1 de Janeiro de 2020
Céu limpo, vento fraco de quadrante do lado da serra, temperatura baixa (aquele friozinho que corta as orelhas) e está mesmo bom para começar 2020 em altitude.
Por um lado isto, por outro aquilo, o melhor é pôr-me a caminho da Torre - concluiu o ciclista extraordinário depois de ponderadamente (durante cerca de 2 segundos) ter avaliado a exigência da subida em função das poucas horas de sono e de outras variáveis da época, nomeadamente as que se reflectem na glicémia, na lipidémia, na colesterolémia e na alcoolémia, entre outras "émias".
E foi. Quer dizer, o ciclista extraordinário pôs-se a pedalar serra acima. Na casa do guarda, ao início da subida, passado o pelourinho e saído da cidade por rampas do caraças, logo uns km acima surge a casa do guarda onde jorra a bela fonte. Cantil cheio e talvez só na fonte da Nave de St. António, já acima dos 1600 m, o cantil se encha novamente.
Um pouco mais de azul, ou seja, um pouco mais de altitude e o avistamento da serra da Gardunha no horizonte, como uma ilha no mar de neblina, lembra o ciclista extraordinário que já ganhara uns metros, mas apenas alguns dos muitos que havia pela frente.
As primeiras voltas ao Sol que o ciclista extraordinário deu na sua vida, na infância, foram realizadas neste vale do Planeta Terra.
Nessa altura, o ciclista extraordinário (que não o era ainda), tal como todas as outras pessoas, estava bem integrado na Biosfera, em sinergia com os outros seres vivos. Havia os animais (galinhas, coelhos, porcos) que se tratavam e se comiam, as plantas que se plantavam e comiam e as sobras dos animais (incluindo as nossas) que eram usados para fertilizar a terra. Não havia plásticos mas cartuchos de papel que se usavam para comprar 250 g de arroz, de açúcar ou de café. Na altura do frio e na altura do calor tinha-se frio e calor, respectivamente. Os ciclos circadianos de cada um estava em fase com o clima. E isto era importante. O frio atenuava-se à fogueira e nos dias de calor procurava-se a sombra ou um riacho. As células respondiam ao stresse, activando mecanismos de adaptação. Hoje vivemos em normotermia, quase sempre à mesma temperatura (ar condicionado todo o ano, 22 mais ou menos 2 graus e já está). O ciclista extraordinário não quer com isto pintar uma visão idílica do passado rude e rural - as dificuldades e miséria de tantos, a falta de acesso a cuidados de saúde e à educação, as consciências amansadas por ritos e cerimónias, nada se questionava, e por aí fora, tornavam a vida simplista, rotineira, desinteressante sem se saber ... - quer apenas ilustrar um conceito que muita gente ainda não percebeu; é que fazemos parte da biosfera com a qual estamos em equilíbrio dinâmico e, logo, o que fazemos induz perturbações no sistema. E estas perturbações têm implicações de natureza caótica, com alcance global (clima, repercussões retroactivas na nossa saúde e etc).
Ah, as pedaladas em altitude!
O Quinta da Pacheca tinto com 14% administrado por via oral durante o estágio da noite/madrugada anterior não se revelou eficaz em produzir o "burst" que o ciclista extraordinário precisava para os últimos 400 m em altitude (dos 1600 dos Piornos aos 2000 na Torre). À medida que se aproximava dos Cântaros, e ainda antes do túnel, o ciclista extraordinário concluiu que a dose talvez tenha sido excessiva e o efeito estaria fora da janela terapêutica. Mas c'est la vie e vamos pedalando que se faz tarde, daqui a pouco o Sol baixa e o frio vai ser do caraças, to say de least.
Por sorte, houve uns momentos adrenalínicos que auxiliaram as pedaladas ascendentes. Feriado, Sol, farrapos de neve no cimo da serra, logo ... milhões de carros serra acima. Alguns passavam tangentes ao ciclista extraordinário, dando-lhe oportunidade de tecer considerações tabernáculas aos berros e de punho levantado sobre a vida sexual do/a parceiro/a do condutor, bem como da respectiva mãe. Por vezes, sobretudo no caso de condutores machos, elaborava também sobre a fisionomia da zona frontal do crânio e a eventualidade da existência de apêndices pontiagudos que são vulgares em cervídeos. Nestas alturas a adrenalina escorria para o sangue e o ciclista extraordinário sentia claramente um kick off que auxiliava a subida.
Ganha-se altitude, abrem-se os horizontes o coração acelera um bocadinho, a luz do Sol fica mais limpa, o ar mais fino (as pernas mais pesadas não entram no relato) e a sensação de estar a transitar para uma órbita mais exterior fica mais nítida
À chegada é sempre a mesma coisa: olha já está! já não há mais caminho para subir!
E, commme d'habitude, na Torre, vou para o lado Oeste, para o lado das lonjuras, da cadeia montanhosa Estrela-Açor-Lousã. Os amarelos e laranjas prenunciavam o final de tarde
Os amarelos, os laranjas e ... os azuis. Os azuis do Açor, do imenso Açor
A bike, o instrumento de liberdade, o que quer que isto signifique.
Uns farrapitos de neve aqui e ali atraíam as centenas de pessoas no planalto do Cântaro Raso. O Sol baixava e o ciclista extraordinário agasalhou-se, apertou o blusão, enfiou o gorro até às orelhas, enrolou o lenço ao pescoço, tapando a boca e o nariz, respirou fundo e ... vamos lá então, a descida é longa e talvez haja luz para descer pelo lado de Unhais. Quando a sombra se instala nas encostas da serra àquela altitude, sente-se o frio que vem da terra. Mas o ciclista extraordinário estava a par do assunto. Desceu até ao topo do Covão do Ferro, no início do magnífico vale que dali desce pelo lado oposto ao outro magnífico, o vale Glaciário do Zêzere.
O sol vai baixo, se vou por ali às tantas a noite apanha-me antes da chegada a casa, ainda me tento a apanhar um caminho de terra e me perco, tornando as coisas piores, a porra do telemóvel quase sem bateria e depois querem saber onde estou e nada, às tantas tenho mesmo que ir pela estrada nacional - estas ideias bailavam na cabeça do ciclista extraordinário que entretanto, ficara por ali muito tempo a olhar e a respirar o ar fino ... e o tempo a passar.
Dali, o ciclista extraordinário seguiu pela estrada nacional.