sábado, 28 de março de 2020

2 minutos e 25 segundos + 36 segundos de Primavera 2020 nas terras altas da Beira

Março 2020

Ali, isolado. Pedalei 3h horas para ali chegar, serra acima, comme d'habitude.  Não vi vivalma. Isolado. Mas isso já eu não só previra como desejara. Ali, aos 1200 m. Antes, ao chegar ao planalto, a visão do cume coberto de nuvens exerceu uma atracção incontrolável a que não opus grande resistência. Para mais naquele isolamento. Tinha tido já um encontro imediato com um belo gamo que atravessou o caminho à minha frente num pulo acrobático (digo eu, para eles é o normal). É extraordinário: vamos por ali acima a pedalar em silêncio, de súbito ouvimos um ruído, olhamos em frente e vemos um animal que com uma leveza e elegância indescritíveis faz dois saltos transversalmente à nossa frente, desaparecendo num ápice. Quando tornamos a respirar, já tudo passou. E ficamos ali parados, a olhar, a tentar perceber se o que aconteceu, de facto, aconteceu. Depois, continua-se as pedalar.
Mal me meti na névoa fui ainda com mais atenção, os sentidos em alerta, um odor, um ruído, um vulto entre as árvores? ... o cérebro a integrar tudo, fazendo o ponto da situação ao segundo, tudo OK, não quero apanhar sustos. Na curva para o Sto. António da Neve outro encontro imediato do terceiro grau. Perto, muito perto, da encosta do lado esquerdo saiu um gamo, deu um pulo para a estrada e outro para o lado direito, desaparecendo. Grande e tão ágil. Saltam por ali, por entre pedras, arbustos, cascalheiras, locais em que teríamos dificuldade em caminhar ... Já percebi que, quando me sentem a aproximar, traçam uma linha de fuga perpendicular ao meu trajecto e seguem-na. Traçam o trajecto e seguem-no. Se estou muito perto não voltam atrás, não se desviam, seguem em frente em corrida como que hipnotizados. Isto diz-me que, caso esteja muito próximo, se me atravesso na sua linha de fuga, levo com um em cima. Deve ser um embate terrível.
Mas, tudo isto não tem qualquer interesse. Ia obcecado por pedalar envolto na neblina e quanto mais subia mais a sensação I don't give a shit se sobrepunha a qualquer receio. A subida final ao cume da Serra inicia-se pela encosta Sul e, a meio, já próximo do cume, vira-se para lado Oeste, o lado que encima o vale da ribeira de S. João. O vento tinha-se metido por ali, pelo vale acima e a névoa corria rente à urze, às vezes em golfadas, outras num fluxo contínuo. Foi ali que fiz os videozinhos. Ali. Eu isolado. O país em isolamento. O planeta Terra activo excepto uma espécie, o homo sapiens sapiens, confinada a nichos, os indivíduos da espécie sapiens sapiens isolados, evitando interacções que são precisamente a regra entre as outras espécies. Primavera de 2020. Nas terras altas da Beira. A temperatura era suficientemente amena, à volta de 12 °C, para o ar húmido trazer o aroma intenso da urze.

36 segundos de terras altas da Beira na Primavera 2020 (ouvir com som no máximo)


2 minutos e 26 segundos de terras altas da Beira na Primavera 2020 (ouvir com som no máximo)


terça-feira, 24 de março de 2020

Riacho vale de carvalhos e cedros e uma longa introdução

Março 2020

Videozinho feito há cerca de 2 meses. Nessa altura, a Terra mantinha o movimento de translação e o SARS-Cov-2 encontrava-se remotamente concentrado em nichos, no organismo de uma comunidade de morcegos, ou coisa parecida, o Sol nascia todos os dias, e por falar em dias estes iam chuvosos, o céu sobre a serra registava os rastos brancos do vapor de água dos aviões, alguns de entre os milhares que, em simultâneo, se cruzavam sobre a Europa, os riachos corriam, o encontro com amigos pedaleiros era festejado com abraços, as bichas nos supermercados e noutros lugares deixavam-me à beira de um ataque de nervos ...

Escrevi estes lugares-comuns como introdução ao videozinho. Porque, no fundo, a ideia é apenas colocar aqui um videozinho sobre um riacho. Mas pensei que deveria escrever qualquer coisa.

E, já agora, convém deixar claro que o videozinho não mostra os organismos microscópicos que por ali habitam a Terra junto ao riacho, o mesmo planeta que nós habitamos; vírus, bactérias, fungos microscópicos ... e cujos ecossistemas perturbados têm consequências imprevisíveis.

O Renè Thom (o matemático da Teoria das Catástrofes) escreveu um livro há muitos anos (e não me lembro bem se o diz explicitamente ou se fui eu que tirei umas pelas outras) onde defende que grandes transformações e saltos evolutivos/qualitativos na Biologia e na sociedade ocorrem nas bifurcações que as catástrofes abrem; ou vamos por um lado ou pelo outro, irreversivelmente. Tenho-me lembrado muito desta teoria ultimamente. Tenho-a até vertido em mensagens e emails a amigos.

A introdução já vai longa. Let´s look at the trailer:


domingo, 22 de março de 2020

Com sorte talvez apanhe um veado mas ... debalde

Março 2020

O ciclista extraordinário estava a chegar ao planalto da serra, a cerca de 1000 m de altitude, quando se lhe atravessou na mente uma vontade muito grande para parar e ficar ali na orla do bosque a olhar. Um castanheiro com o tronco coberto de musgo e iluminado pelo Sol pareceu-lhe um bom sítio para encostar a bike. O ciclista extraordinário gosta de castanheiros com troncos cobertos de musgo e iluminados pelo Sol. A fluorescência do tronco é luminosa e muito bela. O ciclista extraordinário ficou ali a olhar. Um olhar indefinido sem fixar qualquer detalhe. Depois, uma outra ideia se lhe atravessou na mente: "este é um sítio onde eles devem andar, está tão silencioso, e já os vi em sítios assim, e ouço ali em baixo água a correr, provavelmente vão lá beber ...." Nesta altura o ciclista extraordinário já não olhava sem olhar mas, ao contrário, estava de pálpebras semi-cerradas, fixando detalhes e tentando perscrutar por entre as árvores, os castanheiros, os carvalhos, os arbustos, algum vulto. Bem os conhece, por vezes ficam imóveis e olha-se sem os ver. Depois, num ápice, põem-se a correr por ali fora e só nessa altura se dá por eles.
Então, o ciclista extraordinário pegou no telemóvel e fez um videozinho; é que, com sorte, ainda apanharia algum veado. Não apanhou mas o bosque é belo.



O que seguramente apanhou foram bactérias, fungos, vírus e outros elementos da biosfera da qual o ciclista extraordinário faz parte. E ainda bem que apanhou. Para muitos, esta é uma ideia estranha: fazer parte da biosfera, ser influenciado na sua saúde pela perturbação dos ecossistemas ... mas fica a conversa para outra altura.

segunda-feira, 16 de março de 2020

Concentração urbana, biodiversidade, sistema imunitário ... e a vida no sec. XXI

Março 2020


Mais de metade da população humana habita concentrada em zonas urbanas. Um terço em bairros de lata, favelas e afins. Nos designados países desenvolvidos a percentagem é, em muitos casos, superior a 90%. Definições precisas de urbano e rural à parte (mais ou menos que X habitantes numa dada área), a concentração de humanos em grandes agregados é uma tendência recente - vista em termos da história da humanidade, bem entendido -, contando apenas alguns séculos.
Nos últimos anos, têm sido publicados artigos científicos sobre a "hipótese da Biodiversidade" (por exemplo aqui). É uma bela hipótese que pode ser formulada do seguinte modo: o contacto com o ambiente natural (com a natureza) enriquece o microbioma humano que, por sua vez, promove o equilíbrio/funcionalidade do sistema imune e protege de alergia e doenças inflamatórias.
Em duas palavras, as células dos nosso organismo vivem em simbiose com bactérias, fungos, vírus (e outros microorganismos) que habitam o intestino, pele e mucosas ... globalmente designadas por microbioma. Somos ecosistemas. Somos hospedeiros de uma quantidade imensa de microorganismos dos quais precisamos para nos manter com saúde. A relação/comunicação bi-direccional entre o microbioma e as "nossas" células é essencial à saúde. A alteração na biodiversidade e composição do microbioma, sobretudo o intestinal, tem sido associado a doenças (por exemplo, autismo e parkinson). Este microbioma que nos habita (o "nosso" microbioma) está em equilíbrio dinâmico com o microbioma externo ao nosso organismo, o microbioma ambiental (bactérias, fungos, vírus e outros microorganismos do solo, da água e das plantas).  O "nosso" microbioma é uma interface entre "nós" e o meio ambiente. Portanto, o que comemos, o que bebemos, o que inalamos e o que tocamos afecta  a composição do "nosso" microbioma que, por sua vez, influencia a actividade e funções das "nossas" células/orgãos/sistemas, em suma a nossa saúde e comportamento.
Pronto, feita a introdução, acho que agora se percebe a hipótese da Biodiversidade: a redução da biodiversidade do microbioma ambiental que ocorre nos centros urbanos (em comparação com o meio natural) tem impacto negativo no nosso microbioma e, reduzindo também a biodiversidade, leva a distúrbios na resposta imune e a risco aumentado de doenças inflamatórias. Visto ao contrário é mais interessante: o contacto com a natureza, noção que inclui o acto de tocar na terra, nas plantas, água ... aumenta a biodiversidade do nosso microbioma, promovendo a saúde.

E, se alguém leu isto, já deve estar a pensar: "então mas os vírus, o Corona e tal ... o contacto com a terra e os animais, os morcegos e outros hospedeiros !?" Claro que sim, que há riscos mas ter um microbioma biodiverso não atrapalha nada, pelo contrário suporta um ecossistema que ajuda a controlar as populações dos microorganismos potencialmente causadores de doença.

Bela hipótese.

Tocar a terra e as plantas



Imergir a mão na água que corre em riachos




Isn't life strange (Moody Blues)




sexta-feira, 13 de março de 2020

A civilização, as pestes e a Lei da Gravitação Universal

Março 2020

A maioria da população da Europa e da Ásia estava afectada por febre, dores de cabeça e vómitos. As pulgas e os piolhos (ao contrário do que se pensava os ratos estão inocentes), através da mordedura, tinham transmitido uma bactéria que infectava os gânglios linfáticos dos humanos. Estima-se que, apenas na Europa, tenha morrido 25-50% da população. Era a Peste Bubónica, uma pandemia devastadora que se foi arrastando do sec XIV até ao sec. XVII (bolsas residuais continuaram a existir até ao sec XX e o médico Português Ricardo Jorge - o que deu o nome ao Instituto! - teve um papel importante no estudo da doença).

Em 1665, a Universidade de Cambridge fechou temporariamente devido à peste. Os professores e alunos foram trabalhar para casa. Entre eles, Isaac Newton. Em casa, e sem acesso a ferramentas de ensino à distância, Newton aproveitou o tempo para desenvolver o Cálculo e a Lei da Gravitação Universal, dois dos maiores feitos humanos.
Tomou notas e "fez as contas" num caderno herdado do padastro. Este:

(University of Cambridge, Virtual Library)

A Lei foi publicada mais tarde, em 1687, nos "Princípios Matemáticos da Filosofia Natural":



Quase que me esquecia: este é um blog sobre bicicletas. Hoje, dia em que escolas e universidades vão encerrar devido à pandemia do Covid-19, a serra estava coberta por um manto de nuvens lá no topo, a luz estava pálida e doce, alguns riachos fugazes, alimentados pelas chuvas recentes, corriam pelas encostas ... e corriam, sabemo-lo desde 1687, devido à gravidade. O mesmo se aplica à chuva que caiu, às nuvens "pousadas" nas encostas, às rodas da bike que rolam sobre o chão ... e às gotículas contendo o coronavírus expelidas pelo nariz dos que já contraíram a doença.




domingo, 8 de março de 2020

Vem lá a chuva

Março 2020

Ouvia isto ("vem lá a chuva"), dito pela minha avó que, com os olhos semicerrados, fixando o olhar ao longe sobre as encostas da Estrela, percebia pela humidade do ar, pelas névoas que se amontoavam sobre os montes, pela luz que empalidecia, que a chuva chegaria em breve e que, portanto, era preciso guardar isto e aquilo, antes que "ela" chegasse. E apressávamo-nos para chegar a casa antes "d'ela".
Foi há muitos anos.

Hoje, ali aos 960 m de altitude, sob o imenso vale da Beira, desde o mar a Oeste (à esquerda) até ao maciço central da Estrela a Este (à direita), cerca de dois terços de Portugal na transversal, assisti à chegada da chuva. A neblina branca, proveniente do oceano a Oeste, lentamente inundava todo o vale rente à terra. Depois foi subindo. Via-a claramente ali em cima. O picoto da Cebola no Açor ainda nítido, acima da nuvem branca.  O planalto da Estrela já invisível. A paisagem cada vez mais indistinta, a terra fundindo-se com o céu, o ar cada vez mais húmido ... mal começasse a descer enfrentaria a nuvem; sabia-o bem. Uma beleza imensa. 



E mais cedo que tarde foi o que aconteceu. Yes !


segunda-feira, 2 de março de 2020

Das tardes pálidas no mar Arábico às manhãs neblínicas atlânticas

Fevereiro 2020

A 8000 km mais próximo do epicentro do corona vírus do que normalmente se encontra, o ciclista extraordinário ainda pensou no assunto, talvez assim, talvez assado, pode ser que e tal se me encostar à berma, mas qual berma?, surgem obstáculos por todo o lado e a todo o instante, carros, carripanas, camiões, pessoas, motas, buracos, barreiras, sinais ... e o ruído ensurdecedor das buzinas é como que um véu que tolda o discernimento. Pela primeira vez, o ciclista extraordinário inibiu-se de pedalar pela cidade onde se encontrava. Caminhou e mesmo assim com precaução para não levar com um veículo em cima. A caminhada levou-o às margens do oceano Índico. Uma caminhada pela parte moderna e mais organizada da cidade. Aqui, nestas avenidas, onde parece haver regras de trânsito que são genericamente cumpridas, talvez pudesse pedalar e ... não seria o único.


Por regra todos os veículos seguiam na mesma direcção, a maioria parava nos semáforos, qualquer deslize da minha parte seria assinalado com mil buzinadas e, enfim, com jeito talvez pudesse pedalar por ali com uma probabilidade de levar com um veículo encima de apenas 50%. Mas onde iria arranjar uma bike àquela hora? Pedir ali ao gajo que dormia no canteiro da palmeira que me emprestasse a bike não me pareceu um bom plano. Todavia, esta foi uma hipótese que me assaltou a mente.
Segui a pé. A avenida abriu-se numa baía e a visão do mar Arábico engatilhou memórias de histórias antigas. Os nossos antepassados chegaram a esta baía à quinhentos anos atrás. Quase que via as naus no horizonte, surgindo como um ponto que, pouco a pouco, se agigantava no horizonte.



Não era o único a perscrutar o horizonte mas provavelmente nem todos procuravam naus no horizonte.



De volta à zonas normais, buliçosas, caóticas, coloridas, de um dinamismo que nos primeiros minutos  perturba a navegação espacial, como se fora um tipo que toda a vida viveu no campo e, pela primeira vez, era largado numa avenida de uma cidade à hora de ponta. Depois, os aromas em cima dos estímulos visuais, tornava ainda ais difícil processar o ambiente à volta de modo a passear por ali com tranquilidade. Às tantas, que remédio, o ciclista extraordinário lá se habituou.

O ciclista extraordinário que, por regra, procura a comida dos locais para onde viaja ficou, desta vez, muito relutante em experimentar o que ia vendo por ali à venda.


Fora bem avisado para seleccionar muito bem o que meter na boca. Até das bolas de sabão (por causa da água) o ciclista extraordinário se desviou, evitando o contacto com a pele.


O ciclista extraordinário caminhou por ali, tratando da sua vida e vendo os outros a tratar da deles. Não percebia bem como mas percebia que o faziam com empenho. Pelo menos um empenho que lhes permitia a sobrevivência. E o ciclista extraordinário aprecia isso: o empenho no que se faz. 


Só mais tarde, já noite caída, o ciclista extraordinário deu com o café recomendado para degustar uma galinha à Manchuria. Pois, e hidratar. É que mesmo a água das garrafas tinha um saborzinho a qualquer coisa que não lembrava a água fresca das serranias por onde o ciclista extraordinário costuma pedalar. E, como bem sabido, nestas circunstâncias a água de melhor qualidade obtém-se por via de uma bela cerveja fresca. O café era logo ali na esquina, na zona mais cosmopolita,


era só passar para o lado de lá das vedações e evitar meter-me nalgum buraco.


Acima dos 30 graus C, com humidade acentuada, a entrada no café soube bem. E a galinha à Manchúria estava excelente. As duas belas cervejas repuseram os níveis de hidratação adequada às circunstâncias. Depois, à saída, só faltava ao ciclista extraordinário encontrar o taxista que o tinha trazido. Apesar de terem combinado um ponto de encontro, a confusão imensa de carros e pessoas fez com que uma ligeira preocupação assaltasse a mente do ciclista extraordinário. Como que num passe de magia, encontrou-o por ali perto a dormir no carro, banco para trás, pança para a frente e ... três toques no vidro, o gajo acorda e lá fomos de volta.

Num outro passe de magia, menos de 24 h depois, o ciclista extraordinário pedalava pelas encostas neblínicas da serra. A noite quente e húmida em que regou a galinha da Manchuria com duas belas cervejas frescas era já uma memória distante. Do mesmo modo, a chuva fria e o vento forte toldavam a memória do atmosfera poluída e baça dos dias anteriores.


O ar húmido a entrar pelo pulmões do ciclista extraordinário fizeram senti-lo muito bem depois dos muitos dias a respirar o ar turvo carregado de poeiras que nem o vento do mar Arábico pouco aliviava.




O ciclista extraordinário estava de volta. Às serranias, aos soutos neblínicos, aos arrepios e sustos repentinos motivados por um odor intenso, um pisar de folhas próximo, um vulto fugidio ...


e à paisagem fractal da copa das árvores contra o céu branco, 



ao solo forrado a cores quentes das folhas secas, 



aos verdes clorofílicos que forram os troncos das árvores ...



Um dia, provavelmente, o ciclista extraordinário voltará às margens do oceano Índico e pedalará, certamente que pedalará por lá.