não tendo faltado a água da rede, foram sendo apagados pela meia dúzia de habitantes) mas queimou tudo à volta. As árvores e videiras que plantei, as oliveiras que tratei ... estão mortas, o terreno que cavei está negro. Os ouriços arderam no castanheiro. Encontrei castanhas assadas no chão e ainda algumas em dois ou três ouriços no castanheiro.
Foi a primeira vez que aqui vim depois do fogo. Previa o que encontraria. O caminho para lá, outrora verde, pejado de arbustos, tojos, raízes e etc, era um livro aberto sobre o que se passara.
Uma devastação. Tudo morto.
O mesmo nas outras pequenas parcelas de terreno dos poucos e idosos habitantes locais. Oliveiras que davam azeite e que, sobretudo, lhes incutiam preocupação (e como a preocupação é essencial ao bom funcionamento do cérebro), cuidados, lhes permitiam fazer planos, ocupando-os, a horta com legumes frescos, videiras das quais fazia uma bela de uma surrapa imbebível mas era a surrapa deles (e que, quando me oferecida, a bebia com prazer) e umas batatinhas, poucas que a força para as cavar já não era muita, mais umas frutas, maçãs, pêras e cerejas ... Também estas ocupações morreram. Também esta força o fogo queimou. Aqui e em dezenas de outras aldeias espalhadas pela serra do Açôr. E não foi nem o destino nem o azar, foi alguém que ateou os incêndios. Não é uma fezada o que digo, é a Química que nos ensina isso (a energia de activação na reacção em cadeia, caro Watson). Parece que as causas não interessam a ninguém.