domingo, 7 de junho de 2020

Here, there and everywhere e o Cebola

Finais de Maio de 2020

Tal como o Zappa que dizia, irónico, chegando mesmo a dar o título a um álbum com os Mothers of invention, "We're only in it for the money", (esta vírgula é importante porque é um grande fosso e não apenas uma pausa) também eu ando nisto apenas pelas fotografias. E estas são de uma travessia que já várias vezes fiz, pedalando parte da cadeia montanhosa que se atravessa no centro de Portugal, entre os vales dos rios Alva e Zêzere, o primeiro a Norte e o segundo a Sul, para não falar do Ceira que corre pelo meio da cordilheira, como que uma espinha dorsal liquida, fluída e variável (como quase tudo na vida). Logo (logo!), sem mais delongas let´s look at the photos. Apenas uma pequena introdução para salientar a instabilidade do tempo que acompanhou as pedaladas, desde o nevoeiro cerrado à partida, que nada deixava adivinhar quanto ao futuro, se chuva, se Sol, se nem por isso, ao Sol aberto no céu azul, quente, muito quente quando estava lá no alto e o Picoto da Cebola, o Adamastor da serra do Açor, ia ficando closer and closer, às nuvens acasteladas vindas de Sul, imprevisíveis com mil tons de cinzento e cortadas por raios - eu bem os via ao longe, sem saber se vinham se se iam - à passagem pela barragem de Sta. Luzia.  O resto da história conta-se em duas penadas e mil pedaladas: que prazer a travessia durante horas a solo pelas cumeadas com guinadas súbitas no tempo.

À saída de casa, a expectativa e o fresquinho da manhã, das sete da matina, ia bem com os aromas húmidos da erva e da terra.


Os horizontes só se revelaram pedaladas depois, já sobre o vale de Góis, pela mítica EN2 acima. À altitude que já levava, via claramente visto o nevoeiro a desenhar as voltas do rio Ceira vales afora. Já não seria primeira vez que pedalaria ao longo do rio, caso tivesse optado por continuar no vale. Mas eu queria era horizontes, queria o céu por cima da cabeça e o vento na face.


E, bem o sabia, mais pedalada menos pedalada, ele iria surgir. Ao longe. Ia a passar junto a uma horta com couves quando, na curva do caminho, ele surgiu na linha do horizonte


Ali, ao centro. O cone quase perfeito. O Adamastor do Açor.

Closer



Closer.  Faltava-me ainda pedalar todo o azul por ali fora.



O dia abria, a solidão acentuava-se (pois, por ali, além de mim, só alguns outros ou de quatro patas ou de duas asas), os caminhos que me esperavam eram agora nítidos nas encostas à minha frente e o Adamastor marcava a direcção. Gosto destas cumeadas varridas pelo vento e pela luz.


Sob a nuvem, à esquerda do Adamastor, o maciço central da serra da Estrela. Teria que me manter na cumeada, evitando subir e descer os montes à frente, rumo ao Picoto da Cebola, o Adamastor.


Para a frente e à volta, todos estes montes estavam em chamas há 2 anos atrás. Os grandes incêndios que devastaram estas serranias deixaram estes montes negros e quase estéreis. Hoje já mais verdes que castanhos mas ainda com as marcas da devastação; urze mas poucas árvores, insectos mas raras aves ou mamíferos.


Mil pedaladas depois, já com a barragem de Sta.Luzia à vista 


encostei a bike a uma árvore para o banquete (pão com marmelada e água da fonte) e, quase os pisava, olhei para o lado e ... morangos silvestres. Raramente os encontro. E tantos, quase enchi o bidão. Pequenos e deliciosos. 


Ir lá abaixo à barragem e voltar levar-me-ia mais de uma hora mas, naquele engano d'alma ledo e cego que, como é bem sabido, a fortuna não deixa durar muito, pensei: que se lixe (to say the least). O apelo era tremendo. Fui. 




Um fenómeno curioso tomou conta da paisagem; as nuvens que acastelavam muito rapidamente, o vento ora quente ora frio vindo de todos os lados, here, there and everywhere,




a luz heterogénea com tons quentes no céu e frios rente ao chão e à água ... Alguma coisa vinha aí. Pus-me a caminho.


Quando regressei às cumeadas, após a subida feita em força, pedalada a pedalada, adivinhando o que aí vinha, o céu transformou-se.





Depois deste céu, a história conta-se em pedras de granizo arremessadas das nuvens contra os óculos, o capacete, braços e pernas (para referir apenas os locais de embate mais óbvios), em água a entrar por todos os poros, um vento maluco às voltas que impedia as pedaladas, um barulho dos infernos vindo de todo o lado, o céu em cima da cabeça, como diria Assurancetourix, Abraracourcix, Bonemine & Co. Mas foi apenas um ciclista na tempestade. Uma tempestade do catano, com risco de acidente, de hipotermia, mas nada mais do que isso. Não foi um ciclista ligado a um ventilador numa unidade de cuidados intensivos, nem com um joelho na jugular, sequer um ciclista preocupado em saber se comeria no dia seguinte ou se teria água na torneira para tomar banho à chegada.

C'est la vie.








11 comentários:

  1. Viva :)
    Andamos por lá no mesmo dia sim senhor. Bonita coincidência, pois ando um pouco parado e já andava há algum tempo com vontade de nova visita ao Açor saindo de casa.
    A granizada, foi violenta, deu para magoar. Mas, já vinha de barriga cheia foi o que valeu.
    Um dia destes, fazemos ponto de encontro no picoto da Cebola e vamos encher os cantis à beira do Ceira. Ou então quem sabe... no Trevim.
    A crista do São Pedro do Açor/Gondufo tem ligação às Pedras Lavradas há uns 10/12 anos, não sei precisar. Tem a idade daquela "plantação" de eólicas. É uma empinadela, que já a fiz no sentido contrário, mas sempre de bicicleta às costas.
    A Barragem de Santa Luzia é que nunca me fica tão à mão, como nestas voltas. Bonitos registos. É o que trazemos para casa ;)
    Até breve
    Abraço

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    1. Olá Tiago,
      É o que trazemos para casa :) Também acho. E a vista lavada (como dizia a minha avó) com os horizontes do Açor.
      Um dia há-de calhar um encontro numa das cristas do Açor e faremos um banquete de pão com marmelada e água do Ceira :)
      Boas pedaladas e um abraço
      João

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  2. que post fantástico!
    até se sente a brisa nos ouvidos e os olhos respiram fundo :-)

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    1. Olá Gato,
      Caso possa, e não conheça, dê uma volta por aquelas cumeadas. Podem fazer-se de carro: a partir de Góis EN2 serra acima até ao cruzamento de Alvares, deixa a EN2 para seguir em direcção da Pampilhosa da Serra mas uns 15 Km antes da vila corta para os lados de Fajão, onde não desce porque uns 3km à frente vai deparar-se-lhe a barragem de Sta. Luzia.
      Obrigado pelo comentário.
      João

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  3. E o James Paul McCartney, autor desta belíssima Here, There and Everywhere (dedicada à não menos bela Jane Asher) e de tantas outras inesquecíveis canções, faz hoje 78 anos!!!
    Não é possível: parece que foi ontem que eu pedi uma fotografia autografada aos Beatles... e a recebi, passando a ser a miúda mais invejada da minha rua e arredores. :))
    Ainda a tenho: velhinha e estalada como eu ;) mas isso C'est la vie!

    Comentada a banda sonora deste post, what can I say?
    Que gosto do Açor, do Cebola, da Barragem, de morangos, do azul e do frio da matina, que gosto um bocadinho do Joe que tinha uma garagem, que não gosto nada de saraivadas e que adorei as suas fotografias, especialmente as duas últimas, que estão assustadoramente belas.

    Bom fim de tarde, João.
    🌻
    Maria




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    1. Olá Maria,
      Se o assunto se divulga, um dia destes tem uma fila à porta para ver a fotografia ;) É uma história extraordinária.
      Só não percebi a parte do Joe ...
      João

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  4. Então João, qual é o músico que tem um tema (Joe's garage) que me foi recomendado, há umas luas atrás, por uma pessoa que gosta muito dele?
    Mr. Frank Zappa!
    (mencionado logo no início deste post).
    🌻

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    1. Zappa? Isso é uma marca de sapatos? O que é o Zappa? ;)

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    2. Sabia que ele também se chamava Vincent?
      Ah, pois é:
      Frank Vincent Zappa!
      É só googlar e fica a saber tudo about shoes...

      Bom Solstício.
      🌟

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  5. Ahhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh!!!

    Do you mean
    👞👞
    Brown shoes don't make it
    Brown shoes don't make it

    Humm... I think I prefer these ones
    👠👠
    Specially for biking in Italy

    😂
    Maria

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