Abril 2020
Já, por várias vezes, tinha tentando encontrar a a aldeia. A de cima, o Franco de Cima, dei com ela num dia de chuva miudinha, de morrinha como se diz na Beira-baixa. Ia com um parceiro de pedaladas (longas), a descer a serra por um caminho íngreme, quando, às tantas, vimos um trilho do lado direito que se metia num dos vales fechados, daqueles vales de onde nos chega o som de ribeiros caudalosos e inacessíveis e que enrugam a serra perpendicularmente ao grande vale da Beira que se estende até à outra grande serrania a Norte, a serra do Caramulo. Travagem a fundo e nem foi preciso dizer mais nada: "vamos lá ver onde é que isto vai dar, ainda damos com a aldeia abandonada do Franco de Cima". E foi dar aqui, ao Franco de Cima. Curiosamente, em Abril de 2015 (2015!? porra !).
Desta vez a coisa foi planeada. Cuidadosamente planeada. Éramos 3, um deles companheiro de muitos anos. "Vamos para os lados do vale dos Francos. O de Cima já sabemos onde é, no cimo do vale, obviamente. Portanto, o de Baixo, ficará na parte de baixo do vale." Brilhante. Para os não especialistas em procurar aldeias abandonadas em serranias com vales fundos montados em bicicletas convém lembrar que um erro num caminho por um vale abaixo, geralmente, resulta em voltar atrás com o ciclista e a bicicleta em posições inversas às normais relativamente ao centro da Terra. E, além de se alombar com a bike às costas, todo o processo gera uma dinâmica de escorregadelas com sapatinhos de carbono por cascalheiras e raízes escorregadias, furar silvados, tropeçar aqui e ali ...
Desta vez, segui o companheiro de muitos anos. Ele é um tipo ágil e extraordinariamente dotado para o BTT. Passa montado na bike em sítios onde é difícil passar a pé. Repetiu-se uma cena que já conheço bem. Ele seguiu desembestado pelo caminho abaixo montado na bike, desviando-se de pedras, baixando-se para não bater em ramos de árvores, furando por entre arbustos, mantendo a roda da frente num trilho com um palmo de largura rente a barrancos e eu fui indo até que, obviamente, desmontei e fui com a bike ao colo. "hheeeeiiiiiiiiiiiii", "entãaaaoooo? veeennnnsss? tudo okaaaayyyyy?", berrava ele bem lá mais à frente, tapado pela vegetação. "Porrrrraaa já vooouuuu, já me arranhei na puta das silvaaaasss", respondia eu. O terceiro companheiro vinha atrás de mim, em silêncio.
Às tantas, o caminho abriu, percebia-se que ia dar a algum lado, que estávamos próximos de alguma coisa. Montados nas bikes por ali fora até que ouvimos um rugido:
Uma ribeira feroz (resultado de chuvadas valentes nos dias anteriores) fez do caminho que levávamos o seu leito.
Delineámos vários planos geniais para a atravessar sem nos molharmos. Um de nós sugeriu subir às árvores e passarmos da copa de uma para a de outra do outro lado do ribeiro. Uma passagem à Tarzan. Havia ali um ramo que talvez ... com jeito ... Mas, e a bike?
Outro, pensou numa alavanca. Tal como um saltador à vara, usaríamos um tronco para, tomando balanço, apoiaríamos uma extremidade no meio da ribeira e, agarrados à outra, voaríamos para o outro lado. Mas, e as bikes? Uma operação destas com as bikes às costas teria uma probabilidade de sucesso um pouco maior que a da existência de vida em Marte.
Eu, qual Fernão de Magalhães a procurar a passagem para o Pacífico, pus-me a caminhar em direcção à cascata na esperança (vã) de encontrar uma passagem de águas baixas para a outra margem. Umas pedras, uns troncos, something in the way (she moves, attracts me like no other lover, something in the way ....). Debalde. A força da corrente era ainda maior que mais abaixo no caminho, o leito ainda mais irregular e escorregadio e ali fiquei naquele engano d'alma ledo e cego até atingirmos aquele estado de discernimento, de puro nacionalismo, exclamando os 3 quase em uníssono: olha ! que se foda!
Em suma, foi o que já se percebeu. Bike às costas e água (fresquinha) até aos joelhos. A um de nós, após um escorreganço, a água arrefeceu inclusivamente algumas partes moles particularmente sensíveis acima da articulação do joelho e abaixo da dos cotovelos.
Depois do caminho-ribeira seguimos rente a a muros de pedra cobertos de musgo por entre vegetação densa. Mais à frente, sob as árvores distinguimos paredes de casas antigas. O Franco de Baixo, embora fique no vale, não se consegue ver por cima. As casas estão sob as árvores (carvalhos, castanheiros, sobreiros ..) camufladas na vegetação. Uma pesquisa no Google Earth nestas coordenadas não revela quaisquer indícios de casas nem de caminhos.
Percebemos que estávamos na extremidade da aldeia, na parte de baixo do Franco de Baixo, entre a ribeira ao fundo do segundo vale e algumas ruínas. Aí, uma casa grande e com paredes imponentes foi uma surpresa.
Via-se que tinha sido casa de ilustre residente; anexos, mais que um piso, paredes largas ...
A aldeia foi abandonada por volta dos anos 60 (sec XX). Conheci um dos últimos moradores.
Outras nem tanto
Subindo com a bike às costas por caminhos que o devem ter sido há décadas atrás, percebemos que tínhamos falhado o núcleo central da aldeia lá mais para trás. Percebemos também que, continuando em frente, daríamos com o caminho Franco de Cima (este pedalável). Dado o adiantado da hora e a circunstância de um dos companheiros ter prometido à consorte assar a entremeada para o almoço, resolvemos trepar (de novo) com a bike às costas até ao caminho que nos levaria dali para um estradão e deste para a estrada da serra. Estava feito o achamento mas faltava explorar o Franco de Baixo. Ficaria para outra altura.
Houve apenas mais um pequeno contratempo; ao cimo do vale fomos encontrar a ribeira que atravessáramos no fundo do vale. E, num padrão que se repete quando as ribeiras correm perpendicularmente a caminhos, também ali a ribeira fez do caminho o seu leito. Desta vez ninguém arriscou planos, as águas eram calmas e pouco fundas, seguimos em frente como se pedalássemos numa ciclovia à beira mar. A promessa da entremeada feita pelo nosso companheiro à família impelia-nos em direcção à Vila. Bem percebíamos a sua preocupação, é que não se promete uma entremeada na brasa debalde ...
Que grande aventura :) essas são as que eu gosto de viver, põe-nos adrenalina nas veias. Boa noite João
ResponderEliminarA adrenalina nas veias e o sangue a escorrer pelas pernas dos arranhões na silvas ;)
EliminarTambém gosto muito destas "cenas".
João