quarta-feira, 24 de junho de 2020

luz clorofílica

10 de Junho, 2020


Por ali abaixo, pelo trilho que parecia desenhar-se à medida que me metia pelos fetos adentro. Na memória acendeu-se uma recordação de há mil anos. Ia por um caminho estreito e parcialmente tapado por fetos e que serpenteava por entre árvores num pinhal de chão atapetado por caruma e pinheiros grandes. Ia de bike, uma pasteleira que tinha arranjado e que cumpria todos os requisitos para pasteleira, nomeadamente suporte de ferro atrás, guarda-lamas de metal, selim em cabedal e com molas cromadas, campainha, farolim a dínamo ... e que pesava uns 25 Kg, mas dizia, por ali fora a pedalar, o palmo de terra que fazia o caminho por entre os fetos a desenhar-se à medida que pedalava quando, numa curva apertada, surge em frente uma "mina de água" e que, naqueles tempos em que o meu cérebro não tinha feedbacks inibitórios, me fez pular da bike, deixando-a cair com estrondo lá em baixo na mina, ficando eu agarrado cá em cima a umas giestas.
Desta vez, com um cérebro mais calibrado, por assim dizer, ia antecipando possíveis buracos e inesperados perigos por ali abaixo.



Parei numa curva, atraído por uma ribeira que cantarolava por ali. Sentei-me numa pedra atapetada de musgo verde para uma bela de uma laranja que levava n bolso da camisola. Verde. Tudo à volta era verde. Percebemos a cor devido aos comprimentos de onda da luz que são reflectidos para os olhos.



A clorofila devolve-nos o verde (por isso o vemos), absorvendo as outras cores (isto é, os outros comprimentos de onda) nas extremidades do espectro da luz visível, os azuis e vermelhos. Uma molécula extraordinária, a clorofila, uma antena que colhe a energia da luz do Sol e a cede (na fotossíntese) para produzir glicose e oxigénio a partir de dióxido de carbono (CO2) e água. E a glicose e o oxigénio fazem-nos bom proveito, como é bom de ver. O pãozinho é feito de quê? Ah, pois, então mas se as plantas utilizam CO2 (gás com efeito de estufa) quer dizer que o aumento do CO2 na atmosfera pode levar a uma produção agrícola mais eficaz ... mas e o aquecimento global? ... pois, mas já hoje se usa o aumento da concentração de CO2 em estufas para fazer crescer produtos agrícolas ... sim, mas não era esse o efeito de estufa em que estava a pensar, era mais o planeta, o degelo ... pois, mas mais produtos menos fome ... bom, fica para outra vez, é que desbobinar aqui ideias contra-corrente dilui o verde deste post.






(parecia um colibri, a flor)


Os fotopigmentos na nossa retina (localizados nos fotorecptores designados por cones) têm sensibilidade distinta aos diversos comprimentos de onda da luz; uns absorvem no azul, outros no verde e outros vermelho (ou lá muito perto, nos 550 e picos nm). Somos "tricromáticos" (a maioria de nós), já os cães são dicromáticos; têm apenas dois tipos de cones, uns sensíveis ao azul e outros ao amarelo. enquanto que nós vemos misturas de azul, verde e vermelho eles vêm misturas de azul e amarelo. Esta paisagem para o cão não é explosivamente verde mas, provavelmente, uns desmaios de amarelo acinzentado. O cérebro do cão pinta a natureza com uma paleta diferente da nossa. Seguramente tão complexa e interessante para eles como para nós.

Disparei a toda a volta, quase sem sair do local escolhido para roer a laranja. Ah, e o verde era húmido e a cor embalava no som do riacho que por ali corria.









domingo, 7 de junho de 2020

Here, there and everywhere e o Cebola

Finais de Maio de 2020

Tal como o Zappa que dizia, irónico, chegando mesmo a dar o título a um álbum com os Mothers of invention, "We're only in it for the money", (esta vírgula é importante porque é um grande fosso e não apenas uma pausa) também eu ando nisto apenas pelas fotografias. E estas são de uma travessia que já várias vezes fiz, pedalando parte da cadeia montanhosa que se atravessa no centro de Portugal, entre os vales dos rios Alva e Zêzere, o primeiro a Norte e o segundo a Sul, para não falar do Ceira que corre pelo meio da cordilheira, como que uma espinha dorsal liquida, fluída e variável (como quase tudo na vida). Logo (logo!), sem mais delongas let´s look at the photos. Apenas uma pequena introdução para salientar a instabilidade do tempo que acompanhou as pedaladas, desde o nevoeiro cerrado à partida, que nada deixava adivinhar quanto ao futuro, se chuva, se Sol, se nem por isso, ao Sol aberto no céu azul, quente, muito quente quando estava lá no alto e o Picoto da Cebola, o Adamastor da serra do Açor, ia ficando closer and closer, às nuvens acasteladas vindas de Sul, imprevisíveis com mil tons de cinzento e cortadas por raios - eu bem os via ao longe, sem saber se vinham se se iam - à passagem pela barragem de Sta. Luzia.  O resto da história conta-se em duas penadas e mil pedaladas: que prazer a travessia durante horas a solo pelas cumeadas com guinadas súbitas no tempo.

À saída de casa, a expectativa e o fresquinho da manhã, das sete da matina, ia bem com os aromas húmidos da erva e da terra.


Os horizontes só se revelaram pedaladas depois, já sobre o vale de Góis, pela mítica EN2 acima. À altitude que já levava, via claramente visto o nevoeiro a desenhar as voltas do rio Ceira vales afora. Já não seria primeira vez que pedalaria ao longo do rio, caso tivesse optado por continuar no vale. Mas eu queria era horizontes, queria o céu por cima da cabeça e o vento na face.


E, bem o sabia, mais pedalada menos pedalada, ele iria surgir. Ao longe. Ia a passar junto a uma horta com couves quando, na curva do caminho, ele surgiu na linha do horizonte


Ali, ao centro. O cone quase perfeito. O Adamastor do Açor.

Closer



Closer.  Faltava-me ainda pedalar todo o azul por ali fora.



O dia abria, a solidão acentuava-se (pois, por ali, além de mim, só alguns outros ou de quatro patas ou de duas asas), os caminhos que me esperavam eram agora nítidos nas encostas à minha frente e o Adamastor marcava a direcção. Gosto destas cumeadas varridas pelo vento e pela luz.


Sob a nuvem, à esquerda do Adamastor, o maciço central da serra da Estrela. Teria que me manter na cumeada, evitando subir e descer os montes à frente, rumo ao Picoto da Cebola, o Adamastor.


Para a frente e à volta, todos estes montes estavam em chamas há 2 anos atrás. Os grandes incêndios que devastaram estas serranias deixaram estes montes negros e quase estéreis. Hoje já mais verdes que castanhos mas ainda com as marcas da devastação; urze mas poucas árvores, insectos mas raras aves ou mamíferos.


Mil pedaladas depois, já com a barragem de Sta.Luzia à vista 


encostei a bike a uma árvore para o banquete (pão com marmelada e água da fonte) e, quase os pisava, olhei para o lado e ... morangos silvestres. Raramente os encontro. E tantos, quase enchi o bidão. Pequenos e deliciosos. 


Ir lá abaixo à barragem e voltar levar-me-ia mais de uma hora mas, naquele engano d'alma ledo e cego que, como é bem sabido, a fortuna não deixa durar muito, pensei: que se lixe (to say the least). O apelo era tremendo. Fui. 




Um fenómeno curioso tomou conta da paisagem; as nuvens que acastelavam muito rapidamente, o vento ora quente ora frio vindo de todos os lados, here, there and everywhere,




a luz heterogénea com tons quentes no céu e frios rente ao chão e à água ... Alguma coisa vinha aí. Pus-me a caminho.


Quando regressei às cumeadas, após a subida feita em força, pedalada a pedalada, adivinhando o que aí vinha, o céu transformou-se.





Depois deste céu, a história conta-se em pedras de granizo arremessadas das nuvens contra os óculos, o capacete, braços e pernas (para referir apenas os locais de embate mais óbvios), em água a entrar por todos os poros, um vento maluco às voltas que impedia as pedaladas, um barulho dos infernos vindo de todo o lado, o céu em cima da cabeça, como diria Assurancetourix, Abraracourcix, Bonemine & Co. Mas foi apenas um ciclista na tempestade. Uma tempestade do catano, com risco de acidente, de hipotermia, mas nada mais do que isso. Não foi um ciclista ligado a um ventilador numa unidade de cuidados intensivos, nem com um joelho na jugular, sequer um ciclista preocupado em saber se comeria no dia seguinte ou se teria água na torneira para tomar banho à chegada.

C'est la vie.