segunda-feira, 2 de março de 2020

Das tardes pálidas no mar Arábico às manhãs neblínicas atlânticas

Fevereiro 2020

A 8000 km mais próximo do epicentro do corona vírus do que normalmente se encontra, o ciclista extraordinário ainda pensou no assunto, talvez assim, talvez assado, pode ser que e tal se me encostar à berma, mas qual berma?, surgem obstáculos por todo o lado e a todo o instante, carros, carripanas, camiões, pessoas, motas, buracos, barreiras, sinais ... e o ruído ensurdecedor das buzinas é como que um véu que tolda o discernimento. Pela primeira vez, o ciclista extraordinário inibiu-se de pedalar pela cidade onde se encontrava. Caminhou e mesmo assim com precaução para não levar com um veículo em cima. A caminhada levou-o às margens do oceano Índico. Uma caminhada pela parte moderna e mais organizada da cidade. Aqui, nestas avenidas, onde parece haver regras de trânsito que são genericamente cumpridas, talvez pudesse pedalar e ... não seria o único.


Por regra todos os veículos seguiam na mesma direcção, a maioria parava nos semáforos, qualquer deslize da minha parte seria assinalado com mil buzinadas e, enfim, com jeito talvez pudesse pedalar por ali com uma probabilidade de levar com um veículo encima de apenas 50%. Mas onde iria arranjar uma bike àquela hora? Pedir ali ao gajo que dormia no canteiro da palmeira que me emprestasse a bike não me pareceu um bom plano. Todavia, esta foi uma hipótese que me assaltou a mente.
Segui a pé. A avenida abriu-se numa baía e a visão do mar Arábico engatilhou memórias de histórias antigas. Os nossos antepassados chegaram a esta baía à quinhentos anos atrás. Quase que via as naus no horizonte, surgindo como um ponto que, pouco a pouco, se agigantava no horizonte.



Não era o único a perscrutar o horizonte mas provavelmente nem todos procuravam naus no horizonte.



De volta à zonas normais, buliçosas, caóticas, coloridas, de um dinamismo que nos primeiros minutos  perturba a navegação espacial, como se fora um tipo que toda a vida viveu no campo e, pela primeira vez, era largado numa avenida de uma cidade à hora de ponta. Depois, os aromas em cima dos estímulos visuais, tornava ainda ais difícil processar o ambiente à volta de modo a passear por ali com tranquilidade. Às tantas, que remédio, o ciclista extraordinário lá se habituou.

O ciclista extraordinário que, por regra, procura a comida dos locais para onde viaja ficou, desta vez, muito relutante em experimentar o que ia vendo por ali à venda.


Fora bem avisado para seleccionar muito bem o que meter na boca. Até das bolas de sabão (por causa da água) o ciclista extraordinário se desviou, evitando o contacto com a pele.


O ciclista extraordinário caminhou por ali, tratando da sua vida e vendo os outros a tratar da deles. Não percebia bem como mas percebia que o faziam com empenho. Pelo menos um empenho que lhes permitia a sobrevivência. E o ciclista extraordinário aprecia isso: o empenho no que se faz. 


Só mais tarde, já noite caída, o ciclista extraordinário deu com o café recomendado para degustar uma galinha à Manchuria. Pois, e hidratar. É que mesmo a água das garrafas tinha um saborzinho a qualquer coisa que não lembrava a água fresca das serranias por onde o ciclista extraordinário costuma pedalar. E, como bem sabido, nestas circunstâncias a água de melhor qualidade obtém-se por via de uma bela cerveja fresca. O café era logo ali na esquina, na zona mais cosmopolita,


era só passar para o lado de lá das vedações e evitar meter-me nalgum buraco.


Acima dos 30 graus C, com humidade acentuada, a entrada no café soube bem. E a galinha à Manchúria estava excelente. As duas belas cervejas repuseram os níveis de hidratação adequada às circunstâncias. Depois, à saída, só faltava ao ciclista extraordinário encontrar o taxista que o tinha trazido. Apesar de terem combinado um ponto de encontro, a confusão imensa de carros e pessoas fez com que uma ligeira preocupação assaltasse a mente do ciclista extraordinário. Como que num passe de magia, encontrou-o por ali perto a dormir no carro, banco para trás, pança para a frente e ... três toques no vidro, o gajo acorda e lá fomos de volta.

Num outro passe de magia, menos de 24 h depois, o ciclista extraordinário pedalava pelas encostas neblínicas da serra. A noite quente e húmida em que regou a galinha da Manchuria com duas belas cervejas frescas era já uma memória distante. Do mesmo modo, a chuva fria e o vento forte toldavam a memória do atmosfera poluída e baça dos dias anteriores.


O ar húmido a entrar pelo pulmões do ciclista extraordinário fizeram senti-lo muito bem depois dos muitos dias a respirar o ar turvo carregado de poeiras que nem o vento do mar Arábico pouco aliviava.




O ciclista extraordinário estava de volta. Às serranias, aos soutos neblínicos, aos arrepios e sustos repentinos motivados por um odor intenso, um pisar de folhas próximo, um vulto fugidio ...


e à paisagem fractal da copa das árvores contra o céu branco, 



ao solo forrado a cores quentes das folhas secas, 



aos verdes clorofílicos que forram os troncos das árvores ...



Um dia, provavelmente, o ciclista extraordinário voltará às margens do oceano Índico e pedalará, certamente que pedalará por lá.

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