Serra da Lousã
(Junho 2019)
Depois de uma shitty week, atolado em fucking bureaucracy, estava com ganas de passar um dia de pedaladas pelas serranias. Quis o destino e o alinhamento dos astros, com particular destaque para a sintonia dos anéis de saturno com a galáxia ia XVr2Z51B sob ligeira influência de alguns fotões perdidos provenientes do Sol, que se me proporcionasse um Sábado sozinho em casa (com a minha cachorrinha) e, portanto, com o tempo por minha inteira conta.
Saí ao fim da manhã, depois de uma visita breve ao mercado acompanhado pela madame de quatro patas. Bike verificada e com a barriga já a pedir papinha (porque o pequeno almoço já lá ia "
mas que lixe não me vou demorar mais"), meti uma banana, um pedaço de marmelada e uma barra de Isostar (merdilhices que ás vezes me dão ou compro e que como nunca como acabo por deitar fora porque atingem o prazo de validade - mas que levo para uma emergência) nos bolsos da jersey. Água apenas um cantil de 750 ml.
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Ciao bella, faz óó que eu já venho.
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Ão, ão, ão ...
Pela EN236 acima em força. Temperatura amena. Inclinação suave. Mal dei conta estava no Candal e já iam 11 km a subir. Paragem na fonte para encher o cantil e a barriga de água. O Candal fica a meia encosta, a meio da subida pela EN236. A partir daí as coisas vão mudando; mais inclinação, maior imprevisibilidade no tempo, mais abetos e castanheiros, mais vistas sobre as lonjuras ... Antes de descer para a Castanheira de Pêra, deixei a EN236 e cortei à esquerda para o caminho sobre o vale do Coentral. É um belíssimo vale. Luminoso e a perder de vista, encimado pelo St. António da Neve. Comecei a sentir os odores orgânicos que indiciavam a presença por perto de animais, fezes cujo conteúdo (se têm caroços ou não), cor e formato revelavam o fazedor de quatro patas da coisa, o vento que se metia pelo vale acima e por aí fora.
Contornar todo o vale leva tempo. À medida que pedalava ia olhando lá para cima, para o St. António da Neve aos 1200 m e fazendo planos:
quando chegar ao estradão que vem do Coentral viro à esquerda e depois logo vejo se vou ao St. António - mas isso vai dar uma granda volta - ou se sigo para o Trevim. Ao mesmo tempo, um caminho sinuoso e íngreme que fizera há anos, contornando a serra e atingindo o St. António pelo outro lado, e que bem via do estradão que levava, inquietava-me a cabeça;
não te metas lá pá, serão umas duas horas, nem sequer tens água, aquilo é inclinado p'ra caraças, uma cascalheira infernal, ficas cada vez mais longe , ainda por cima aquilo é completamente isolado pá, és tolo ou quê? ... Quando cheguei ao estradão. em vez de virar à esquerda, pensei em explorar o tal caminho mas apenas um bocadinho;
vou só até à curva ver as vistas e, depois, volto para trás. Já agora mais um bocadinho. Afinal, já não me lembrava muito bem, mas o caminho era largo, estava limpo, pouco inclinado, isolado sim mas as vistas valiam pela inquietação.
E fui indo, sabendo qual seria a conclusão:
já que estou aqui não vou voltar atrás, vou dar a volta.
Uma bifurcação, o belo caminho plano e limpo seguia para baixo para o vale e um trilho estreito e íngreme para cima, para o St. António da Neve. Obviamente, segui para cima pelo trilho. Às tantas comecei a fazer contas; água muito pouca, a temperatura no meu computador da bike marcava 37 graus, vento nada, tinha comido a banana quando acabei de subir serra e já estava a sentir fome. A coisa complicou-se. Comecei a dar pequenos golos de água, poupando-a. Quente mas era água. A última vez que ali tinha passado, há anos, tinha sido a descer com dois parceiros e vínhamos em hipotermia devido a uma tempestade de neve e granizo que apanháramos no St. António. Agora ia ali quase sem água, sob calor intenso e a deitar contas à vida. Derrapei algumas vezes tanta era a inclinação. As pernas começaram a ficar pesadas. Devagar, muito devagar, cheguei aos 4-5 Km/h (uma marcha lenta). Nunca mais dali saía. Pensei comer a marmelada ou a barra isostar mas não teria saliva para a mastigar. A cabeça a latejar, sentindo o sangue nas carótidas. O melhor é cantar para me distrair, pensei.
Oh rama, oh que linda rama, oooooohhhhh rraaaaaamaaaa da oooolivveeeiiir... não consegui; a garganta e a mucosa da boca colavam-se de tão secas. Nestas alturas nem pensar em parar de pedalar. Olhar fixo em frente e uma e outra e outra pedalada e ... surge a reprogramação metabólica. Há receptores e sensores moleculares nas células que, face a situações de stresse, alteram o metabolismo em função dos estímulos externos e necessidade energética. Dentro de limites há adaptação à nova situação. A coisa começa a ficar controlada. A situação aguda de aflição dá origem a uma situação crónica de esforço controlável. Estamos à beira do precipício mas de súbito ganhamos asas. A dificuldade está em nos mantermos o tempo suficiente na
fine line que separa o
on do
off; continuar o esforço ou desistir. Percebi que mais um pouco e atingiria um estradão de eólicas lá mais acima, na cumeada. Antes disso o caminho alargou, aplanou e ... parei.
Logo depois atingi o estradão das eólicas. Estava aos 1000 m e o St. António lá em cima à esquerda aos 1200 m. Voltou a brisa. O estradão, aparentemente plano, tinha rampas do catano. Tinha que comer alguma coisa. Entre a marmelada e a barra Isostar optei pela última. Não foi bem comer foi mais ruminar. Tentei verificar a validade da barra mas não focava o raio das letras. Lá foi. Um dedo de água quente no cantil. Antes de atingir o St. António acabar-se-me-ia a água.
Cheguei. A partir dali sabia que, tirando uma subida ou outra, seria tudo a descer até à Lousã.
Para Este a cordilheira do Açor e, no horizonte, quase invisível devido ao
haze, o maciço da Estrela.
Para sul
e para sudoeste, serranias a perder de vista.
Mal comecei a descer pela encosta Norte tentei ver se, junto aos
Poços da Neve , havia água. Debalde. Sabia da bela fonte na floresta uns Km mais abaixo. Num instante estaria lá.
Extraordinariamente, de súbito a temperatura caiu para os 21 graus. Dos 30 e tal quase 40 do lado Sul, na cascalheira a pique sob Sol intenso, para o "frio" do lado Norte. Passei no sopé do Trevim e nas curvas sombrias sentia arrepios de frio
Depois de tantas horas vi pessoas; junto ao baloiço, evidentemente. Pediram-me que lhes tirasse uma fotografia e retribuíram o acto.
O lado Norte estava coberto por uma neblina húmida. Meti-me na floresta e parei na fonte.
Aahhhhhh ... água fresca.
Estava ainda aos 900 m mas com a sensação de estar a um pulo de casa. Cheguei por volta das 6 da tarde. Tantas horas e tinha comido apenas uma banana e uma merdilhice de uma barra. Fiz o almoço: comi duas laranjas para entrada, depois uma sopa de alho françês, um robalo na frigideira (barrado em azeite, colocado na frigideira anti-aderente em lume forte para tostar rapidamente a pele de ambos os lados, mantendo o interior suculento, sem nenhum tempero, leva apenas flor de sal quando colocado no prato) que partilhei com minha cachorrinha, arroz de tomate e cenoura (belos tomates coração de boi comprados no mercado), duas fatias de pão de centeio, meia caixa (pequenina) de mirtilos, meio litro de cerveja (Franziskaner comprada no LIDL), um pêssego ... e, assim de repente, não me lembro de mais nada.
Acabei de almoçar eram 8 horas da noite. Depois fui passear com a madame de 4 patas para ambos esticarmos as pernas.