Ali, isolado. Pedalei 3h horas para ali chegar, serra acima, comme d'habitude. Não vi vivalma. Isolado. Mas isso já eu não só previra como desejara. Ali, aos 1200 m. Antes, ao chegar ao planalto, a visão do cume coberto de nuvens exerceu uma atracção incontrolável a que não opus grande resistência. Para mais naquele isolamento. Tinha tido já um encontro imediato com um belo gamo que atravessou o caminho à minha frente num pulo acrobático (digo eu, para eles é o normal). É extraordinário: vamos por ali acima a pedalar em silêncio, de súbito ouvimos um ruído, olhamos em frente e vemos um animal que com uma leveza e elegância indescritíveis faz dois saltos transversalmente à nossa frente, desaparecendo num ápice. Quando tornamos a respirar, já tudo passou. E ficamos ali parados, a olhar, a tentar perceber se o que aconteceu, de facto, aconteceu. Depois, continua-se as pedalar.
Mal me meti na névoa fui ainda com mais atenção, os sentidos em alerta, um odor, um ruído, um vulto entre as árvores? ... o cérebro a integrar tudo, fazendo o ponto da situação ao segundo, tudo OK, não quero apanhar sustos. Na curva para o Sto. António da Neve outro encontro imediato do terceiro grau. Perto, muito perto, da encosta do lado esquerdo saiu um gamo, deu um pulo para a estrada e outro para o lado direito, desaparecendo. Grande e tão ágil. Saltam por ali, por entre pedras, arbustos, cascalheiras, locais em que teríamos dificuldade em caminhar ... Já percebi que, quando me sentem a aproximar, traçam uma linha de fuga perpendicular ao meu trajecto e seguem-na. Traçam o trajecto e seguem-no. Se estou muito perto não voltam atrás, não se desviam, seguem em frente em corrida como que hipnotizados. Isto diz-me que, caso esteja muito próximo, se me atravesso na sua linha de fuga, levo com um em cima. Deve ser um embate terrível.
Mas, tudo isto não tem qualquer interesse. Ia obcecado por pedalar envolto na neblina e quanto mais subia mais a sensação I don't give a shit se sobrepunha a qualquer receio. A subida final ao cume da Serra inicia-se pela encosta Sul e, a meio, já próximo do cume, vira-se para lado Oeste, o lado que encima o vale da ribeira de S. João. O vento tinha-se metido por ali, pelo vale acima e a névoa corria rente à urze, às vezes em golfadas, outras num fluxo contínuo. Foi ali que fiz os videozinhos. Ali. Eu isolado. O país em isolamento. O planeta Terra activo excepto uma espécie, o homo sapiens sapiens, confinada a nichos, os indivíduos da espécie sapiens sapiens isolados, evitando interacções que são precisamente a regra entre as outras espécies. Primavera de 2020. Nas terras altas da Beira. A temperatura era suficientemente amena, à volta de 12 °C, para o ar húmido trazer o aroma intenso da urze.
36 segundos de terras altas da Beira na Primavera 2020 (ouvir com som no máximo)
2 minutos e 26 segundos de terras altas da Beira na Primavera 2020 (ouvir com som no máximo)
Pois é, João, sem fotografias nem videozinhos, resta-lhe guardar esses encontros imediatos muito bem guardadinhos na memória :))
ResponderEliminarAs urzes estão com um tom fantástico - e sempre a trazerem-me o Torga à lembrança.
🌻
Maria
Olá Maria,
EliminarDe tão extraordinários, passado algum tempo chego até a duvidar da minha memória.
João
Gosto do blog, mas não seria possível utilizar caracteres maiores? obrigado
ResponderEliminarViva José Gonçalves,
EliminarO Blogger não dá opção de aumento gradual do tamanho de letra; as opções são pequeno, médio e grande, como as fardas da tropa. No próximo post tentarei o tamanho seguinte.
Obrigado pela sugestão.
João
Ai que vontade de pedalar até ficar sozinha e poder esticar as pernas...vontade que vai ter que aguentar mais um pouco. Mas obrigado pela descrição, fez-me sentir mais perto dessa realidade =)
ResponderEliminarOra Nada, eu é que agradeço o comentário. Às vezes, procurando bem, há sempre um carreiro isolado e desconhecido perto de si (!). Mas, de preferência, não frequentado por javalis ou matilhas de cães pouco amigáveis, entre outras espécies ;)
EliminarVolte sempre.
João